sábado, 23 de fevereiro de 2008

Pensando em Partir

PENSANDO EM PARTIR[1]

Everardo P. Guimarães Rocha

Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.

Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades, como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas.

Assim, a colocação central sobre o etnocentrismo pode ser expressa como a procura de sabermos os mecanismos, as formas, os caminhos e razões, enfim; pelos quais tantas e tão profundas distorções se perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós. Este problema não é exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade. Talvez o etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos, um daqueles de mais unanimidade.

Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a experiência de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe.

Este choque gerador do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças. Grosso modo, um mal-entendido sociológico. A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural. O monólogo etnocêntrico pode, pois, seguir um caminho lógico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil!

O grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do “outro” fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. Este processo resulta num considerável reforço da identidade do “nosso” grupo. No limite, algumas sociedades chama-se por nomes que querem dizer “perfeitos”, “excelentes” ou, muito simplesmente, “ser humano” e ao “outro”, ao estrangeiro, chamam, por vezes, de “macacos da terra” ou “ovos de piolho”. De qualquer forma, a sociedade do “eu” é a melhor, a superior. É representada como o espaço da cultura e da civilização por excelência. É o espaço da natureza. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois, estes somos nós. O barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, a desordem. O selvagem é o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal. O “outro” é o “aquém” ou o “além”, nunca o “igual” ao “eu”.

O que importa realmente, neste conjunto de idéias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo não é propriedade, como já disse, de uma única sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um caráter ativista e colonizador com ao mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos.

A atitude etnocêntrica tem, por outro lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a compreensão destas maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o “outro”. Existe realmente, paralelo à violência que a atitude etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o “outro” deva ser alguma coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo.

Creio que é necessário examinar isto melhor e vou fazê-lo através de uma pequena estória que me parece exemplar.

Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si mesmo apenas um moderníssimo relógio digita2 capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava freqüentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.

A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e conta multicores, e no centro o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no rosto do pastor. Fora-se o relógio.

Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma ultima revisada na comunicação que iria fazer em seguida a seus colegas em um congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio fizera com o seu relógio.

Esta estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda a evidência, bastante plausível, demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do etnocentrismo.

Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para perceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as funções estéticas, ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do “outro”, desempenhavam funções que seriam principalmente técnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto causaria ao jovem índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um “traduziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.

Em segundo lugar, essa estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de um etnocentrismo “cordial”, já que ambos – o índio e o pastor – tiveram atitudes concretas sem maiores conseqüências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro” que se reveste de uma forma bastante violenta. Como já vimos, pode colocá-lo como “primitivo”, como “algo a ser destruído”, como “atraso ao desenvolvimento”, (fórmula, aliás, muito comum e de uso geral no etnocídio, na matança dos índios).

Assim, por exemplo, um famoso cientista do início do século, Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão que eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em vários outros lugares, a lógica do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre a chamada (civilização ocidental”, tristemente exemplar, de uma criança, de um grande centro urbano que, de tanto ouvir absurdos sobre o índio, seja em casa, seja nos livros didáticos, seja na indústria cultural, acabou por defini-los dizendo: “o índio é o maior amigo do homem”.

Em terceiro lugar, a estória ainda ensina que o “outro” e sua cultura, da qual falamos na nossa sociedade, são apenas uma representação, uma imagem distorcida que é manipulada como bem entendemos. Ao “outro” negamos aquele mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo. Tudo se passa como se fôssemos autores de filmes e livros de ficção científica onde podemos falar e pensar o quanto é cruel, grotesca e monstruosa uma civilização de marcianos que capturou nosso foguete. Também, porque somos os autores destes filmes e livros, nada nos impede de criarmos um marciano simpático, inteligente e superpoderoso que com incrível perícia salva a Terra de uma co1lisao fatal com um meteoro gigante. Claro, como o marciano não diz nada, posso falar dele o que quiser.

Assim, de um ponto de vista do grupo do “eu”, os que estão de fora podem ser brabos e traiçoeiros bem como mansos e bondosos. Aliás, “brabos” e “mansos” são dois termos que muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o “humor” de determinados animais e o “estado” de varias tribos de índios ou de escravos negros.

A figura do louco, por exemplo, na nossa sociedade, é manipulada por uma série de representações que oscilam entre estes dois pólos, sendo denegrida ou exaltada – como o marciano – ao sabor das intenções que se tenha. Isto não só ao longo da história, mas também em diferentes contextos no presente. A expressão “fulano é muito louco” pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. Em alguns momentos da história o louco foi acorrentado e torturado, em outros, foi portador de uma palavra sagrada e respeitada.

Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos “outros” deste mundo – por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos.

Na nossa chamada “civilização ocidental”, nas sociedades complexas e industriais contemporâneas, existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do “outro”. O caso dos índios brasileiros é bastante ilustrativo, pois alguns antropólogos estudiosos do assunto já identificaram determinadas visões básicas, determinados estereótipos, que são permanentemente aplicados a estes índios.

Eu mesmo realizai, há alguns anos, um estudo sobre as imagens do índio nos livros didáticos de História do Brasil. Estes livros têm importância fundamental na formação de uma imagem do índio, pis são lidos e, mais ainda, estudados por m milhões de alunos pré-universitários nos mais diversos recantos do país. Alguns destes livros alcançam tiragens altíssimas e já tiveram mais de duzentas edições. Através deles circula um “saber” altamente etnocêntrico – honrosas exceções – sobre os índios.

Os livros didáticos, em função mesmo do seu destino e de sua natureza, carregam um valor de autoridade, ocupam um lugar de supostos donos da verdade. Sua informação obtém este valor de verdade pelo simples fato de que quem sabe seu conteúdo passa nas provas. Nesse sentido, seu saber tende a ser visto como algo “rigoroso”, “sério” e “científico”. Os estudantes são testados, via de regra, em face do seu conteúdo, o que faz co que as informações neles contidas acabem se fixando no fundo da memória de todos nós. Com ela se fixam também imagens extremamente etnocêntricas.

Alguns livros colocavam que os índios eram incapazes de trabalhar nos engenhos de açúcar por serem indolentes e preguiçosos. Ora, como aplicar adjetivos tais como “indolente” e “preguiçoso” a alguém, um povo ou uma pessoa, que se recuse a trabalhar como escravo, numa lavoura que não é a sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer é seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é, no mínimo, sinal de saúde mental.

Outro fato também interessante é que um número significativo de livros didáticos começa com a seguinte informação: os índios andavam nus. Este “escândalo” esconde, na verdade, a nossa noção absolutizada do que deva ser uma roupa e o que, num corpo, ela deve mostrar e esconder. A estória do nosso amigo missionário serviu para a constatação das dificuldades de definir o sentido de um objeto – o relógio ou o arco – fora dos seus contextos culturais. Da mesma maneira, nada garante que os índios andem nus a não ser a concepção que eles mesmos teriam de nudez e vestimenta.

Assim, como o “outro” é alguém calado, a quem não é permitido dizer de si mesmo, mera imagem sem voz, manipulado de acordo com desejos ideológicos, o índio é, para o livro didático, apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos. Em outras palavras, o índio é “alugado” na História do Brasil para aparecer por três vezes m três papeis diferentes.

O primeiro papel que o índio representa é no capítulo do descobrimento. Ali, ele aparece como “selvagem”, “primitivo”, “pré-histórico”, “antropófago”, etc. isto era para mostrar o quanto os portugueses colonizadores eram “superiores” e “civilizados”.

O segundo papel do índio é no capítulo da catequese. Nele o papel do índio é o de “criança”, “inocente”, “infantil”, “almas virgens”, etc., para fazer parecer que os índios é que precisavam da “proteção” que a religião lhes queria impingir.

O terceiro papel é muito engraçado. É no capítulo “Etnia brasileira”. Se o índio já havia aparecido como “selvagem” ou “criança”, como iriam falar de um povo – o nosso – formado por portugueses, negros e “selvagens”? Então aparece um novo papel e o índio, num passe de mágica etnocêntrica, vira “corajoso”, “altivo”, cheio de “amor à liberdade”.

Assim são as sutilezas, violências, persistências do que chamamos etnocentrismo. Os exemplos se multiplicam nos nossos cotidianos. A “indústria cultural” – TV, jornais, revistas, publicidade, certo tipo de cinema, rádio – está freqüentemente fornecendo exemplos de etnocentrismo. No universo da indústria cultural é criado sistematicamente um enorme conjunto de “outros” que servem para reafirmar, por oposição, um a serie de valores de um grupo dominante que se autopromove a modelo de humanidade.

Nossas próprias atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença. As idéias etnocêntricas que temos sobre as “mulheres”, os “negros”, os “empregados”, os “paraíbas de obra”, os “colunáveis”, os “doidões”, os “surfistas”, as “dondocas”, os “velhos”, os “caretas”, os “vagabundos”, os gays e todos os demais “outros” com os quais temos familiaridade, são uma espécie de “conhecimento” um “saber” baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico.

Mas, existem idéias que se contrapõem ao etnocentrismo. Uma das mais importantes é a da relativização. Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando. Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.

A nossa sociedade já vem, há alguns séculos, construindo um conhecimento ou, se quisermos, uma ciência sobre a diferença entre os seres humanos. Esta ciência chama-se Antropologia Social. Ela, como de resto quase todas as atitudes que temos frente ao “outro”, nasceu marcada pelo etnocentrismo. Ela também possui o compromisso da procura de superá-lo. Diferentemente do saber de “senso comum”, o movimento da Antropologia é no sentido de ver a diferença como forma pela qual os seres humanos deram soluções diversas a limites existenciais comuns. Assim, a diferença não se equaciona com a ameaça, mas com a alternativa. Ela não é uma hostilidade do “outro”, mas uma possibilidade que o “outro” pode abrir para o “eu”.







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[1] Everardo P. Guimarães Rocha. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1999. Col. Primeiros Passos. Pp. 7-22.

Disciplina Antropologia

Créditos: 04 Horas/Aula: 66 Dia: quinta-feira Ano/Semestre: 2008/I

Curso: Comunicação Social –
_Prof.dr:sebatião costa andrade____________________________________________________________________________________

EMENTA

Objeto de estudo da Antropologia Social. Análise da cultura. Organizações sociais e econômicas. Controle social. Religião. Arte. Dinâmica cultural. O indivíduo e a cultura.

OBJETIVO GERAL

Proporcionar ao(a) aluno(a) de comunicação Social uma discussão sobre a diversidade cultural no mundo contemporâneo. Para tanto, será feita uma discussão sobre os principais temas trazidos pela reflexão antropológica, enfocando principalmente a questão da cultura, identidade cultural e organização simbólica. Será feita também uma análise sobre os aspectos simbólicos da cultura e identidade brasileiras, buscando remetê-los à esfera do consumo.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

- Apresentar os conceitos e os pressupostos fundamentais da Antropologia Social.
- Oportunizar uma reflexão introdutória sobre diversidade cultural e consumo.
- Estimular a desconstrução de visões etnocêntricas e preconceituosas a respeito dos homens e culturas
- Estimular a leitura e animar os alunos a intervirem de forma pertinente sobre as questões tratadas em aula.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

Primeira Parte:
- Contexto histórico do surgimento da antropologia
- Natureza e cultura: determinismos biológico e geográfico - a capacidade de simbolização humana
- Raça e racismo: origem e pressupostos
Segunada parte:
- Dois conceitos fundamentais: etnocentrismo e relativismo
- Diversidade, alteridade e o ofício do antropólogo
- Os conceitos de Cultura
- Ética e trabalho de campo: algumas questões de método e metodologia

Terceira Parte:
- A questão da identidade cultural e
a identidade cultural brasileira e nordestina
(etnia, família, religião, gênero, política, classe social...)
- A diversidade cultural na sociedade contemporânea
- Quarta Parte

-Antropologia e Consumo

- Antropologia e Relações Públicas
- Antropologia e internet
METODOLOGIA:

As aulas serão constituídas de exposição dialogada, debates de filmes, seminários e trabalhos em grupos e/ou individuais.



AVALIAÇÃO:

A avaliação será efetivada através de trabalhos individuais, seminários ou trabalhos em grupos, além de provas individuais. Serão respeitados os critérios de avaliação do regulamento da faculdade.


BIBLIOGRAFIA BÁSICA:

01. SANTOS, Rafael, José dos. Antropologia para quem não vai ser antropólogo. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2005.
02. DAMATTA, Roberto. Relativizando – uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
03. DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? 8ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
04. LARAIA, R. Cultura – um conceito antropológico. 13. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
05. KRISCHKE LEITÃO, Débora; LIMA, Diana N. de O. & PINHEIRO MACHADO, Rosana. Antropologia e Consumo. Porto Alegre: AGE, 2006.
06. ROCHA, E. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1995.

Antropologia e mercado

O especialista de marketing deve entender as questões culturais se quiser fazer o seu produto ou serviço conquistar o mercado. E mais, deve estabelecer parcerias e encomendar estudos da antropologia, pois só ela é capaz de entender o ser humano contemporâneo e as suas razões de consumo. Esta é a opinião do antropólogo Everardo Rocha, Doutor em Antropologia Social, pesquisador do CNPq, membro da Associação Brasileira de Antropologia e prof. da PUC-RJ e da Coppead-UFRJ.

Autor de diversos livros, Everardo Rocha falou de como a antropologia pode auxiliar no trabalho diário de quem estuda o comportamento do consumidor. Para ele, a principal deficiência das pesquisas é que elas não levam em consideração a questão cultural. “Tem que estar muito atento para a dimensão de valores culturais e começar a entender o consumidor através de métodos que são mais próximos dos utilizados pela antropologia para estudar as culturas pelo mundo afora, que é o método etnográfico”.

Como está o estudo da antropologia do consumo no Mundo?
Existe, na área de marketing, um interesse em perceber que produtos e serviços vão além das percepções individuais e de suas dimensões tangíveis. Eles são símbolos culturais. Há uma dimensão cultural fundamental em tudo que diz respeito a consumo. Por isso, os profissionais de marketing descobriram a existência de uma área da antropologia que se chama antropologia do consumo, que começou a ser estudada na década de 70. Quem deu esse nome foi a antropóloga inglesa chamada Mary Douglas no livro "O mundo dos bens, para uma antropologia do consumo", onde ela começa a tentar entender o consumo como um fenômeno cultural. Isso aguçou o interesse das pessoas de marketing a estudar cada vez mais a dimensão cultural presente nos comportamentos de consumo e nos produtos e serviços.

Como está se dando a prática desses estudos e de que forma a antropologia pode auxiliar os especialistas de mercado?
Como observador, vejo que os profissionais de marketing estejam começando a ver que para estudar consumo, tem que estar muito atento para a dimensão de valores culturais e deve começar a entender este consumidor através de métodos que são mais próximos dos utilizados pela antropologia para estudar as culturas pelo mundo afora, que é o método etnográfico. Eles podem fazer essas pesquisas para tentarem entender quais os discursos que incidem sobre o consumo, entender que os seres humanos quando compram coisas eles compram algo ligado a um conjunto de valores culturais nos quais estão envolvidas e que as marcas estão sempre falando de outras coisas além delas mesmas. Acho que o marketing deve ter mais atenção para posicionar os produtos neste quadro cultural. A atitude mais correta é trocar mais com os antropólogos, fazer parcerias e propor projetos e pesquisas que possam agregar conhecimento ao universo em que o produto está envolvido.
Por onde essas pesquisas devem começar?
Toda estratégia de conquista do consumidor tem que envolver a noção de cultura. Tem que conhecer o cenário cultural aonde o consumo vai se dar. O poder da marca na mente do consumidor o faz pagar um valor considerável para ter uma bolsa Louis Vuitton.

Quais outros fatores influenciam a compra no mercado de luxo?
Neste caso, o que está em jogo é participar de um universo de valores culturais que aquele produto oferece. Consumir estes produtos é ter a ilusão de pertencer ao universo simbólico que ele propõe. Todo produto é assim. Quando você compra alguma coisa, você compra para o outro, para o mundo colectivo. Todo produto e serviço é, ao mesmo tempo, um muro e uma ponte. Quando alguém compra uma bolsa Louis Vuitton constrói um muro em relação às pessoas que não tem Louis Vuitton. Quero dizer que sou diferente das pessoas que não tem a bolsa. Ao mesmo tempo, cria uma ponte com todos os outros consumidores de Louis Vuitton. O produto é um marcador cultural que aproxima ou distancia as pessoas.

O mundo globalizado encheu o consumidor de opções de compra. Como as pessoas reagem com a possibilidade de escolha infinita?
Pelo valor simbólico. Se o preço é parecido, se possuem uma qualidade equivalente, o que vai diferenciar é a marca que vai fazer um produto parecer melhor do que outro.
A marca passa a ser o principal activo de um produto. A marca é também como ela é percebida pelos outros. Não é um valor simbólico absoluto. Não adianta dizer que uma marca é o máximo. Se as pessoas acharem que ela é uma porcaria ela vai ser um porcaria. Todo valor simbólico é legível culturalmente e interpretado pela sociedade. O dono da marca pode querer que ela seja uma coisa que se a sociedade não ler o que ele quer passar não será.
Os estudiosos de marketing estão cada vez mais pesquisando a antropologia e a psicologia para poder passar esta unidade. É importante que cada disciplina tenha o seu objectivo. O que o marketing tem que fazer é pensar como que se vende. Essa é a natureza dele. Já a antropologia tem que pensar como funciona a cultura contemporânea. Não é o homem de marketing virar antropólogo nem o antropólogo virar marketeer. Tem que haver uma troca.

Fazendo esta parceria, quais conceitos da antropologia podem ser útil ao marketing?
Em primeiro lugar o conceito de cultura que é pouco explorado pelo marketing. A idéia da cultura como um código de valores que as pessoas compartilham leva a uma busca de entender quais são esses valores, quais são os códigos de cada subgrupo na sociedade. é um estudo em detalhe, de sintonia fina e que busca captar o ponto de vista das pessoas envolvidas. É o que chamamos de estudo etnográfico. Quando você classifica as pessoas por uma classe, você coloca pessoas ideologicamente diferentes num mesmo grupo, mas a sociedade é muito mais complexa do que isso. Quando você pergunta a uma pessoa se ela gosta de azul ou de amarelo, ela só tem duas possibilidades. Quando você conversa com as pessoas e se aprofunda, que é como o antropólogo faz, você entende qual é o pensamento daquela pessoa.

A forma de comprar e vender de hoje não se comprara com a do século passado e a de hoje não se perpetuará por muito tempo. Como os marqueteiros devem lidar com as constantes mutações humanas?
As coisas na ordem cultural mudam também dependendo de como você olha. Podemos achar que tudo mudou ou que tem um grau de permanência muito grande. Mas a cultura é muito mais conservadora do que podemos imaginar. Então, a lógica pela qual compramos hoje não tem muita razão para ser diferente da lógica com a qual comprávamos há décadas atrás. Continuará sendo uma coisa que me aproximará de uns e distanciará de outros o produto ou serviço permanece sendo um marcador cultural que vai fazer o consumidor participar de um certo discurso, de uma visão de mundo, de um grupo social. O consumo continua sendo um código cultural através do qual se constroem os muros e pontes.

Ouve-se muito que o consumidor de hoje está muito mais consciente. Mas que consciência é essa?
Como há uma preocupação, interesse ideológico, no mundo contemporâneo em questões como ecologia, exploração do trabalho infantil e responsabilidade social, as empresas perceberam que se elas usarem essas questões a seu favor poderão conquistar certos consumidores porque estarão entrando nessas ideologias. Se uma pessoa é extremamente preocupada em participar de um grupo, de se sentir querido por ele e próximo de pessoas preocupados com ecologia, ela vai preferir consumir produtos que tenham a ver com o discurso da ideologia. Significa vincular a marca com certas preocupações importantes no mundo contemporâneo. A partir daí, as marcas podem passar a ser tradutoras das preocupações das pessoas.

O mundo dos bens:para uma antropologia do consumo

O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo", por Débora Leitão (*)

Dados do livro resenhado:
Título da obra: O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo
Nome dos autores: Mary Douglas e Baron Isherwood
Editora: UFRJ, 2004.
Número de páginas: 304

Por que as pessoas querem bens?

No final da década de setenta, Mary Douglas e Baron Isherwood publicam, na Inglaterra, “O Mundo dos Bens”. Propondo novas lentes para ver as relações de consumo (relações de sujeitos com os objetos, e sobretudo de sujeitos entre si), dão direções precisas para os estudos nessa área. A publicação estabelece a pedra fundamental para o desenvolvimento, nas décadas seguintes, de uma linhagem de pensadores sociais que vão compreender o consumo como fenômeno chave para a análise de relações sociais e sistemas simbólicos.

O livro surge como uma proposta e como uma dupla crítica: aos postulados da economia neo-clássica, centrados no utilitarismo, racionalidade e maximização de ganhos, e as teorias de emulação estabelecidas a partir de Veblen. O caráter meramente utilitário do consumo já havia sido de alguma forma posto a prova dentro da teoria econômica. Com Veblen o consumo deixa de representar a simples satisfação racional de necessidades práticas e orgânicas. Ele permanece, contudo, sendo visto sob uma ótica de base moralizante, que relaciona o mundo das coisas materiais à futilidade. O consumidor já havia saído do domínio da necessidade, mas, pendendo para o lado oposto, torna-se quase irracional no jogo da emulação e da escalada pelo status, consumindo de acordo com motivações que dizem respeito exclusivamente a imitar ou copiar gostos das classes mais altas.

Através de sua crítica, Mary Douglas e Baron Isherwood apontam, sobretudo, para as dimensões culturais e simbólicas do consumo, e para a diversidade de motivações no que concerne o ato de consumir. Escrito por uma antropóloga e por um economista, o livro dá conta de uma ampla revisão das teorias econômicas sobre o consumo – trazendo seus principais argumentos e de seus críticos. Além disso, estabelece comparações ricas entre sociedades, citando etnografias clássicas que informam sobre relações de troca e consumo em diferentes culturas.

Para Douglas e Isherwood os bens de consumo são, em última instância, comunicadores de categorias culturais e valores sociais. Eles tornam tangíveis categorias da cultura, são necessários para tornar visíveis e estáveis tais categorias. As escolhas de consumo refletem, segundo os autores, julgamentos morais e valorativos culturalmente dados: carregam significados sociais de grande importância, dizendo algo sobre o sujeito, sua família, sua cidade, sua rede de relações. O ato de consumir seria um processo no qual todas as categorias sociais estariam sendo continuamente definidas, afirmadas ou redefinidas.

Os bens são, em qualquer sociedade, obviamente necessários para subsistência: comida, abrigo e outras funções utilitárias. Mas, convém o antropólogo aproximar o olhar, e perceber sua outra função. Eles também produzem e ajudam a manter relações sociais. Têm um duplo papel, provendo subsistência e desenhando as linhas das relações entre indivíduos e grupos. Para compreender as escolhas de consumo seria necessário, portanto, analisar os processos sociais como um todo, não apenas o ato de consumir isoladamente.

Ir além do uso prático dos bens seria, para Douglas e Isherwood, perceber as escolhas como formas de classificação, e o consumo como um ato ritual. Se, evocando Lévi-Strauss, as classificações do bom para comer diziam sobre o bom para pensar, exercício semelhante poderia ser feito com relação ao consumo. Os objetos podem ser bons para comer, vestir e abrigar, mas além de sua utilidade é preciso manter a idéia que são bons para pensar. As funções do consumo seriam, principalmente, as de classificar, selecionar e dar sentido ao mundo.

A questão proposta pelos autores, que de alguma forma norteia o livro, é “Por que as pessoas querem bens?”. Também estão preocupados, todavia, em discutir as idéias e teorias existentes – clássicas e contemporâneas – sobre as razões do não-consumo: por que elas não compram? por que deixam de consumir? e por que poupam? Não consumir poderia, por exemplo, ser por vezes percebido como não compartilhar. Os rituais de consumo seriam rituais de estabelecimento e manutenção de relações, participar ou não deles diz respeito a estar incluído em maior ou menor grau em um conjunto de relações sociais.

Douglas e Isherwood escrevem, em certa medida, uma resposta consistente e inovadora ao discurso de muitos críticos da sociedade de consumo, que relaciona o ato de consumir com alienação, estupidez, insensibilidade à miséria ou futilidade. A proposta de “O Mundo dos Bens” é a compreensão livre de preconceitos do fenômeno das relações de consumo na contemporaneidade. Relações de consumo são, antes de tudo, relações sociais, e, portanto, um objeto de estudo legítimo e rico para a Antropologia e as Ciências Sociais em geral.

O Mundo dos Bens está sendo publicado no Brasil praticamente vinte e cinco anos depois de sua primeira edição. Não há dúvidas de que esse fuso horário de mais de duas décadas impressiona. Traz, quem sabe, a pergunta: não estará fora de lugar? Se no final dos anos setenta sua publicação foi fundamental para o estabelecimento de novas possibilidades para o estudo do consumo na Grã-Bretanha, tantos anos depois, no Brasil, não deixa de ser obra fundadora. Sua publicação por aqui é uma das pedras fundamentais de um momento muito específico do campo, em que os estudos antropológicos sobre consumo estão se firmando e ganhando visibilidade no país. Não é sem razão que coincide com a tradução e publicação no Brasil de obras de outros importantes autores da área, como Daniel Miller (2002), Don Slater (2001), Grant McCracken (2003) e Colin Campbell (200?). A obra de Mary Douglas e Baron Isherwood está, por tanto, absolutamente sintonizada com o contexto que a recebe, colaborando para o crescimento desse campo de conhecimento e abrindo espaço para uma “Antropologia do Consumo” no país.

Sugestão de bibliografia

Colin Campbell. Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno. Rocco, 2001.
Daniel Miller. Teoria das Compras. Livraria Nobel, 2002.
Don Slater. Cultura do Consumo e Modernidade. Livraria Nobel, 2001
Grant McCracken. Cultura e Consumo. Mauad, 2003.


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(*) Débora Leitão é doutoranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da UFRGS.

Consumo,logo existo

Maria Luisa Célia E. de Dias

A obra Antropologia & Consumo, organizada por três antropólogas que realizam trabalhos na área do consumo, é o resultado do simpósio Consumo e Construção de Sujeitos e Bens no Mundo Contemporâneo, realizado no Primeiro Congresso Latino-Americano de Antropologia, em Rosário, Argentina, em 2005. A seleção dos textos e os assuntos abordados apresentam o consumo sob vários aspectos, mostrando como o tema é abrangente e como ele permeia a vida dos sujeitos inseridos numa sociedade urbana contemporânea. Os trabalhos aqui reunidos nos mostram como a questão do consumo se entranha na cultura brasileira, na cidadania, na saúde, nos diferentes estratos sociais, e como mobiliza a formação, transformação e consolidação de identidades. As diferentes origens teórico-conceituais e experiências de campo dos 15 autores, brasileiros e argentinos, resultam em uma obra rica, de temáticas diversificadas e surpreendentes. Os artigos denotam amadurecimento teórico, densidade etnográfica, características as quais fazem com que o leitor conheça, através dos textos, como discussões acadêmicas de ponta sobre consumo e práticas investigadas se imbricam.

O livro está dividido em cinco capítulos. No Capítulo I, "Consumo e Cultura Brasileira", traz dois artigos interessantes que abordam o assunto de maneira inusitada. Com o sugestivo título de O Luxo do Povo e o Povo do Luxo: Consumo e Valor em Diferentes Esferas Sociais no Brasil, as autoras Krische Leitão e Pinheiro Machado, tendo como origem duas etnografias aparentemente opostas, investigam qual o significado da pirataria de marcas ou grifes de luxo – símbolos de status e poder –, e em contrapartida a apropriação de itens da cultura popular por profissionais da moda, questionando a democratização das práticas de consumo num país que segundo as autoras se pensa híbrido, cordial e aberto à fluidez e à permeabilidade. No segundo artigo, Mais Feijoada e Samba: Notas sobre a Cultura Negra Brasileira, Rezende Gonçalves e Alves Ribeiro discorrem com ineditismo a questão, tão debatida e polêmica, entre a cultura negra e cultura brasileira, os limites tênues e inconstantes de ambas, problematizando o assunto através da feijoada e do samba trazendo a tona e pondo em xeque algumas certezas sobre como o local e o global se engendram mútua e continuamente através das suas historicidades.

Já, no Capítulo II, "Consumo e Cidadania na Argentina", Ana Wortman nos brinda com uma excelente análise, trazendo à tona as complexas e invisíveis conexões sobre a nova conformação cultural que emerge na Argentina, denominada pela autora de esfera pública paralela, por meio de determinadas práticas e campos culturais – cinema, música e teatro, em seu artigo Sociedade Civil na Argentina Pós-Crise: a Conformação de uma Esfera Pública Paralela. De maneira diversa Pina e Arribas, atentas ao atual momento argentino, refletem sobre o significado e as perspectivas de uma categoria emergente: o cidadão consumidor. No texto O Cidadão Consumidor: o Nascimento de uma Nova Categoria, versam sobre a intersecção das categorias consumidor e cidadão, e como elas propiciarão um consumo mais cidadão, através da abertura de novos espaços reivindicatórios, conseqüência da implementação da lei do consumidor.

O tema "Consumo e Saúde", Capítulo III, prima pela maneira singular com que é tratado pelos autores. O primeiro artigo aborda o assunto por meio de uma etnografia sobre o consumo de imagens fetais, numa clínica de ultrasonografia, descrita e analisada brilhantemente pela antropóloga Lílian Chazan. No segundo artigo o autor Rogério Lopez Azize instaura uma discussão sobre os medicamentos do bem-estar e da auto-estima, como são designados o Prozac, Viagra e Xenical, trabalhando com reportagens, discursos de usuários e dos médicos que conceberam a ingestão desses medicamentos com estilo de vida, ressemantizando a dualidade saúde-doença.

Dando continuidade ao tema, o Capítulo IV, "Consumo e Classe Social", propõe-se a retratar o significado do consumo em esferas sócias opostas. O artigo de Sergio Castilho pondera como é o consumo em classes ditas populares, mostrando que, antes de ser excludente, o consumo, age como fator de inclusão e pertencimento dos indivíduos estudados na sociedade envolvente, definindo identidades e dando a conhecer a sua visão de mundo. O artigo aponta dados e conclusões interessantes, ainda que por vezes exagere no uso dados estatísticos. Ao ler o artigo de Patrícia Gomensoro somos arremessados para o outro lado da dimensão social. Etnografando um grupo de degustadores de vinho, Gomensoro, nos dá a conhecer até que ponto o exercício da degustação torna-se um sinal emblemático que separa os connaisseurs, com percepção esclarecida, das pessoas comuns: é Bourdieu na prática.

Completando a obra, o Capítulo V, "Consumo e Identidades Jovens", como o próprio título faz referência, discute dimensões simbólicas das práticas dos jovens relacionadas com o consumo musical, em Buenos Aires, e o vestuário, na cidade do Rio de Janeiro. A antropóloga argentina Cecília Benedeti traz à baila uma detalhada discussão sobre como o rock contemporâneo argentino pode ser (re)pensado como bem de consumo cultural e como espaço de sociabilidade. Ela também trata da ressignificação de valores nesse campo, mostrando como alguns sinais delimitam uma identidade dita roqueira em certos grupos de jovens urbanos da cidade de Buenos Aires.

Abordando o tema dos estilos de vida, a autora Marcela Pias Andrade percorre centros culturais em determinados bairros da capital portenha, onde investiga e caracteriza as práticas de consumo cultural desenvolvidas por grupos de jovens de estratos sociais médios. Ela analisa como estas práticas delimitam contornos de gosto, hábitos e estilos de vida.

Cidade maravilhosa, morros cariocas, música funk e seus figurinos são as temáticas escolhidas por Mylene Mizrahi, ao etnografar um grupo de jovens participantes de bailes funk dos morros do Rio de Janeiro. A autora mostra como esses itens se imbricam para construir uma identidade jovem urbana por ela denominada de "identidade funqueira". A novidade introduzida pela autora no seu artigo reside em sublinhar a importância da análise das características materiais dos objetos, algumas vezes deixadas de lado quando empreendemos estudos sobre os significados simbólicos.

Eis a questão: por que ler o livro? Porque através de um trabalho teóricoprático muito bem fundamentado os autores resgatam, através de inusitadas e ao mesmo tempo, poderíamos dizer, até triviais práticas de consumo, a alteridade, a diversidade, a produção de significado demarcando a perspectiva cultural da construção dos grupos e dos indivíduos investigados, ligando-os ao aspecto relacional dessa construção. Enfim, é dessa maneira que a obra captura os modelos alternativos, as possibilidades de inclusão, negociação entre os sujeitos, ressemantização, cidadania que o consumo adquire atualmente na sociedade contemporânea.





*Mestranda em Antropologia Social.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Algumas considerações acerca da indústria cultural:suas potencialidades politizadoras e reprodutoras

Marisa Geralda Barbosa

Resumo: Na literatura especializada sobre os conceitos frankfurtianos, verificamos nos textos de Francisco Rudiger uma releitura do caráter contraditório da indústria cultural e, sobretudo, uma releitura do aparente pessimismo adorniano. Instigados por essa problemática, decidimos trabalhar nesse texto as abordagens acerca da indústria cultural, quanto ao seu potencial reprodutor e mantenedor da sociedade, como também quanto ao seu potencial politizador e emancipatório. Para isso, valemo-nos dos textos de Walter Benjamin, Kracauer, Adorno e Horkheimer, Francisco Rudiger, Marilena Chauí e César Bolaño. Destacamos, entre esses, o texto de Rudiger, que contesta as visões preconceituosas e estereotipadas, muito difundidas no meio acadêmico, segundo as quais Adorno é pessimista e Benjamin é otimista em relação à indústria cultural.

Unitermos: Indústria cultural, Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, Walter Benjamin, reprodução social, emancipação.

Abstract: In the specialized literature about the frankfurtians concepts, we verified in Francisco Rudiger's texts a reading over again of the contradictory character of the cultural industry and, above all, a reading over again of the apparent adornian pessimism. We have instigated by this problematic and we have decided to work in this text the abordages concerning the cultural industry, with relation to its reproducer and maintainer potential of the society, as well with relation to its politicizer and emancipator potential. For that, we used texts of Walter Benjamin, Kracauer, Adorno and Horkheimer, Francisco Rudiger, Marilena Chauí and César Bolaño. We have detached, among those, Rudiger's text, that contest the preconceptuous and stereotyped visions, very diffused in the academic middle, according to which Adorno is pessimistic and Benjamin is optimistic in relation to the cultural industry.

Key-words: Cultural industry, School of Frankfurt, Theodor Adorno, Walter Benjamin, social reproduction, emancipation.



O estudo da infra-estrutura capitalista, base material da sociedade, origem das riquezas e do desenvolvimento tecnológico, sempre foi a preocupação central de Karl Marx. Infra-estrutura, para Marx, compreende o conjunto das relações sociais de produção e das forças produtivas. Sobre a infra-estrutura, desenvolve-se a chamada superestrutura, que compreende o campo da vida política, espiritual e cultural. O processo de desenvolvimento da infra-estrutura é quem vai dar a intensidade de desenvolvimento da superestrutura, superestrutura esta que evolui bem mais lentamente. Dessa forma, apesar da relação entre infra e superestrutura não ser mecânica, linear, mas, sim, complexa e recíproca, seria impossível compreender os aspectos superestruturais sem antes compreender a base material.

Segundo Marx, é na esfera da superestrutura que se dá o processo de reificação da sociedade, que está estreitamente ligado ao processo de alienação. Reificação e alienação significam a coisificação das relações sociais, processo no qual tudo se transforma em mercadoria e parece ganhar vida autônoma. As contradições da base material, os conflitos entre as relações sociais de produção e as forças produtivas, se reproduzem nas esferas da superestrutura e se fazem notar pelos homens. Nesse sentido, a esfera dos bens culturais, como esfera integrante da superestrutura, é lócus tanto de reprodução do sistema quanto de possibilidade de conscientização e politização das massas.

De modo geral, os frankfurtianos privilegiaram as pesquisas e estudos acerca da superestrutura (ideologia, cultura etc) ou mesmo sobre outros temas (revolução, movimentos sociais), porém, sob a ótica da superestrutura. No caso da indústria cultural, os frankfurtianos não a inseriam como uma esfera existente sobre a sociedade, mas como integrante, como uma esfera que faz parte da sociedade. Embora o método que os frankfurtianos usavam se fundamentasse no marxismo, eles modificaram alguns de seus pressupostos básicos e combinaram-no com outros métodos. Inspiravam-se no jovem Marx, mais humanista e menos rigidamente determinista, ao contrário daquele marxismo que servia de ideologia para a política da União Soviética. Assim, os frankfurtianos procuraram elucidar o caráter contraditório da conquista racional do mundo, elaboraram uma crítica da massificação da indústria cultural, dos regimes totalitários, combinaram marxismo com análise freudiana para compreender a personalidade do indivíduo no sistema capitalista etc.

Juntamente com Horkheimer, Adorno elaborou o conceito de “indústria cultural”, identificando a exploração comercial e a vulgarização da cultura, como também a ideologia da dominação da natureza pela técnica (que tem como conseqüência a dominação do próprio homem). Neste texto, procuraremos discorrer a respeito das potencialidades e das contradições da chamada indústria cultural.

A expressão indústria cultural não é sinônimo de meios de comunicação. Tal expressão não se refere às empresas produtoras e nem às técnicas de difusão dos bens culturais. Em essência, significa a transformação da mercadoria em cultura e da cultura em mercadoria, ocorrida em um movimento histórico-universal, que gerou o desenvolvimento do capital monopolista, dos princípios de administração e das novas tecnologias de reprodução (sobretudo, a fotografia e o cinema). Em linhas gerais, a indústria cultural representa a expansão das relações mercantis a todas as instâncias da vida humana. “Horkheimer e Adorno usam o termo indústria cultural para referirem-se, de maneira geral, às indústrias interessadas na produção em massa de bens culturais.” (Thompson apud Rudiger, 1999a, p.18).

Adorno & Horkheimer (1985), em “Dialética do Esclarecimento”, usaram o conceito “indústria cultural”, em lugar de “cultura de massas”, uma vez que esse último pode levar a uma idéia equivocada de uma cultura espontaneamente popular. Já o conceito de indústria cultural significa uma forma de mercantilização da cultura de forma vertical, autoritária, que procura adaptar as mercadorias culturais às massas e as massas a essas mercadorias. Cabe lembrar também que a categoria “massas” significa a homogeneização das classes sociais; o processo de massificação atinge todas as classes. Dessa forma, por exemplo, tanto indivíduos das classes mais altas quando das classes mais baixas são seduzidos pela indústria cultural. Com a indústria cultural, essas classes, objetivamente, se mostram distantes, mas, subjetivamente, se apresentam muito próximas.

Os meios de comunicação de massa (veículos da indústria cultural) nos prometem, através da publicidade e da propaganda, colocar a felicidade imediatamente em nossas mãos, por meio da compra de alguma mercadoria: seja ela um CD, um calçado, uma roupa, um comportamento, um carro, uma bebida, um estilo etc. A mídia nos promete e nos oferece essa felicidade em instantes. O público, infantilizado, procura avidamente satisfazer seus desejos. Uma vez que nos tornamos passivos, acríticos, deixamos de distinguir a ficção da realidade, nos infantilizamos e, por isso, nos julgamos incapazes, incompetentes para decidirmos sobre nossas próprias vidas etc. Uma vez que não nos julgamos preparados para pensar, e desejamos ouvir dos especialistas da mídia o que devemos fazer, sentimo-nos intimidados e aceitamos todos os produtos (em formas de publicidade e propaganda) que a mídia nos impõe. Porém, veremos mais adiante que a indústria cultural não possui somente um potencial reprodutor e mantenedor do sistema. Embora saibamos que a ideologia presente na indústria cultural signifique sempre dominação, isso não significa a inexistência de resistências a essa dominação. Uma coisa é dizermos que os indivíduos estão “conformados” com as imposições da indústria cultural, outra coisa é dizermos que eles aceitam tal dominação. Defendemos que a subjetividade do indivíduo jamais será reificada totalmente.

Com as novas técnicas de reprodução das obras de arte, os objetos de arte (sejam eles pertencentes à cultura popular ou à cultura de elite) perderam o sentido de autenticidade, contemplação, testemunho histórico etc. Não só o sentido da obra de arte mudou, como também a relação das massas com essas novas formas de arte. Nas leituras que realizamos sobre a indústria cultural, notamos que as referências realizadas a Walter Benjamin e Kracauer conduzem à idéia de serem esses pensadores otimistas, vislumbrando na massificação da cultura um potencial emancipatório. Ao contrário, as referências feitas a Adorno e Horkheimer, sobretudo a Adorno, indicam o pessimismo de suas análises quanto à indústria cultural, concebendo-a como uma jaula de ferro.

Benjamin, no início de seu texto sobre “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, refere-se à análise prognóstica de Marx, que vislumbra a subversão do sistema capitalista pela classe proletária. Propondo-se estudar as esferas da superestrutura, sobretudo as esferas culturais, Benjamin também faz o seu prognóstico. Apesar das esferas superestruturais evoluírem bem mais lentamente, já na década de 1930, percebia em seu desenvolvimento as possibilidades de rupturas com as formas culturais tradicionais anteriores. Valendo-se do método marxista, observa que as condições que sinalizam uma ruptura com as formas culturais anteriores estão presentes nas condições atuais de produção. Apesar disso, “a dialética dessas condições está bem mais nítida na superestrutura do que na economia.” (Benjamin, 1983, p.5). Nesse sentido, Benjamin rompe com as noções tradicionais de arte, que enaltecem valores como poder criativo, genialidade, valor de eternidade e mistério, valores estes que, naquela época, eram a base do projeto fascista.

Citando Paul Valéry, Benjamin (1983) nos revela que a reprodutibilidade das obras de arte existe há muito tempo. O que mudou foram os meios, as técnicas, que modificaram inclusive a própria noção do que é arte e a relação dos indivíduos com a arte. As técnicas de reprodução é que eram, no momento em que Benjamin escrevia, fenômenos novos.

No século XX, as técnicas de reprodução atingiram alto nível de desenvolvimento tecnológico, de modo que as próprias técnicas passaram a se impor como formas originais de arte. Exemplos disso são a fotografia e o cinema.

Anteriormente, as obras de arte estavam a serviço de um ritual (primeiro mágico, depois religioso) e a um grupo seleto de pessoas, uma classe privilegiada. (Benjamin, 1983). Com as novas técnicas de reprodução, com a perda da aura, a obra de arte foi reproduzida e difundida entre outras classes sociais, contribuindo para a emancipação da obra de arte de seu papel ritualístico. Com a perda da aura, toda a função da arte fica subvertida.

A imagem em uma pintura, que possui uma unidade e duração, foi substituída pela fotografia, uma realidade fugidia e reproduzida indefinidamente. A estátua de Vênus possuía significados diferentes para os gregos (objeto de culto) e clérigos medievais (ídolo maléfico). Porém, ambos significados possuíam um elemento em comum: gregos e medievais percebiam nessa Vênus o que ela trazia de único, ou seja, sua aura.

Ao definir a aura como “a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja”, nós, simplesmente, fizemos a transposição para as categorias do espaço e do tempo da fórmula que designa o valor de culto da obra de arte. Longínquo opõe-se a próximo. O que está essencialmente longe é inatingível. De fato, a qualidade principal de uma imagem que serve para o culto é de ser inatingível. Devido à sua própria natureza, ela está sempre “longínqua, por mais próxima que possa estar”. Pode-se aproximar de sua realidade material, mas sem se alcançar o caráter longínquo que ela conserva, a partir de quando aparece. (Benjamin, 1983, p.10)



O que falta na obra de arte reproduzida é “[...] o hic et nunc da obra de arte, a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra”. (Benjamin, 1983, p.7). “O hic et nunc do original constitui aquilo que se chama de sua autenticidade”. (Benjamin, 1983, p.7). A perda da autenticidade somada à perda do testemunho histórico significam a chamada “perda da aura”. Com as novas técnicas de reprodução, a obra de arte perde a sua autenticidade, perde aquela característica que lhe conferia ser um acontecimento único, singular, perde sua aura, tornando-se um fenômeno de massas.

O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese de reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho histórico da coisa – fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autoridade da coisa.(Benjamin, 1983, p.8)

Reproduzem-se, cada vez mais, obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzidas. Da chapa fotográfica pode-se tirar um grande número de provas; seria absurdo indagar qual delas é a autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de práxis: a política. (Benjamin, 1983, p.11)

A função artística da obra de arte (unicidade, testemunho histórico, contemplação, culto etc) passou a ser acessória com as técnicas de reprodutibilidade. Quando a obra de arte, com as novas técnicas de reprodução, sai dos limites das esferas de acesso burguês, de certa forma, se democratiza, pois o acesso se expande. Mas, ao mesmo tempo, a obra de arte se banaliza, perde sua aura, pois sua função passa a ser ideológica e política para a reprodução do sistema.

Para Benjamin, o cinema, ao restringir a aura, permite uma crítica revolucionária das concepções antigas de arte, possibilitando talvez uma crítica revolucionária das relações sociais e, inclusive, da propriedade privada. Porém, Benjamin não é ingênuo como pensam alguns intelectuais a seu respeito. Sua afirmação não é dogmática; ele apenas vislumbra uma possibilidade. Para ele, a reprodutibilidade técnica abre uma brecha ao liquidar com as formas tradicionais de arte e comunicação restritas a uma elite privilegiada. No entanto, está consciente da força do capitalismo em utilizar as novas técnicas em favor de sua reprodução.

Na medida em que restringe o papel da aura, o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a “personalidade do autor”; o culto do astro, que favorece ao capitalismo dos produtores e cuja magia é garantida pela personalidade que, já de há muito, reduziu-se ao encanto corrompido de seu valor de mercadoria. Enquanto o capitalismo conduz o jogo, o único serviço que se deve esperar do cinema em favor da revolução é o fato de ele permitir uma crítica revolucionária das concepções antigas da arte. Não contestamos, entretanto, que, em certos casos particulares, possa ir ainda mais longe e venha a favorecer uma crítica revolucionária das relações sociais, quiçá do próprio princípio da propriedade. (Benjamin, 1983, p.18).

O cinema, com o ator reduzido a uma mercadoria, com o ator que se transforma em astro e vende sua imagem rendendo lucros ao sistema, reproduz o capitalismo. Porém, o cinema também poderá ser revolucionário, ao contestar as concepções antigas de arte (arte contemplativa, ritualística, restrita à elite etc), contestando as relações sociais e até mesmo a propriedade privada.

Benjamin levantou uma questão muito importante. Ele não se preocupava em saber se o cinema era ou não arte. Seu real interesse era saber até que ponto o cinema interferia no caráter geral da arte.

As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa com relação à arte. Muito retrógrada face a um Picasso, essa massa torna-se bastante progressista diante de um Chaplin, por exemplo. (Benjamin, 1983, p.21)

Enquanto a pintura instiga à contemplação, no cinema, o olho não consegue se fixar, já que as imagens são rápidas e sucessivas. “A sucessão de imagens impede qualquer associação no espírito do espectador.” (Benjamin, 1983, p.25). No teatro e na pintura, segundo Benjamin, não há uma intervenção da arte na realidade. Há, sim, um distanciamento entre a realidade dada e o que está sendo representado. Já o filme intervém mais diretamente na realidade, uma vez que a câmara penetra na estrutura da própria realidade. Por isso, para Benjamin, o cinema é mais significativo para o homem moderno.

Benjamin pretende assinalar o fim da arte destinada a uma elite. Uma pintura era destinada à apreciação de um pequeno número de pessoas (a seleta classe burguesa) e não à multidão. Com as novas técnicas de reprodução, a base material continua sendo capitalista, porém, a arte passa a se destinar às massas. Não foi só uma mudança quantitativa (aumentou o número de participantes em relação às artes), mas também mudou o modo de participação dessas massas em relação às artes (mudança qualitativa).

Para Benjamin, a obra de arte, através da diversão, penetra nas massas, realizando tanto a função de diversão quanto de crítica social. O público de cinema seria, então, “um examinador que se distrai”. (Benjamin, 1983, p.27).

Ao contrário do que pensa Benjamin, para Duhamel, assistir a um filme não requer concentração alguma:

Trata-se de uma diversão de párias, um passatempo para analfabetos, de pessoas miseráveis, aturdidas por seu trabalho e suas preocupações... um espetáculo que não requer nenhum esforço, que não pressupõe nenhuma implicação de idéias, não levanta nenhuma indagação, que não aborda seriamente qualquer problema, não ilumina prisão alguma, não desperta nenhuma luz no fundo dos corações, que não excita qualquer esperança a não ser aquela ridícula, de um dia, virar star em Los Angeles. (Duhamel apud Benjamin, 1983, p.25)

Aquele que se concentra diante de uma obra de arte mergulha dentro dela. No caso da diversão, é a obra de arte que penetra na massa.

Através do seu efeito de choque, o filme corresponde a essa forma de acolhida. Se ele deixa em segundo plano o valor de culto da arte, não é apenas porque transforma cada espectador em aficionado, mas porque a atitude desse aficionado não é produto de nenhum esforço de atenção. O público das salas obscuras é bem um examinador, porém um examinador que se distrai.(Benjamin,1983, p.27)

Benjamin ressaltava os aspectos negativos e positivos da obra de arte com suas novas técnicas de reprodução. O fascismo, através da estetização da política, pode utilizar as massas no culto do líder e na perpetuação do regime de propriedade privada. Por outro lado, com o declínio da aura e com a possibilidade de politização da arte, surge um caminho para a emancipação da sociedade.

Adorno, em seus primeiros textos, destacou o caráter ideológico e reprodutor do sistema cultural. Destacaremos, aqui, a visão negativa de Adorno a respeito da indústria cultural.

Para Adorno (1985) , a técnica não deve ser pensada de uma maneira absoluta, mas deve ser relativizada, uma vez que proporciona a produção em série e, conseqüentemente, rompe com a distinção entre o que é arte e o que é o próprio sistema social. O cinema e o rádio não devem ser tomados como obras de arte, pois são apenas negócios a serviço da reprodução capitalista e da coisificação e padronização da cultura.

A indústria cultural liquidou com a obra de arte, destruiu sua capacidade crítica e transformadora. A indústria cultural passou a mediar a relação dos homens com a realidade. Por isso, Adorno discorda da análise benjaminiana que concebe o público como “um examinador que se distrai”.

Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos. E é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. [...] São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. (Adorno & Horkheimer, 1985, p.119).

Segundo Adorno, a indústria cultural transforma as atividades de lazer em um prolongamento do trabalho. Os homens recorrem a essas atividades como fuga. Porém, tais atividades os colocam novamente em condições de se submeterem ao processo de trabalho desqualificado e precarizado. A indústria cultural promete ao trabalhador, através de suas atividades de lazer, uma fuga do cotidiano, e lhe oferece, de maneira ilusória, esse mesmo cotidiano como paraíso. Nesse lazer é sempre oferecido ao trabalhador o mesmo, porque o novo é sempre um risco. A diversão é o prolongamento do trabalho. Ela é procurada por quem quer escapar do processo mecanizado das enfadonhas situações de trabalho, que são dominadas por seqüências de operações padronizadas. Porém, essas mesmas seqüências padronizadas estão também nas atividades de lazer. Os ritmos binários dos últimos hits são facilmente memorizados, e fornecem a sensação do retorno a uma eterna banalidade. Nos mais “variados” filmes de ação, somos tranqüilizados com a promessa de que o vilão terá um castigo merecido. Tanto nos hits quanto nos filmes, a vida parece estar nos dizendo que possui sempre as mesmas tonalidades e que devemos nos habituar a seguir os compassos previamente marcados. Dessa forma, sentimo-nos integrados.

A diversão, nesse sentido, é sempre alienante, conduz à resignação e em nenhum momento nos instiga a refletir o todo. Tal diversão, tal fuga da realidade, para Adorno, é um momento de catarse, no qual o indivíduo busca se isolar da realidade, alienando-se, para poder continuar mais tarde aceitando com resignação a exploração do sistema capitalista.

Mas a afinidade original entre os negócios e a diversão mostra-se em seu próprio sentido: a apologia da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza e abandona, desde o início, a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir. A liberação prometida pela diversão é a liberação do pensamento como negação.(Adorno & Horkheimer, 1985, p.135)

Uma das funções do cinema seria, então, a de regulador moral das massas, domando seus instintos revolucionários e emancipatórios, incutindo em suas cabeças um padrão de comportamento exibido em seus filmes, no sentido de manter e perpetuar o sistema.

Em um processo de sedução, convencimento e conquista, a indústria cultural vende ao público bens culturais. Mas para agradar ao público, não deve chocá-lo, fazê-lo pensar com informações novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que esse público já conhece. Nesse sentido, a indústria cultural não cria nada de novo. Ela se apropria de elementos da cultura popular e/ou de elite, banaliza-os, e devolve tudo isso ao público como algo novo[1]. A indústria cultural não nos pede o que as obras de arte da cultura popular e da cultura de elite nos exigem: pensamento, reflexão, crítica, sensibilidade, perturbação etc.

Francisco Rudiger (1999 a) também faz referência a essa vida sem reflexão do homem moderno, que passa suas horas de lazer exercendo falsas práticas, quer dizer, práticas impostas, coisificadas, que não fazem parte das experiências orgânicas, reais do sujeito. A tais práticas Rudiger denomina “pseudo-atividades”.

Pseudo-atividades são, por exemplo, as competições esportivas de fim de semana a que se dedicam os empregados de escritório, os eventos sociais que os intelectuais teimam em freqüentar, os roteiros turísticos que levam os caçadores de pechinchas aos museus de arte nos dias em que o comércio está fechado mas, também, passar todo um dia ouvindo música pelo rádio ou matar o tempo com jogos eletrônicos. Em linhas gerais, pode-se dizer que caem nesse âmbito todas as práticas que, para o sujeito, representam um passatempo, permitem que se ocupe de maneira mais ou menos prazerosa e arbitrária durante o tempo em que não está sendo ocupado com as tarefas que lhe exige a sociedade. (Rudiger, 1999, p.51)

Para Adorno, a indústria cultural sonega informação e aliena os indivíduos, na medida em que padroniza a sociedade. Veremos adiante, porém, que Adorno, em seus textos posteriores, entende que nem tudo está totalmente reificado. Para ele, o sujeito ainda continua vivo e sua subjetividade jamais se deixará reificar por completo.

Nosso objetivo é abordar a cultura em seus aspectos contraditórios: como esfera da reprodução e da transformação social. Para isso, recorremos aos textos de Walter Benjamin, Adorno e Horkheimer, Francisco Rudiger, César Bolaño e Siegfried Kracauer. Daremos destaque, no texto de Francisco Rudiger, à sua releitura de Adorno. Rudiger não apresenta Adorno como o pessimista de Frankfurt,[2] e procura sublinhar, nos textos mais recentes desse frankfurtiano, a perspectiva contraditória em que analisava a indústria cultural.

Com a mudança estrutural da esfera pública, processo pelo qual o espaço público (um espaço restrito à classe burguesa; espaço das decisões políticas, espaço dos alfabetizados, letrados e com acesso à ciência) se democratizou, estendendo-se ao acesso de outras classes sociais, as esferas culturais também foram repensadas. Não faz parte da lógica da razão instrumental a socialização do acesso ao conhecimento e à realidade. A ideologia assume aqui um papel fundamental. Esse momento coincide com um considerável desenvolvimento técnico e com a ciência voltada para a aplicação técnica, ambos frutos da razão instrumental, cuja lógica é a dominação, controle e poder sobre a natureza e sobre a sociedade, transformando a própria ciência em senso comum cientificista. Nesse aspecto, o homem se tornou um escravo de sua própria técnica. Vale observar , no entanto, que esse “homem” não se limita à classe proletária. Uma das importantes contribuições dos frankfurtianos foi revelar que o processo de sujeição aos mecanismos técnicos e à cultura massificada é válido para todas as classes sociais. Assim, essa dominação técnica é anônima e dispersa.

A partir da segunda revolução industrial do século XIX, as artes, antes vinculadas a uma função religiosa, foram submetidas às regras do mercado capitalista e da ideologia da indústria cultural (indústria esta baseada no consumo de “produtos culturais” fabricados em série) (Chauí, 1994). As obras de arte transformaram-se em mercadorias como tudo o que existe no capitalismo. Sem sua aura, a obra de arte não se democratizou, massificou-se, transformou-se em mercadoria anunciada nas formas propaganda e publicidade.

[...] A esfera pública assume funções de propaganda (para propagar idéias ou conceitos): perde-se em parte o seu caráter publicitário (de tornar público) e o consumo cultural passa a servir à “propaganda econômica e política” (ou à publicidade – comercial – e à propaganda, nos nossos termos). (Bolaño, 2000, p.86)

As obras de arte poderiam democratizar-se com as novas técnicas de reprodutibilidade, com os novos meios de comunicação. Assim, todos teriam acesso a elas. O acesso aos bens culturais (obras de arte e do pensamento) é, em tese, um direito de todos e não um privilégio de alguns. No entanto, com a indústria cultural, a cultura se massificou, se vulgarizou.

Da nossa perspectiva, entendemos que a indústria cultural não é simplesmente dominadora das subjetividades das massas. Segundo Rudiger (1999b):

(...) As posições sobre o problema da arte de massa podiam ser divididas então em dois grupos. Os conservadores culturais condenavam seu aparecimento pela concepção bárbara e dependência às técnicas industriais, que ameaçava os valores culturais dominantes na sociedade. Em contraponto, os intelectuais progressistas tendiam a saudar a nova cultura, especialmente o potencial democrático eu supunha contido em sua base tecnológica. (Rudiger, 1999b, p.66)

A perda da aura, perda do caráter religioso, mitológico e burguês das obras de arte, o rompimento com a tradição, o desenvolvimento dos meios técnicos de reprodução, enfim, o processo de massificação era, de modo geral, para os frankfurtianos, um processo sem volta.

Kracauer, Benjamin e Bloch não eram otimistas ingênuos. Benjamin ressaltava com pesar a perda da aura, o desencantamento da realidade. Bloch destacava a “artificialidade da técnica e a hediondez da máquina”. (Rudiger, 1999b, p.71-72).

Para eles, a reprodutibilidade da obra de arte e a massificação da sociedade, em condições de vida cada vez mais tecnificadas, permitem antever o fim da separação entre vida e arte e, portanto, uma nova era para a humanidade. Eles entenderam os fenômenos de massa recém-surgidos como expressões de uma cultura deformada pelo poderio econômico, mas também viram neles um potencial de libertação. A cultura de massa que estava se gestando era portadora de bons auspícios, não de desespero. As técnicas estavam criando novas formas de expressão, cujo sentido principal era político.(Rudiger, 1999b, p.72)

[...] O processo que leva à superação da cultura burguesa tradicional da obra de arte única etc., se carrega inegáveis potencialidades no sentido da democratização da cultura, é essencialmente um processo de constituição de uma cultura e de uma forma de produção cultural especificamente capitalistas, representando, antes de tudo, a vitória mais retumbante do sistema: a extensão da lógica do capital ao campo da cultura e ao conjunto dos modos de vida.(Bolaño, 2000, p.117)

Porém, em seu bojo, a massificação também traz elementos revolucionários, capazes inclusive de subverter as próprias estruturas sociais.

As tecnologias [...] levaram à perda dessa aura que cercava as obras de arte. A cultura burguesa tinha um sentido elitista e reacionário: seu declínio tem um significado progressista. Através das novas técnicas, os homens dão um passo adiante em seu processo de libertação da mitologia.(Rudiger, 1999b, p.73)

Com o fim da estética burguesa, processo gerado com a perda da aura e com as novas técnicas de reprodução, surge uma estética voltada às massas. Na estética burguesa, as massas não se viam. Em obras de arte e de pensamento massificadas, as massas passaram a se ver enquanto massas, enquanto sujeitos da história, enquanto protagonistas. Por isso, segundo Benjamin (1983), as massas valorizam mais um Chaplin do que um Picasso. O cinema de Chaplin pressupõe que é para a massa. Já a pintura é para um público limitado. O cinema só se realiza na exibição, e não na forma de culto. Nesse sentido,

o capitalismo difundiu uma maneira de agir que desintegra as cosmovisões tradicionais tanto quanto seus sucedâneos artísticos e literários, criados pela cultura burguesa. Entretanto, também esses tinham um caráter mistificador, encobriam das massas a verdadeira natureza da sociedade. As tecnologias de reprodução não somente colaboram nesse processo, como permitem a elas preencher o vazio em que foram lançadas, pois “elevam a distração ao nível da cultura”. A cultura burguesa era uma espécie de mito, continha promessas irrealizáveis que, mais tarde, tornaram-se irrealistas. Os lazeres industriais, ao contrário, constituem uma experiência imediata, totalmente legítima, através da qual as massas encontram sua própria maneira de expressão e compensam a perda de sentido imposta pela civilização.(Rudiger, 1999b, p.79-80)

E ainda:

As categorias da cultura burguesa perderam o sentido em um mundo vazio e mecânico. Os lazeres de massa ajudam as massas a se libertar de sua mitologia. Através deles, a realidade se despe dos seus últimos vestígios. As fantasmagorias contêm, portanto, um sentido progressivo. “O púbico encontra a si mesmo na externalidade pura; sua própria realidade é revelada nas formidáveis impressões que se sucedem fragmentariamente”. Permitindo pela primeira vez que ele enxergue a si mesmo como massa, descortinam a possibilidade de que esse público tome a condução da vida sob suas mãos, ao invés de servir a um mecanismo embrutecedor e mesquinho, que se conduz de maneira caótica e sem o seu controle. “Quanto maior é o número de pessoas que percebem a si mesmas como massas, mais rápido as massas vão desenvolver seus poderes de maneira produtiva nos domínios cultural e espiritual dignos de seu financiamento.” (Rudiger, 1999b, p.80-81)

Se a realidade, na arte reproduzida, “[...] fosse ocultada, o público não poderia atacá-la e transformá-la; a sua revelação no divertimento tem um significado moral. Entretanto, este é o caso só quando o divertimento não é um fim em si mesmo.” (Kracauer, 1989).

Ao contrário da idéia taxativa e preconceituosa a respeito de alguns textos de Adorno, caracterizando-o como “o pessimista de Frankfurt”,[3] Rudiger (1999) nos apresenta um outro Adorno, que, em seus textos mais recentes, do final da década de 1960, defende que nem tudo está totalmente reificado. Segundo a leitura de Rudiger, o sujeito para Adorno ainda continua vivo. Esse sujeito não aceita pacificamente tudo o que lhe é imposto pela indústria cultural. Exemplo disso é que, cada vez mais, a indústria cultural tem dificuldades de persuasão; novas campanhas publicitárias são sempre reinventadas. Conforme Adorno nota, “o movimento da indústria cultural, não por acaso, coincide com o da publicidade: a publicidade é o elixir da vida da indústria cultural.” (Adorno apud Rudiger, 1999a, p.35). A perspectiva adorniana, segundo Rudiger, é de que a indústria cultural aliena, distrai, manipula, mas, por outro lado, jamais aliena totalmente, pois a subjetividade do indivíduo jamais se deixa reificar por completo. Diante da ideologia veiculada pelos meios de comunicação de massa, diante dos bens culturais produzidos pela indústria cultural e veiculados pela mídia, alguns homens aceitam o “produto” veiculado, outros se conformam e ainda há aqueles que conseguem enxergar sem ilusão a realidade. Dessa forma, o comportamento dos indivíduos frente à indústria cultural não é, de modo algum, absoluto. A atitude do indivíduo é ambígua frente à pressão do sistema para a integração à vida moderna reificada.

O capitalismo avançado é dominado pelas corporações transnacionais e a formação de blocos político-econômicos. Em função disso, não deve ser visto com um regime totalitário: constitui um momento de transição, caracterizado por uma dialética, cuja tendência dominante, vista em termos virtuais, é a dominação totalmente burocrática, mas o curso – de fato – não é linear nem estável, apresentando-se mundialmente como uma “procissão duradoura e ininterrupta de catástrofes, caos e crueldades ao mesmo tempo que abre a possibilidade de uma revolução[4]”. (Rudiger, 1999, p.40)

Isso tudo nos leva a concluir que o comportamento dos indivíduos não é resultado absoluto da indústria cultural e do que propagam, de modo geral, os meios de comunicação de massa. A técnica não é um autômato. A indústria cultural não se reproduz sozinha. Ela é mediada por sujeitos com relativo grau de autonomia e que procuram se fazer sujeitos diante do processo de reificação.

Enquanto a estrutura social que mais e mais se reveste de feições sistêmicas e mundiais conservar-se antagonística e assim perpetuar as contradições que definem seu modo de ser, todavia deve-se considerar também que há uma possibilidade de mudança. “Dentro do presente estado de coisas, hoje ou amanhã podem surgir situações que, provavelmente venham a ser catastróficas, mas também podem restaurar a possibilidade de uma ação prática hoje obstruída[5]”.(Rudiger, 1999, p.41)

Adorno & Horkheimer, nas notas à nova edição alemã, datadas de abril de 1969, referentes à obra “Dialética do Esclarecimento”, informam que não foram retocadas nem mesmo as “passagens manifestamente inadequadas” (1985, p.10). Dizem que se efetuassem tais alterações, seria como escrever um outro livro. Concluem essas notas apresentando-nos uma perspectiva de possibilidade de emancipação do indivíduo diante do mundo administrado:

A idéia de que hoje importa mais conservar a liberdade, ampliá-la e desdobrá-la, em vez de acelerar, ainda que indiretamente, a marcha em direção ao mundo administrado, é algo que também exprimimos em nossos escritos ulteriores. (1985, p.10).

A Dialética do Iluminismo, em especial, pode ser vista como uma tentativa de integrar a crítica cultural conservadora em uma teoria social crítica. Dialeticamente, os pensadores concluíram que, perante o progresso cego e desenfreado das forças produtivas, o conservadorismo pode expressar o seu contrário – a mentalidade revolucionária; e que, atualmente, a postura crítica consiste em tomar partido pelos resíduos de liberdade de consciência restantes e não “acelerar, ainda que indiretamente, a marcha em direção ao mundo administrado.”[6] (Rudiger, 1999b, p.67)

O projeto filosófico, político, científico e cultural do Iluminismo não se cumpriu. Horkheimer estudou a influência desse projeto de sociedade na formação da sociedade contemporânea e na formação da ideologia dessa sociedade. O projeto iluminista só será desenvolvido quando a razão for crítica, capaz de desmascarar a ideologia. O mundo foi conquistado racionalmente, porém, a racionalidade científica e técnica conseguiu o efeito de converter o homem em um escravo de sua própria técnica. O “projeto de modernidade”, projeto de tornar o homem, através da razão, livre das autoridades míticas e das opressões do tradicionalismo, não está acabado. O potencial do Iluminismo de libertar a humanidade foi cooptado, pervertido e transformado em um estilo opressivo de vida, privando, progressivamente, o homem de sua liberdade. Para os frankfurtianos, só através da valorização da razão crítica o homem poderá se emancipar das ideologias e das dominações político-econômicas.

As modernas técnicas de comunicação e de reprodução da obra de arte estão aí e vieram para ficar. Aproximamo-nos das concepções que apontam para a possibilidade de, através das técnicas de reprodução e do uso dos meios de comunicação de massa, existirem brechas para a organização e difusão de um campo cultural politizador e emancipatório.

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[1] Por exemplo, a luta dos jovens e do movimento estudantil contra a sociedade de consumo, na década de 1960 e 1970, no Brasil, foi muito bem capitalizada e funcionalizada pelas famosas indústrias da moda. Esse processo culminou na transformação do estilo despojado dos hippies em “hippies de boutique”.

[2] Umberto Eco (2001), ao estudar e analisar as diferentes posições dos pensadores frankfurtianos sobre a indústria cultural, elaborou uma distinção polêmica entre eles. Segundo Eco, tais pensadores se dividem entre “apocalípticos” (aqueles que criticam a indústria cultural, concebendo-a como instrumento fundamental para o controle e a manutenção da sociedade capitalista) e “integrados” (aqueles que vêem aspectos positivos na indústria cultural, concebendo-a como instrumento fundamental para a manutenção e expansão de todas as sociedades democráticas). Nessa divisão entre apocalípticos e integrados, Eco classifica Adorno como apocalíptico, pessimista.

[3] A idéia de um Adorno pessimista está presente em Eco (2001).

[4] Adorno apud Kellner, Critical theory, marxim and modernity, p.78. Cf. Adorno, T. Consignas [1969]. Buenos Aires: Amorrotu, 1973, p.39.

[5] Adorno apud Wiggershaus, The Franfurkt School, p.566

[6] Adorno & Horkheimer, 1985, p.10.

Adorno e a indústria cultural

Daniel Ribeiro da Silva*

Resumo:

O presente texto pretende ser mais uma explanação de algumas reflexões do filósofo T. W. Adorno (1903-1969) acerca da Indústria Cultural vigente no século XX.

Palavras-chave: Adorno, indústria cultural, ideologia, razão técnica, arte.



A Indústria Cultural impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. [2] Com as palavras do próprio Adorno, podemos compreender o porque das suas reflexões acerca desse tema.

Theodor Wiesengrund-Adorno, em parceria com outros filósofos contemporâneos, estão inseridos num trabalho muito árduo: pensar filosoficamente a realidade vigente. A realidade em que vivia estava sofrendo várias transformações, principalmente, na dimensão econômica. O Comércio tinha se fortalecido após as revoluções industriais, ocorridas na Europa e, com isso, o Capitalismo havia se fortalecido definitivamente, principalmente, com as novas descobertas cientificas e, conseqüentemente, com o avanço tecnológico. O homem havia perdido a sua autonomia. Em conseqüência disso, a humanidade estava cada vez mais se tornando desumanizada. Em outras palavras, poderíamos dizer que o nosso caro filósofo contemplava uma geração de homens doentes, talvez gravemente. O domínio da razão humana, que no Iluminismo era como uma doutrina, passou a dar lugar para o domínio da razão técnica. Os valores humanos haviam sido deixados de lado em troca do interesse econômico. O que passou a reger a sociedade foi a lei do mercado, e com isso, quem conseguisse acompanhar esse ritmo e essa ideologia de vida, talvez, conseguiria sobreviver; aquele que não conseguisse acompanhar esse ritmo e essa ideologia de vida ficava a mercê dos dias e do tempo, isto é, seria jogado à margem da sociedade. Nessa corrida pelo ter, nasce o individualismo, que, segundo o nosso filósofo, é o fruto de toda essa Indústria Cultural.

Segundo Adorno, na Indústria Cultural, tudo se torna negócio. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. [3] Um exemplo disso, dirá ele, é o cinema. O que antes era um mecanismo de lazer, ou seja, uma arte, agora se tornou um meio eficaz de manipulação. Portanto, podemos dizer que a Indústria Cultural traz consigo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel especifico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema.

É importante salientar que, para Adorno, o homem, nessa Indústria Cultural, não passa de mero instrumento de trabalho e de consumo, ou seja, objeto. O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho. Portanto, o homem ganha um coração-máquina. Tudo que ele fará, fará segundo o seu coração-máquina, isto é, segundo a ideologia dominante. A Indústria Cultura, que tem com guia a racionalidade técnica esclarecida, prepara as mentes para um esquematismo que é oferecido pela indústria da cultura – que aparece para os seus usuários como um “conselho de quem entende”. O consumidor não precisa se dar ao trabalho de pensar, é só escolher. É a lógica do clichê. Esquemas prontos que podem ser empregados indiscriminadamente só tendo como única condição a aplicação ao fim a que se destinam. Nada escapa a voracidade da Indústria Cultural. Toda vida torna-se replicante. Dizem os autores:

Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos (...) paralisam essas capacidade em virtude de sua própria constituição objetiva (ADORNO & HORKHEIMER, 1997:119).
Fica claro portanto a grande intenção da Indústria Cultural: obscurecer a percepção de todas as pessoas, principalmente, daqueles que são formadores de opinião. Ela é a própria ideologia. Os valores passam a ser regidos por ela. Até mesmo a felicidade do individuo é influenciada e condicionada por essa cultura. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer exemplificam este fato através do episódio das Sereias da epopéia homérica. Ulisses preocupado com o encantamento produzido pelo canto das sereias tampa com cera os ouvidos da tripulação de sua nau. Ao mesmo tempo, o comandante Ulisses, ordena que o amarrem ao mastro para que, mesmo ouvindo o cântico sedutor, possa enfrentá-lo sem sucumbir à tentação das sereias. Assim, a respeito de Ulisses, dizem os autores:


O escutado não tem conseqüências para ele que pode apenas acenar com a cabeça para que o soltem, porém tarde demais: os companheiros, que não podem escutar, sabem apenas do perigo do canto, não da sua beleza, e deixam-no atado ao mastro para salvar a ele e a si próprios. Eles reproduzem a vida do opressor ao mesmo tempo que a sua própria vida e ele não pode mais fugir a seu papel social. Os vínculos pelos quais ele é irrevogavelmente acorrentado à práxis ao mesmo tempo guardam as sereias à distância da práxis: sua tentação é neutralizada em puro objeto de contemplação, em arte. O acorrentado assiste a um concerto escutando imóvel, como fará o público de um concerto, e seu grito apaixonado pela liberação perde-se num aplauso. Assim o prazer artístico e o trabalho manual se separam na despedida do antemundo. A epopéia já contém a teoria correta. Os bens culturais estão em exata correlação com o trabalho comandado e os dois se fundamentam na inelutável coação à dominação social sobre a natureza (ADORNO & HORKHEIMER, 1997:45).


É importante frisar que a grande força da Indústria Cultural se verifica em proporcionar ao homem necessidades. Mas, não aquelas necessidades básicas para se viver dignamente (casa, comida, lazer, educação, e assim por diante) e, sim, as necessidades do sistema vigente (consumir incessantemente). Com isso, o consumidor viverá sempre insatisfeito, querendo, constantemente, consumir e o campo de consumo se torna cada vez maior. Tal dominação, como diz Max Jimeenez, comentador de Adorno, tem sua mola motora no desejo de posse constantemente renovado pelo progresso técnico e científico, e sabiamente controlado pela Indústria Cultural. Nesse sentido, o universo social, além de configurar-se como um universo de “coisas” constituiria um espaço hermeticamente fechado. E, assim, todas as tentativas de se livrar desse engodo estão condenadas ao fracasso. Mas, a visão “pessimista” da realidade é passada pela ideologia dominando, e não por Adorno. Para ele, existe uma saída, e esta, encontra-se na própria cultura do homem: a limitação do sistema e a estética.

Na Teoria Estética, obra que Adorno tentará explanar seus pensamentos sobre a salvação do homem, dirá ele que não adiante combater o mal com o próprio mal. Exemplo disso, ocorreram no nazismo e em outras guerras. Segundo ele, a antítese mais viável da sociedade selvagem é a arte. A arte, para ele, é que liberta o homem das amarras dos sistemas e o coloca com um ser autônomo, e, portanto, um ser humano. Enquanto para a Indústria Cultural o homem é mero objeto de trabalho e consumo, na arte é um ser livre para pensar, sentir e agir. A arte é como se fosse algo perfeito diante da realidade imperfeita. Além disso, para Adorno, a Indústria Cultural não pode ser pensada de maneira absoluta: ela possui uma origem histórica e, portanto, pode desaparecer.

Por fim, podemos dizer que Adorno foi um filósofo que conseguiu interpretar o mundo em que viveu, sem cair num pessimismo. Ele pôde vivenciar e apreender as amarras da ideologia vigente, encontrando dentro dela o próprio antídoto: a arte e a limitação da própria Indústria Cultural. Portanto, os remédios contra as imperfeições humanas estão inseridos na própria história da humanidade. É preciso que esses remédios cheguem a consciência de todos (a filosofia tem essa finalidade), pois, só assim, é que conseguiremos um mundo humano e sadio.


Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor W. Textos Escolhidos. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores)
ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada. Trad. Luiz Eduardo Bisca. São Paulo: Ática, 1992.
HORKHEIMER, M., e ADORNO, T. W., Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
HABERMAS, J. O Discurso filosófico da modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo e outros. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.
BARCELLOS, Carine. A questão da moral na cultura contemporânea. In: Comunicações, 4, Piracicaba – UNIMEP, p. 70-90, nov. 2000.


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* Formado em Filosofia pelo Seminário Arquidiocesano de Maringá (PR)
[1] Adorno tem um capítulo específico sobre a Indústria Cultural contido na Dialética do Esclarecimento onde, em parceria com Horkheimer, ele trata do assunto.
[2] Cf. T. W. Adorno, Os Pensadores. Textos escolhidos, “Conceito de Iluminismo”. Nova Cultural, 1999.
[3] Cf. idem.

Industria Cultural

Indústria cultural é o nome genérico que se dá ao conjunto de empresas e instituições cuja principal atividade econômica é a produção de cultura, com fins lucrativos e mercantis. No sistema de produção cultural encaixam-se a TV, o rádio, jornais, revistas, entretenimento em geral; que são elaborados de forma a aumentar o consumo, moldar hábitos, educar, informar, podendo pretender ainda, em alguns casos, ter a capacidade de atingir a sociedade como um todo.

A expressão "indústria cultural" foi utilizada pela primeira vez pelos teóricos da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro Dialektik der Aufklärung (Dialética do Esclarecimento, no Brasil ou Dialética do Iluminismo, em Portugal). Nessa obra, Adorno e Horkheimer discorrem sobre a reificação da cultura por meio de processos industriais.

Informações da Organização Mundial do Comércio (OMC) dão conta de que o faturamento das indústrias criativas no mercado internacional duplicou nos primeiros três anos do século XXI. Segundo os cálculos dos especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), a economia criativa, que envolve setores tão díspares como o teatro, o artesanato, a televisão, o cinema, a publicidade e desenvolvimento de programas de computador, entre muitos outros, é responsável, hoje, por 7% das riquezas produzidas no mundo (o produto Interno Bruto, ou PIB) e, como cresce rapidamente, logo chegará aos 10%. Essa, no entanto, é uma média estatística, e esconde disparidades terríveis, que não podem ser ignoradas.

A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco, de 2002 afirma: "Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação, deve-se prestar particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao caráter específico dos bens e serviços culturais".

Na 11ª reunião da Unctad, realizada em São Paulo, no Brasil, em 2004, abriu-se espaço para o debate sobre o papel das chamadas indústrias da criatividade no desenvolvimento. O resultado foi a proposta de criação de um Observatório Internacional para o setor, com o objetivo de apoiar os formuladores de políticas públicas e outros interessados, encorajando a capacitação, a valorização da diversidade cultural e a construção de redes de distribuição e comércio. Para reduzir a distância entre países pobres e ricos em termos de recursos para a construção de ambientes favoráveis ao florescimento da economia criativa, a Unesco criou um fundo, cujo objetivo é ajudar artistas e gestores culturais a encontrar financiamento para seus projetos, de modo que a diversidade possa se beneficiar com a globalização ao invés de ser vitimada por ela.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), apenas três países, o Reino Unido, os Estados Unidos e a China, produzem 40% dos bens culturais negociados no planeta -- entre eles livros, CDs, filmes, videogames e esculturas. As vendas da América Latina e da África, somadas, não chegam a 4%. Ao divulgar essas informações, resultantes da análise de 120 economias, em dezembro de 2005, o diretor-geral da Unesco, Koïchiro Matsuura, afirmou: "Embora a globalização dê oportunidades para que os países compartilhem suas culturas e seus talentos criativos, é claro que nem todas as nações são capazes de aproveitar as oportunidades que se apresentam". E um sexto da população mundial – uma multidão de um bilhão de pessoas -- vivem em países em desenvolvimento ou absolutamente pobres. Estão, portanto, entre os que não conseguem aproveitar as tais oportunidades de que falou o diretor da Unesco.

O professor argentino, diretor do programa de estudos sobre cultura urbana na Universidade Autônoma Metropolitana do México, Néstor Canclini, coleciona informações bastante interessantes sobre o poder da indústria criativa dos países ricos, e a ignorância das pessoas acerca da riqueza cultural alheia. Algumas delas são as seguintes. A indústria audiovisual é a maior exportadora dos Estados Unidos. Fatura 60 bilhões de dólares por ano. Desde a década de 1990, seis empresas transnacionais tomaram conta de 96% do mercado mundial de música. Compraram pequenas gravadoras e editoras em países latino-americanos, africanos e asiáticos. No que se refere ao cinema a situação é ainda mais chocante. Mais de 90% das telas norte-americanas só exibem filmes feitos no próprio país. O americano comum, portanto, não conhece o que se faz no estrangeiro. E o que se produz, na verdade, é pouco -- 85% dos filmes exibidos em todo o planeta brotam de Hollywood. Mesmo países europeus como a França e a Itália, que no passado foram reconhecidos pela qualidade de suas fitas, andam lutando para se manter à tona.

Em todo o planeta os países estão se movimentando para proteger sua produção criativa e estimular seu crescimento. Países como Índia, Bangladesh, Laos e África do Sul tomaram medidas para resguardar suas práticas de medicina tradicional. No Cazaquistão, o design dos tapetes persas foi registrado e protegido como propriedade intelectual. Na Hungria, 6% das receitas das emissoras de televisão são direcionados à produção de filmes nacionais. O Egito estimula parcerias público-privadas para financiar a infra-estrutura da indústria cinematográfica.

Zurique, na Suíça, adotou uma estratégia para desenvolver o setor cultural em 2003. A cidade passou a ser apresentada como um porto liberal para pensadores, empreendedores e criadores e atraiu muita gente. Hoje, as indústrias criativas são grandes empregadoras na cidade. Algo semelhante ocorreu em Viena, na Áustria, onde foi lançado em 2004 um plano para promover e facilitar o crédito a pequenas e médias indústrias criativas -- em áreas diversas, de moda e música a multimídia e design. Atualmente o setor emprega mais de 100 mil pessoas. Na França, 40% das músicas tocadas pelas emissoras de rádio têm de ser em idioma francês. O governo subsidia a produção de filmes nacionais para a televisão e as expressões culturais do povo gaulês. Desde 1983 o Instituto para o Financiamento do Cinema e das Indústrias Culturais oferece garantias de 50% a 70% do valor dos empréstimos concedidos pelos bancos aos empreendimentos do setor. O escritório dedicado a cuidar da exportação da música francesa foi criado em 1993, e está presente em Nova York, Londres, Berlim e Paris. O volume de vendas saltou de 1,5 milhão de CDs em 1992 para mais de 39 milhões em 2000.

No Reino Unido a expressão “Creative Britain” foi cunhada em 1997. Os órgãos públicos foram orientados a estabelecer parcerias com o setor privado para impulsionar as indústrias criativas. Os resultados servem de exemplo para outras iniciativas. Em 2002 o setor representou 4,2% de todos os produtos e serviços exportados pelo país -- e o crescimento das vendas externas é, em média, de 13% ao ano. Criou cerca de 8% da riqueza produzida em 2003. Os dados são do ministério das Indústrias Criativas, cujo ministro, James Purnell, pretende transformar a Grã-Bretanha no maior centro criativo do planeta. Atualmente 120 mil empresas dessa área estão registradas no Inter-Departamental Business Register.

Em 1980 o Canadá começou a dar atenção à economia criativa, quando uma lei permitiu a liberação de verbas para programas de treinamento, de abertura de empresas e de criação de empregos no setor. Em 1993, apenas treze anos depois, foi feito um estudo sobre os resultados obtidos. Entre outras coisas, constatou-se que cada dólar aplicado em atividades relacionadas à cultura gera 3,2 dólares na atividade econômica como um todo. Hoje, segundo o Conselho da Cidade de Toronto, somente no município existem 190 mil pessoas (14% da força de trabalho) atuando na área cultural em empresas que faturam cerca de 9 bilhões de dólares por ano. Na Argentina existe uma autarquia que recolhe 10% do faturamento dos cinemas, 10% das locadoras de vídeos e impostos pagos pela publicidade em geral para subsidiar a produção nacional de filmes. Resultado: em 2003, em plena crise recessiva, o país produziu 50 longas-metragens, o dobro da média registrada entre 1980 e 1990.


[editar] Indústria cultural no Brasil
A indústria cultural no Brasil, não apresenta homogeniedade, pois existe uma grande diferença entre as classes sociais. A desigualdade na divisão de renda, impossibilita a existência de uma sociedade de consumo consistente.

Um dos meios de comunicação com maior poder de propagação da indústria cultural nacional é a televisão, que faz parte da cultura brasileira desde 1950 e, hoje, atinge cerca de 99,84% da população. No Brasil, os cálculos mais abrangentes indicam que o PIB Cultural contribui com apenas 1% da riqueza nacional

Em abril de 2005 ocorreu em Salvador, na Bahia, um Fórum Internacional, que contou com o apoio da Unctad, do UNDP e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Ali foi lançada a pedra fundamental do Centro Internacional das Indústrias Criativas, onde se concentraram a pesquisa e os dados sobre o setor em todo o mundo.

'We do it different', ou ‘Nós fazemos diferente’ é o mote da campanha lançada pelo Brasil na Europa para aproveitar a Copa do Mundo de Futebol de 2006. A idéia foi implementada pela Agência de Promoção de Exportações do Brasil (Apex-Brasil) para fortalecer a marca nacional no mercado exterior. Entre muitas outras iniciativas, a Apex busca novos mercados para os instrumentos musicais brasileiros que são variados, bonitos, de boa qualidade, mas vendem pouco. Parte dessas informações foram obtidas nos sites [www.desafios.org.br] e [www.minc.gov.br], que trazem mais dados sobre o tema.

Outros organismos têm se preocupado em valorizar as tradições culturais brasileiras -- música, produção artesanal, teatro, festas regionais -- que, descobriu-se recentemente, constituem produtos, mercadorias, que podem ser vendidos e gerar renda a populações mais carentes e ao país como um todo.

O novo setor, que já tem espaço garantido e políticas públicas apropriadas em países como Austrália, Inglaterra, França e Canadá, só em 2005 começou a ser discutido no Brasil. E tem mostrado alguns avanços. O turismo regional tem crescido, há tribos indígenas em processo de organização para exportação de seus produtos tradicionais, novos pólos de desenvolvimento de programas (de computador) estão se implantando no país.


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