sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

18 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral ENTREVISTA
A televisão é uma
forma de vida
RESUMO
Nesta entrevista, Muniz Sodré, um conhecido teórico
bra si lei ro da co mu ni ca ção, fala so bre a situação do cam po de
pes qui sa de mídia e in dús tria cultural no Bra sil, e apre sen ta
as prin ci pais temáticas do seu recente livro An tro po ló gi ca do
es pe lho.
ABSTRACT
In this interview, Muniz Sodré, a well-known Brazilian
communication researcher, talks about the state of the art in
Brazil of studies on the media and the cultural industry. He also
talks about his most recent book Antropológica do espelho.
PALAVRAS-CHAVE (KEY-WORDS)
- Pesquisa (Research)
- Comunicação (Communication)
- Mídia (Media)
UM DOS POUCOS AUTORES que pretende
pro du zir uma reflexão crítico-cultural
original sobre a comunicação no Brasil,
Muniz So dré desenvolve importante
trabalho nessa linha de pesquisa. É um
fi lósofo e cientista social que trabalha sob
uma perspectiva ino va do ra: a cultura negra
em relação à cul tu ra de massa, levando em
conta a ide o lo gia.
Autor de 21 livros entre ensaios e
fi c ção, Sodré alterna sua produção teórica
com tra ba lhos sobre mídia e indústria
cul tu ral e com ensaios sobre a cultura
afro-brasileira. Dos seus livros na área da
co mu ni ca ção, des ta cam-se A comunicação
do gro tes co (1971), O monopólio da fala
(1977), A ver da de seduzida (1983), A
máquina de narciso e Claros e escuros
(1999).
Nessa entrevista, o autor fala de
sua po si ção teórica diante das teorias de
co mu ni ca ção, como por exemplo a teoria
da re cep ção. Outro aspecto importante
sa li en ta do por ele diz respeito à temática
de o mo no pó lio da fala, a separação radical
entre fa lan te e ouvinte. Para quebrar a
forma ins ti tu í da pela mídia, Sodré defende
a política de promover a ambivalência no
circuito co mu ni ca ci o nal.
O autor concedeu essa entrevista
por te le fo ne, de sua residência no Rio de
Ja nei ro, em junho deste ano. Ele concluiu
há pou co uma obra sobre teoria da
co mu ni ca ção: Antropológica do espelho:
uma teoria da co mu ni ca ção linear e em
rede. O livro deve ser publicado até o fi nal
do ano, pela edi to ra Vozes.
RF – Como o senhor avalia os estudos em
comunicação no Brasil?
Muniz Sodré – A comunicação no Brasil
está começando a constituir um campo
pró prio. Até agora, os estudos em
co mu ni ca ção têm sido muito dependentes
de pes qui sas estrangeiras. A prova disso
Muniz Sodré
Prof. Dr. da UFRJ
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 19
é que nor mal men te nos trabalhos que se
fazem aqui no Brasil há pouquíssimas
citações de autores nacionais. Você pega
os trabalhos apresentados na Compós,
na Intercom, é muito raro você ter autores
brasileiros. E autores latino-americanos
quase nenhum. E uma pesquisa de pouco
tempo atrás, se não me engano realizada
pela Unesco, mos trou que um dos autores
de co mu ni ca ção mais citados no mundo
inteiro é o Pla tão, depois Aristóteles. Mas
você nota que um campo amadurece,
um campo cresce, quando as citações,
as referências, as bases são dadas pela
própria língua em que se produz, em que se
trabalha. Eu acho que isso pode começar a
mudar, porque já se constituiu uma certa
massa crítica. E ao mes mo tempo há uma
saturação da forma de refl exão vinda do
exterior, da França, dos Estados Unidos.
Eu acho que a partir dessa proliferação das
escolas de co mu ni ca ção no Brasil pode
surgir uma coisa pró pria, o que até agora
não surgiu.
RF – Em Reinventando a cultura, o
senhor faz uma análise sobre as teorias
de co mu ni ca ção no mundo. Gostaria
que co men tas se a respeito de sua crítica
à teoria da recepção, vista pelo senhor
como uma pes qui sa ide a lis ta, onde tudo é
comunicação.
Sodré – A pesquisa de recepção foi
in tro du zi da pelo grupo dos Estudos
culturais. Mas, quarenta anos antes,
uma pes qui sa do ra in gle sa, chamada
Himmelwart, já acha va in su fi ci en te as
pes qui sas de efeito de Stuart Hall, um
dos nomes prin ci pais da que le gru po. Ela
pesquisava com cri an ças, mas não o que
a televisão fa zia a elas. E sim o que as
cri an ças faziam com a televisão. Por tan to,
não é ab so lu ta men te nova a teoria da
re cep ção. Apenas ela tem o mérito de
mos trar que os efeitos da te le vi são não
são aqui lo que a própria te le vi são pensa.
Que há efeitos he te ro gê ne os, di fe ren tes.
Quer di zer, os mo dos de apro pri a ção
da men sa gem te le vi si va são di fe ren tes
daquilo que a própria te le vi são pensa.
Acon te ce, no en tan to, que esse gê ne ro
de pesquisa tem como pres su pos to que
a te le vi são é um apa re lho trans mis sor
de con teú dos. Ora, em primeiro lu gar a
te le vi são não é um ve í cu lo trans mis sor de
con teú dos. A televisão é uma am bi ên cia,
multissensorial. A te le vi são não se di ri ge à
men te das pes so as. Ela se dirige ao corpo
do in di ví duo.
O jornal se dirige à mente. A rádio
se di ri ge à men te. A televisão, po rém,
efe ti va men te ajuda mais a compor o
am bi en te, aju da a fazer o que eu chamo
de bios-me di á ti co. Por quê? Por que a
televisão cria um ambiente si mu la ti vo.
Ela cria uma ou tra re a li da de e am plia sua
própria re a li da de, onde o in di ví duo imerge.
Então não é ape nas a questão do efeito de
conteúdo que está em jogo. O que está em
jogo ali é uma administração do tempo do
sujeito, ad mi nis tra ção das cons ci ên ci as, a
criação de uma vida vicária, substitutiva.
Por isso eu não creio que a metodologia
da teoria da recepção, ava li an do falas
por meio da aná li se de discurso, dê conta
dessa pro ble má ti ca. A teoria da recepção
entende a te le vi são, entende me dium como
se fosse jornal, rádio. É um en ten di men to
antigo, das dé ca das de 30 e 40. Na
televisão, porém, não se trata apenas de
enunciados de discursos. S e
trata, sim, de envolvimento mul tis sen so ri al.
Minha crí ti ca então à teoria da re cep ção
é que ela des co nhe ce o fato de que a
televisão não é um veículo transmissor
de conteúdos. Para es tu dar a recepção
efe ti va seria necessário montar métodos,
re cur sos ao mesmo tem po táteis, corporais,
para ver o que efe ti va men te acontece. E,
mesmo as sim, essa pes qui sa me parece
mui to tau to ló gi ca. Está co la da demais ao
próprio po der, à própria hegemonia da
te le vi são. No que isso re sul ta? Vê se não
é a confi rmação do mesmo pelo mesmo?
Se não é a con fir ma ção do cir cui to
co mu ni ca ci o nal? Qual é a utilidade real
na ve ri fi ca ção dessa re cep ção? Eu te nho
20 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral minhas dú vi das com relação a isso.
RF – Por isso faz sentido, por exemplo, sua
análise sobre a concorrência pedagógica.
A questão da publicidade, por exemplo.
Ou seja, no espaço social organizado da
fa mí lia, a soberania do pai estaria dividida
com a presença da televisão em casa. A
criança não teria mais unicamente o pai
como rival na disputa pelo sexo da mãe.
Ainda é per ti nen te essa análise?
Sodré – Claro que é muito pertinente. Será
que essa forma de vida, bios-mediático,
subs ti tui a realidade tradicional? Ou ela
amplia a realidade tradicional? Sem dúvida
ne nhu ma, ela é uma ampliação, é uma
re a li da de que se agrega a outra.
Mas a vocação dessa outra realidade
am pli a da é de con cor rer com a realidade
tra di ci o nal em nome do mercado. Em
nome da ressubjetivação das pessoas para
torná-las melhores con su mi do ras, melhores
su jei tos adequados ao mercado. Nessa
res sub je ti va ção, nessa con cor rên cia, a
te le vi são assume um lugar de pai e mãe
po de ro sos. Você vê que todas as funções
da gran de publicidade, das mul ti na ci o nais,
não é para vender coisa ne nhu ma! Se
vende mas é na publicidade de va re jo.
Quando uma companhia dessas
anun cia pe tró leo ou ga so li na na grande
pu bli ci da de, notamos que é algo
desnecessário para o consumidor. Se você
tem carro, não pre ci sa de propaganda para
comprar ga so li na. Então essa pu bli ci da de
existe porque é um pouco como a mãe.
Baudrillard falou nisso. A mãe pas san do
a mão na cabeça da cri an ça: Olha, meu
fi lho, eu estou aqui com você. Sinta-se
seguro. A publicidade tem uma função de
envolvimento sensorial, pa ter na li za ção,
de garantir ao sujeito de que alguma coisa
no nível macro, no nível do consumo,
está ve lan do por ele. E ao mes mo tempo
está re ve lan do a onipotência, o poder da
em pre sa. Essa realidade mul tis sen so ri al
é po de ro sa. Concorre com as fi gu ras que
tra di ci o nal men te exerciam poder sobre a
cons ci ên cia do sujeito, que era pai e mãe.
A mídia também concorre sem dú vi da
ne nhu ma com a escola. Desde que o
ho mem é ho mem ele se relaciona com
o ex te ri or atra vés de mediações. Cada
mediação dessas, a es co la, a família, é
como se fosse uma es fe ra com suas regras
próprias. A lin gua gem tam bém, que é a
grande me di a do ra uni ver sal. Essas esferas
domesticam o ho mem, dei xam o homem
em casa. Hei de gger, por exemplo, diz que a
linguagem é a morada do ser. Cada esfera
dessas é uma morada do homem. A mídia,
por sua vez, é tam bém uma esfera. Ela não
é apenas ve í cu lo, porque é uma ambiência.
É uma es fe ra que pretende ser mais
envolvente do que as ou tras. Pretensões de
hegemonia, de trans for ma ção. A educação
é uma esfera que está na base de toda
a ética e vice-ver sa. Não há educação
sem ética e nem a ética sem a edu ca ção.
Nós nos educamos para a ética a partir
dos princípios fundadores da so ci e da de.
No entanto, na mídia a ética, os va lo res,
as normas são comerciais. A mídia tem
uma moralidade mercantil, mo ra li da de de
vendedor, de comerciante.
RF – Qual seria a sua posição nas
pes qui sas em comunicação?
Sodré – Eu não sou exatamente um
pes qui sa dor no sentido clássico da
expressão, por que as pesquisas em
comunicação são um pouco a pesquisa
de campo. Eu sou um ensaísta, que
tem a cultura como ob je to, tanto em sua
forma industrial (a cultura do mass media)
quanto a cultura nacional, na forma da
cultura negra. A comunicação me interessa
primeiro como um campo novo, relativo
ao discurso das ciências sociais, e como
objeto de refl exão sobre a linguagem e
sobre o relacionamento humano. Então me
coloco como um ensaísta, debruçado so bre
a comunicação e a cultura.
RF – O sistema da televisão é um dos
te mas que mais dá estudos para trabalhar
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 21
essa pro ble má ti ca da cultura de massa
em re la ção à cultura tradicional. O senhor,
ini ci al men te, partiu de uma análise
estrutural do seu código, na década de 70,
para che gar a uma análise que privilegia
esse mo vi men to de inclusão e exclusão da
cultura ne gra na dimensão da organização
te ler re a lis ta. Ao afirmar que a mídia é
racista, por exem plo, percebemos o quanto
é im por tan te na sua obra a problemática do
mo no pó lio da fala. O senhor afi rma que o
ver da dei ro ato po lí ti co é aquele capaz de
que brar a forma ins ti tu í da pelo médium.
Po de ria falar mais um pouco sobre isso?
Sodré – No universo da representação
tra di ci o nal, a representação ainda tem uma
li ga ção com o referente colocado no real
his tó ri co, cujo discurso crítico era voltado
para o primeiro plano. Tanto o livro como a
im pren sa escrita são páreos do pen sa men to
crítico e da razão argumentativa.
Com a chegada do audiovisual,
rádio, ci ne ma, televisão, agora a
internet, cons truiu-se um campo onde a
representação não é mais do mesmo tipo
da re pre sen ta ção tra di ci o nal, ou seja, do
universo da es cri ta. Agora a representação
é apre sen ta ti va. Isso significa que o
mundo e o seu fl u xo estão vin cu la dos e
estão como que qua se presentes den tro
de nossos olhos. A di men são crítica e a
dimensão argumentativa desaparecem,
en fra que cem nessa nova cons te la ção da
re pre sen ta ção apresentativa.
Então já não há mais tantas exigências
his tó ri cas da crítica quanto havia no
pas sa do. Nem a ar gu men ta ção domina
o pri mei ro pla no. Es ta mos ago ra no
regime daquilo que E. Verón cha mou de
indiciário. A so ci a li za ção com ges tos, nas
fl exões, nos sinais. Tudo isso que compõe
o universo oral e que vem para a mídia
eletrônica. No in di ci á rio, não há li ne a ri da de
discursiva, não há ar gu men ta ção, não há
princípio nem fim. Há, sim,
a es té ti ca das aparências. Isso tudo é
incompatível com o que nós en ten de mos
como discurso crítico, como ar gu men ta ção.
A televisão en tra aí. Entra nesse regime
de visibilidade pública, pontuada pelo
in di ci á rio. A te le vi são é o grande mé dium
in di ci á rio. Ela não precisa, não aposta
na ar gu men ta ção crí ti ca, não aposta nos
con teú dos, porque é uma ambiência, é
uma forma de interação que como que
cobre o social, ou tenta co brir grande parte
do so ci al. A te le vi são é uma forma de vida
própria. Te le vi são é o suporte técnico, mais
o mer ca do e o ca pi ta lis mo transnacional.
Essa for ma é a pró pria ideologia da
televisão. A ide o lo gia não está no que ela
diz, não está nos con teú dos, mas nessa
forma capitalista mer ca do ló gi ca que os
conteúdos assumem. Por tan to, o es sen ci al
da televisão é a ma nei ra como ela organiza
e como se or ga ni za. O essencial dela é o
código, a sua pró pria for ma, essa aderência
sensorial a que ela con vi da as pes so as.
Ora, sendo por tan to pri o ri ta ri a men te
forma, sendo sen so ri a li da de, sen do
estética, os conteúdos são mi ni mi za dos,
como que exterminados, são li qui da dos
pela pregnância desse envelope, desse
in vó lu cro que é a televisão, o que tende a
crescer com a internet. Quando McLuhan
diz que “o meio é a mensagem”, ele quer
dizer exatamente isso. Que a men sa gem,
portanto o conteúdo, está sub su mi do ao
meio, à forma.
O que importa é esse es prai a men to
sen so ri al estético da mídia, es prai an do a
vida da gente, fazendo que a gente habite,
more den tro dessa prótese cha ma da
mé dium. En tão o verdadeiro ato político
para quebrar essa forma do médium seria
o de con tra ba lan çar o poder dessa for ma
por uma outra forma. Nós, socialmente,
vi ve mos no in te ri or de formas, no interior
de esferas me di a do ras. Então, quais são
as for mas da mo der ni da de? A democracia
é uma delas. Se gun do é a escola. A família
mo no gâ mi ca, nuclear, é outra forma da
mo der ni da de. As instituições normalmente
são for mas me di a do ras. Portanto,
con tra ba lan çar o poder da mídia é investir
na edu ca ção, na ética, nas mediações.
Gramsci cha ma va isso de oci den ta li za ção
22 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral da so ci e da de. Quer di zer, for ta le ci men to
das ins ti tui ções que cons ti tu em a
sociedade civil.
Ora, quan do a mídia aumenta o poder da
sua pró pria forma sobre as outras formas
tra di ci o nais, ela como que provoca, ela
de sa fi a a so ci e da de a responder. Olha, eu
sou real. Minha realidade está aqui. Porque
a mídia está di zen do o tempo inteiro que a
re a li da de é ela. Então, ela desafi a as outras
for mas, a família, os sindicatos, a escola, as
ins ti tui ções a gritarem sua própria re a li da de.
Por tan to, a verdadeira intervenção po lí ti ca
na mídia é a intervenção que se faz com
uma outra forma forte, que con tra ba lan ça o
po der dela.
RF – O senhor consideraria a temática de
O monopólio da fala de caráter estratégico
na sua obra?
Sodré - Apesar da mídia ter mudado muito
depois daquele ano em que foi publicado O
monopólio da fala, em 1977, eu considero
esse livro bastante atual. Porque esse
texto não mudou com a interatividade
técnica. O monopólio de produção de
discurso con ti nua na mão das grandes
corporações, das multinacionais. Apenas
reabre a pos si bi li da de do sujeito dar uma
resposta técnica, através da multiplicidade
de canais. Mas é uma resposta nos termos
do mercado em que a tecnologia decidem
dá pra você. Não é um verdadeiro diálogo.
Então eu acho que o texto do monopólio da
fala é es tra té gi co sim.
RF – O senhor também não acharia um
re du ci o nis mo epistemológico privilegiar
a te má ti ca de o monopólio da fala para
es tu dar a comunicação?
Sodré – Eu acho que a comunicação não é
apenas mídia. Quando fi z esse livro, estava
preocupado só com mídia. Eu estava
pen san do apenas um dos aspectos do
estudo da comunicação, que é a veiculação
me di á ti ca. Mas a comunicação, sem dúvida,
diz respeito à verdade dos relacionamentos
en tre os indivíduos. Portanto, do ponto
de vis ta epistemológico, eu realmente
reduzi aí o estudo da comunicação com
a questão da mídia, da televisão. É uma
redução do campo comunicacional, numa
atitude de re fl e xão sobre o anti-humanismo
da te le vi são. O que na verdade sempre
está por trás é pensar a humanidade no
homem hu ma no, o que signifi ca pensar a
riqueza de sua existência. Em Heidegger,
é pensar a aber tu ra do ente, do existente,
para o ser, das possibilidades que tem
de he te ro ge nei da de, diversidade, de
exploração da di fe ren ça. O que me
chamou a atenção naquele momento era a
redução da cultura, do es pí ri to público, da
experiência humana a essa coisa chamada
televisão, chamada mídia. Portanto, eu fui
reducionista porque estava na verdade
preocupado com o re du ci o nis mo que
operava sobre a cultura. E acho que não
me equivoquei. A televisão na ver da de,
principalmente a Globo aqui no Bra sil,
invadiu por inteiro a cultura, com um
imenso poder na vida pública. Molda e
con di ci o na campanhas políticas.
Nada dis so, depois de vinte anos
do lan ça men to de O monopólio da
fala, mudou. E ago ra, junta-se a isso a
internet, a te le vi são a cabo. A minha tese
do monopólio da fala, do ca rá ter redutor
da mídia no espaço cul tu ral, só se vê
confi rmar.
RF – Em Samba, o dono do corpo, o senhor
dá continuidade a essa problemática do
mo no pó lio da fala, o que também notamos
em livros como A máquina de narciso, O
social irradiado. Mas no Samba, o dono
do corpo a gente percebe mais claramente
a sua aná li se a respeito das estratégias
de re sis tên cia da cultura negra para
evitar a trans for ma ção ou a destruição da
ex pres são artística. Resistências estas
que no ta mos, por exem plo, nas rodas de
samba, na prática ri tu a lís ti ca do terreiro.
Qual seria então a sua ex pec ta ti va em
relação à so bre vi vên cia destas práticas
comunitárias di an te dessa forma mediadora
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 23
dominante, que o senhor afi rma em sua
obra como des po li ti zan te, ho mo ge nei zan te,
tecnonarcisista?
Sodré – Olha, não se trata de so bre vi vên cia.
A sobrevivência é de certo modo a idéia do
resto, a idéia do moribundo, que continua
a viver apesar de sua doença, ape sar de
ser ferido de morte. Na verdade, a cultura
po pu lar, colocada no espaço da ci da de,
con vi ve com a cultura industrial por que
ainda responde a exigências profundas da
psique coletiva, que é a exigência da fes ta.
A festa é a maneira como a sociedade,
como grupo social, põe em jogo a sua
pró pria iden ti da de. A festa, a mobilização
em termo de es pe tá cu lo, é a maneira da
so ci e da de ter sua cara no espelho.
O que eu va lho, como é que eu
sig ni fi co. A sociedade aí então pode
brincar com sua identidade. Pode inverter
papéis. Pode, como no car na val, botar
a ordem de cabeça para baixo. A cultura
popular res pon de a exigência de fes ta
com par ti ci pa ção do povo. O que acon te ce
é que a mídia, que foi pro gres si va men te
assumindo as fun ções dessa festa, propicia
apenas a par ti ci pa ção cerebral, ape nas
visual. As pes so as fi cam sentadas, ou em
torno da te le vi são, do rádio, do ci ne ma, da
internet.
As pessoas participam sem corpo. É
só olho e cérebro. A mesma re la ção que
se ti nha com o livro. No livro não tinha
festa. A festa pas sou
para o rádio, ci ne ma e de pois para a
televisão. Então a exi gên cia po pu lar, mas
festa com par ti ci pa ção. Por tan to eu acho
que essas culturas po pu la res, tanto do
pon to de vista lúdico como re li gi o so, ainda
ofe re cem opor tu ni da de do cor po in te grarse
como mo vi men to na festa. O cor po está
dentro da festa. Enquanto que a mí dia corta
o corpo. A mí dia é o chamado “corpo sem
órgãos”. A mí dia é um corpo inerte.
RF – Como surgiu a idéia de trabalhar o
mito de narciso relacionando-o ao sistema
da televisão?
Sodré – Eu sempre trabalhei muito perto
dos psicanalistas. Não só fi z muitos anos
de análise, como também sempre dei aulas
em institutos de psicanálise, conferências,
principalmente com os escritos culturais de
Freud.
Isso é uma coisa que não aparece
mui to nos primeiros livros porque escrevo
pou co sobre isso. Mas a verdade é que sou
um leitor entusiasmado de Freud. E gosto
da psicanálise também, mas como teoria.
Só não me agrada o período lacaniano,
que é uma encheção de saco gigantesca.
Mas Freud é apaixonante. Foi então a partir
de minhas leituras psicanalíticas que eu me
in te res sei pela questão do narcisismo.
RF – Na época do lançamento de seu livro
A máquina de narciso era uma novidade
essa idéia de trabalhar o narcisismo em
re la ção à tevê?
Sodré – Eu tenho a impressão que aqui
no Bra sil fui eu quem falou isso pela
pri mei ra vez. E a idéia não é do narcisismo
psi ca na lí ti co. Eu não chamo assim. Tratase
de um narcisismo secundário, que é
re a pro vei ta do pelo estrategista de consumo
para fazer um culto ao “eu”. Eu havia lido o
livro A cultura do narcisismo, de Chris to pher
Lasch. A questão estava nos Estados
Unidos.
Depois de eu fazer A máquina de
nar ci so, ele, se não me engano, lançou
O mí ni mo eu. É um livro que aprofunda
essa li nha, desse “eu” voltado para si
mesmo, para ali sar a si próprio, que é
o “eu nar cí si co”. Só que eu chamei de
tecnonarcisismo. Eu lhe digo que não tirei
de ninguém. O pró prio Bau dri llard não usa
essa categoria. Quem está mais próximo
disso é mesmo Christopher Lasch.
RF - Na sua opinião, essa proposta foi
ple na men te trabalhada com sucesso ou
ainda sente a necessidade de voltar ao
tema?
24 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral Sodré – Eu acho que a televisão, a mídia,
é constitutiva de subjetividades novas.
Na ver da de, ela altera a própria idéia de
sub je ti vi da de. Eu sinto que a psicanálise
pode ter muito a dizer. Não há dúvida de
que eu gostaria de voltar a esse assunto.
Nesse meu próximo livro, chamado
Antropológica do espelho, que deve sair
até o fi nal do ano, tem uma parte sobre
a realidade vir tu al em que sou levado a
examinar as al te ra ções no conceito de
subjetividade.
Procuro mostrar como a mídia
virtual, como a in ter net, como a rede, vem
al te ran do a idéia de subjetividade humana
na fun ção de sua sub je ti vi da de mais
relacional, ou seja, me nos para dentro e
mais para fora. Menos refl exiva e mais
epidérmica, mais sensorial, que é como as
pessoas se dispõem nos con ta tos de rede
mas também nos contatos me di á ti cos. O
sujeito deixa de ser in te ri o ri za do para ser
mais relacional. Isso eu de sen vol vo nesse
meu livro A an tro po ló gi ca do es pe lho, em
um dos capítulos.
RF – Então, fale um pouco sobre essa
obra?
Sodré – Esse livro resume e amplia
mi nhas posições sobre a mídia até agora.
E ao mes mo tempo tem uma coisa que
re al men te é muito original. Que é uma
teoria da co mu ni ca ção própria. A teoria do
bios-me di á ti co. Eu parto de Aristóteles, da
ética de Ni cô ma co. Aristóteles fala de três
bios, que é forma de vida.
A forma de vida do co nhe ci men to, a
forma de vida da política e a for ma de vida
dos prazeres. A esses três bios, três bios
que organizam a vida humana na cidade,
vida humana sociabilizada, eu me dei
con ta de que existe um quarto bios hoje,
tra zi do pelo mercado, pelo ca pi ta lis mo
trans na ci o nal, que é o bios-virtual, ou biosme
di á ti co. Isso signifi ca uma outra es fe ra
da exis tên cia, uma outra forma de vida.
Então, um pou co que relativizo, co lo co
em suspeita todas as aplicações que as
ciências sociais faziam até agora sobre a
mí dia, por que elas tratavam a mídia como
se fosse uma re a li da de no mesmo nível
do que as outras. To dos esses estudos da
so ci o lo gia, da psi co lo gia, da antropologia
fo ram in ca pa zes de revelar a natureza
da mí dia por que a tra tam como se fosse
uma re a li da de ancorada na representação
tra di ci o nal. Nes se meu li vro mostro também
a ques tão dos efeitos. Você não pode ter
re la ção de causa e efeito entre a mídia e
a so ci e da de em que nós vivemos. Porque
são re a li da des, mo dos de vida de natureza
di fe ren te. Não pon to de intersecção direta.
Vou então cri ti car as te o ri as dos efeitos,
in clu si ve a te o ria do agenda setting, pra
mostrar como é que esse agen da men to
se dá. Vou também, a partir daí, mostrar
saídas, al ter na ti vas, como por exem plo
a saída edu ca ci o nal. Mos trar no que a
educação difere fun da men tal men te da
mídia.
Vou mostrar como a mídia é feita
de moral. A mídia é uma moralidade.
Ao con trá rio do que se pensa, a mídia
não é imo ral. Pode ser imo ral do ponto
de vista do con teú do. O ter ri tó rio da
mídia é um ter ri tó rio de ethos, de um
ter ri tó rio de mo ra li da de. Uma mo ra li da de
de comerciante, que sur ge a partir dos
cos tu mes, dos há bi tos, que é onde a mídia
efe ti va men te se po si ci o na. A partir daí
é que eu vou fazer uma distinção entre
discurso edu ca ci o nal e dis cur so for ma ti vo,
que é a mídia.
Depois, vou mostrar as al te ra ções
que a mí dia, com a internet, produz
sobre a sub je ti vi da de. Vou fazer isso
mos tran do o que é a re a li da de virtual. Vou
con cluir que a mídia é um novo tipo de
consciência. Com a
re a li da de virtual, é uma cons ci ên cia que
ex te ri o ri za, uma cons ci ên cia ma quí ni ca,
in te ri o ri za da. Pra chegar fi nal men te a
di zer o que é a éti ca e como é que a mídia
poderia se ar ti cu lar com a éti ca. E expor
uma me to do lo gia co mu ni ca ci o nal. São
cin co partes onde ex po nho isso. Por tan to,
eu exponho as bases de uma te o ria da
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 25
co mu ni ca ção.
RF – E qual é a sua expectativa desse seu
trabalho?
Sodré – Nenhuma. Eu não espero nada.
As pes so as no universo da academia
co me çam a prestar atenção nas coisas que
você diz só depois de muito tempo. Você
presta aten ção imediata ao francês, ao
alemão. O bra si lei ro, ao tentar pensar de
modo pró prio, difi cilmente prestam atenção
nele. Você paga um preço ao tentar pensar
so zi nho. Sou muito isolado.
Mas não me quei xo, não. Eu acho
que te nho uma relativa notoriedade.
Acho que esse livro vai ter que de algum
modo cir cu lar. Como os ou tros lentamente
circulam nas escolas de co mu ni ca ção.
Eu não faço grande expectativa. É
simplesmente uma coisa que eu tinha de
fazer. Esse meu livro Antropológica do
es pe lho, sem dúvida ne nhu ma, é uma
posição original. Essa teoria não vem de
ninguém.
Com cer te za absoluta. Não é nada
se me lhan te a Bau dri llard. Espero que
pelo me nos as pessoas reconheçam isso
e dis cu tam. Eu quero que as pessoas
cri ti quem. Quan do eu fi z A
má qui na de narciso, hou ve uma crítica na
re vis ta do Sebrape, de um cara que hoje
não me recordo o nome. Ele fez de dez a
doze pá gi nas de crítica muito bem-feitas.
Discutiu so ci o lo gi ca men te o con cei to de
or ga ni za ção. Mas eu não sei mais onde é
que tenho isso. Eu espero que quando sair
esse livro as pessoas le van tem ques tões,
objetem. A teoria pro gri de a par tir da crítica.
RF – E quais foram os autores que tiveram
uma influência importante nesse livro
An tro po ló gi ca do espelho?
Sodré – Aristóteles, sem dúvida ne nhu ma.
A ética de Aristóteles. Outro autor é Kant,
com a razão prática, fundamentos da
me ta fí si ca do distúrbio. O resto é leitura
ins tru men tal. Mas do ponto de vista de
em ba sa men to teórico, foram Aristóteles e
Kant.
RF – Nesse sentido, McLuhan também
não seria um referencial teórico importante
na sua teoria da comunicação? O senhor
no seu texto dialoga com ele para
fun da men tar, por exemplo, seu conceito de
televisão. O que vocês têm em comum é
o fato de privilegiar o estudo do meio para
gerar co nhe ci men to sobre a mídia. Fale um
pouco sobre isso.
Sodré – O McLuhan vê os meios de
co mu ni ca ção como extensões tecnológicas
do ho mem. O que acontece é que a
televisão tem que ser vista do exterior do
mo vi men to da civilização contemporânea
para a ci ber né ti ca.
Eu acho que o McLuhan, embora
não men ci o nas se a palavra cibernética,
pen sou den tro da cibernética. A cibernética
está jun to com outra transformação
fun da men tal da sociedade contemporânea
que é a bi o lo gia. Tanto a cibernética
como a bi o lo gia, ou a tecnobiologia,
se colocam sob o ân gu lo da teoria dos
organismos e da te o ria dos sis te mas.
Então é com a cibernética, a bi o lo gia,
com a física contemporânea, com aqui lo
que Hegel chamava de espírito, o es pí ri to
objetivo, entendido como a cul tu ra. Mas
a cultura feita de artifícios, de má qui nas,
de artefatos. Esse espírito ob je ti vo se
trans for ma em informação.
O prin cí pio con tem po râ neo da
co mu ni ca ção resulta de uma trans for ma ção
do es pí ri to objetivo. Uma trans for ma ção da
his tó ria ma te ri a li za da. En tão a informação
é uma espécie de valor entre o espírito,
que dá a pos si bi li da de de refl exão, e as
coisas, os objetos. Você tinha na metafísica
clássica espírito e ma té ria, re fl e xão e coisa,
os ob je tos.
Você tem con tem po ra ne a men
te es pí ri to, in for ma ção e ma té ria. Então as
má qui nas in te li gen tes, da mes ma maneira
que os ar te fa tos da cul tu ra em geral,
forçam o pen sa men to a re co nhe cer o fato
26 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral de que o es pí ri to, a refl exão, aca bou se
infi ltrando, se co lo can do nas coi sas, nos
objetos. Hoje, o pen sa men to em si mes mo,
a consciência, se ob je ti va nas má qui nas,
nos objetos. A má qui na então não é um
simples instrumento. N ó s
fazemos as máquinas. Mas as má qui nas
uma vez ga nhan do uma autonomia de
trabalho com re la ção ao homem, quan do
se au to ma ti zam, elas passam a colocar
pro ble mas, a pro ces sar juízos que já não
de pen dem mais tanto do ponto de partida,
do output ori gi nal humano. As máquinas,
os meios de co mu ni ca ção, são memórias
ou são reflexões que se objetivaram,
que se tor na ram ob je ti va das. Não há um
novo tipo aí de on to lo gia. Com os meios
de co mu ni ca ção o que está em jogo
é a possibilidade de con so li da ção das
máquinas, dos ins tru men tos, como uma
realidade própria, ob je ti va.
Quando se diz que existe a so ci e da de
da informação, você ao mesmo tem po diz
que existe uma sociedade go ver na da por
sis te mas, por memórias fora do ho mem
como culturas ligadas a uma in te li gên cia
ar ti fi ci al. E essa objetividade, que está fora
da cons te la ção da relação entre ho mem e
mun do, é uma forma envolvente. É isso que
eu chamo de bios-virtual, cuja va ri an te é o
bios-mediático, e que McLuhan cha ma va
de for ma, chamava de meio. Então di zer
que o meio é a mensagem é indicar que a
questão da mí dia está ligada à questão da
civilização con tem po râ nea, que é a questão
da ob je ti va ção do espírito por sistemas,
por formas, por máquinas, que em certa
me di da se au to no mi zam com relação ao
pen sa men to hu ma no. É nesse ponto aí é
que eu acho que a fórmula do McLuhan
é uma grande fór mu la de pensamento.
Em última análise, na informação, os
con teú dos, os signifi cados só importam na
me di da em que se adap tam à forma. Por
exem plo: a propaganda de que os Estados
Uni dos são o melhor país do mundo. Esse
tipo de conteúdo só é sig ni fi ca ti vo na
medida em que junto com tudo isso vem
o mercado, vem uma forma abs tra ta com
relação à re a li da de concreta das pes so as.
O que importa mesmo é essa for ma,
esse mundo novo que se cria, essa
am bi ên cia, onde nós vivemos no interior de
sis te mas. Então é preciso en ten der o meio
com isso, com esse envalvointe, o mundo
em tor no tec no ló gi co, mer ca do ló gi co. O
meio é esse em torno. Não é sim ples men te
o apa re lho de televisão. É esse em torno
afi nado com o sistema televisivo.
A minha idéia do bios-virtual é essa
e sem dú vi da nenhuma parte dela está
li ga da à idéia mcluhiana do meio é a
mensagem. McLuhan partiu de pen sa do res
anteriores. Um deles é o padre Tei lhart Te
Shartin. Tudo que McLuhan disse, o padre
Shartin disse melhor antes dele. É o grande
pen sa dor da técnica, o grande cos mó lo go
da téc ni ca antes de McLuhan.
RF – O McLuhan era um otimista em
re la ção a essa tecnologia. Mas o senhor
tem ou tra posição.
Sodré – Minha posição é de um pes si mis mo
ativo. Diferente de um otimismo um pou co
delirante, festivo. Eu não espero nada do
real tal como se apresenta. Mas também
não espero nada do passado. O pro gres so
técnico corresponde ao mo vi men to do
modo de produção capitalista e não
la men to isso, não. Eu apenas não vejo isso
como a chegada do paraíso na Terra.
A mídia é uma compressão das
pos si bi li da des de abertura cultural. Mas
isso não sig ni fi ca de minha parte nenhuma
his te ria anti-tecnológica. Essa histeria
é re a ci o ná ria, porque exprime um certo
res sen ti men to da alma, da natureza contra
o que o próprio homem produz que é a
técnica. Mas existe, é claro, o temor de que
a aber tu ra humana se reduza pelo capital
em sua expansão ili mi ta da. E não há dúvida
que os ins tru men tos da comunicação são
ins tru men tos do ca pi tal.
Meu pessimismo apa re ce diante da
pro pa gan da que vê isso como voltado
para a fe li ci da de, para o bem humano. Eu
não acho que se trata disso. Acho que isso
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 27
ape nas acompanha a lógica do movimento
do modo de produção ca pi ta lis ta. Eu não
es pe ro nada, mas ao mesmo tempo eu
acom pa nho ativamente esse mo vi men to
ca pi ta lis ta.
RF – A exemplo de Renato Ortiz, entre
ou tros, poderíamos afi rmar que o senhor é
um autor que também produz co nhe ci men to
original?
Sodré – Não poderia fazer um juízo
des ses so bre mim mesmo. Só os outros
podem afir mar. Sem dúvida nenhuma,
eu tento in cluir a forma negra de pensar
e a forma po pu lar de pensar na minha
reflexão aca dê mi ca, eru di ta. Eu vejo o
eruditismo do povo. Na arte popular há
também a pre sen ça do eru di to, a presença
do complexo e há também pensamento.
Esse pensamento pode estar na canção
do Lupicínio, no sam ba de Noel, na
composição de Caetano Ve lo so, Chico
Buarque. Pode também estar no maracatu,
no futebol.
O pensamento para mim não é o
exer cí cio da pura razão ar gu men ta ti va
em ba ses aca dê mi cas. O pen sa men to
da verdade é um fazer-mundo. É fa zer
o mundo acon te cer. É deixar que as
coi sas aconteçam. Esse deixar que as
coisas acon te çam é estar no mundo. É
fazer-mun do. Para mim, en tão, todo o
pen sa men to com interesse fi lo só fi co é um
pensamento vira-mundo.
Ou seja, ele quer produzir
acon te ci men to, que é um rom pi men to do
que está dado. Um acon te ci men to que
avan ça rom pen do coi sas. Você avan ça
no mundo como um vira-mundo. Minha
ma nei ra de pensar é uma maneira viradora.
Não consigo sem pre isso. Eu não sou
stricto sensu an tro pó lo go nem sociólogo,
mas o que se chamava an ti ga men te de livre
pen sa dor. Só que es tou comprometido a
pen sar a comunicação, a cultura. Então eu
apro vei to os materiais que me caem à mão,
que me parecem aju dar o pensamento.
É exatamente assim um pouco que eu
tra ba lho. Eu faço leitura mais sistemática de
fi lo so fia, que gosto muito. N a
verdade, minha grande inspiração sem pre
foi Nietzsche. Tem duas metáforas dele que
gosto muito. É a questão do pen sar como
uma vaca ru mi nan do. Eu também gos to
de ruminar as coisas. E depois a ques tão
do faro. Eu sou capaz de sentir chei ros
a distância. Tenho fenômenos es tra nhos
com cheiro. Deve ser minha as cen dên cia
indígena. Mas esse meu faro não é ape nas
físico. Farejo coisas. Ni et zs che diz as sim:
eu sou o primeiro que sen tiu a men ti ra
como mentirosa. Nos meus ensaios, isso
que você chamou de ori gi na li da de é coisa
que eu farejei. Quando estou fazendo um
trabalho, os autores vão me ca in do na
mão quase que por acaso. Parece que Exu
bota. Às vezes a idéia não é
ex clu si va men te mi nha, mas procuro uma
ma nei ra singular de abordá-la. Eu parto
dos ou tros, mas eu gos to também de ter
as minhas idéias. Se al guém já falou muito
daquela maneira, eu saio de baixo. Eu sou
assim. Não é porque esteja querendo ser
original. Mas eu não vou repetir argumentos
de mais. Para mim, o método é o caminho
de pois que você pas sou por ele. Pearce diz
que você tem que inventar. Ele chama isso
de abdução. D e p o i s
que você cria e acha o ca mi nho, daí você
fala com mais segurança de seu pró prio
método. Mas se o método é um ca mi nho
prévio, que os outros dão para você, você
vai apenas fazer coisa que a academia
reconhece como pertinente, mas que
não re ve la nada, não descobre nada. E
a função das ciências sociais é ilu mi nar,
revelar, es cla re cer para poder ter a crítica
e o debate. Não tenho nenhuma pre ten são
de ori gi na li da de absoluta, porque eu leio os
franceses e aproveito coisas dos franceses.
Leio os ale mães, aproveito tam bém. Leio
os ita li a nos e aproveito. E, quan do é
possível, apli co esse conhecimento à vida
nacional. Se eu tiver alguma ori gi na li da de,
a originalidade é essa. Eu penso como um
crioulo de ter rei ro, como um ne gro nagô,
mas com a lin gua gem, o jargão acadêmico.
28 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral RF – A sua relação do poder panóptico de
Foucault com a televisão, em O monopólio
da fala, foi, sem dúvida, uma análise
ori gi nal, uma das pioneiras na academia.
Sodré – Naquela época, quando foi
pu bli ca do o livro, em 1977, era sim uma
no vi da de. A televisão é um panóptico
in ver ti do. Não é o guarda, no centro,
olhando para os pri si o nei ros. É o contrário.
É eu que fico olhan do para alguém. O
con tro la do é quem olha. O panóptico aí se
inverte. Eu es ta va na
verdade movido pela idéia de Fou cault, o
panóptico disciplinar. Mas apli can do isso à
televisão, damos con ta da in ver são. Nada
é nunca ab so lu ta men te novo. A gente
sempre está partindo de uma idéia, que
é reinterpretada e acrescida com outras
leituras.
RF – Como surgiu essa questão da cultura
negra na sua obra?
Sodré – Eu tenho antecedência de índio
por parte de mãe e da parte de pai é de
negros. Vivencio diversos terreiros e pude
ver o que estava se passando ali dentro.
Eu per ten ço efetivamente àquele universo.
En tão eu procuro forjar minhas categorias,
pen sar a partir de dentro desse universo,
cujas pes so as na sua maioria não tiveram
edu ca ção formal no sentido de produzir
esse dis cur so acadêmico.
Eu sou aba-xan gô. Aba significa
al guém que representa o terreiro em
termos de dis cur so. Essa é mi nha função.
Vou te dar um exemplo. Um tema que me
in te res sa é o da alegria. Como podemos
ser ale gres? O que é isso? O que é a
lacridade. Experimentá-la sem ter que
ne ces sa ri a men te pagar preços monetários
por ela. Esse gozo com a vida em si
mes mo, a partir da dimensão sim bó li ca,
isso me interessa. O meu interesse pela
cultura negra, pelo ter rei ro, é que eu vejo
nessa cul tu ra a pos si bi li da de de pen sar
coisas des sa ordem. Pen sar a alegria de
estar vivo. Pensar também a questão da
vi o lên cia, da catástrofe, da in ve ja do outro,
da cru el da de, da per ver si da de, questões
que estamos cercados por elas o tempo
todo.
Eu acho que a civilização ocidental
cris tã lida mal com todos esses aspectos.
A psi ca ná li se, por exemplo, tenta lidar, mas
tenta recuperar isso para a ra ci o na li da de e
não consegue. Eu gosto de psi ca ná li se. Fiz
aná li se muito tempo. Respeito muito ainda
hoje a teoria psicanalítica. Des con fi o um
pou co é da prática.
RF – Em A verdade seduzida, por exem plo,
Heidegger foi um suporte teórico para fa lar
sobre ser e aparente. O senhor vê aí a
im por tân cia da cultura das aparências no
pro ces so de troca simbólica, onde falante
e ou vin te não estão separados por uma
ins tru men ta li za ção do real. Heidegger, aí,
co in ci de ou não com a forma negra de
pen sar? Ele teria ajudado você a trabalhar
com a forma de pensar do negro? Fale um
pou co dos aspectos da cultura ocidental
que con ver gem com a forma negra de
pensar.
SODRÉ – Eu acho que dentro da cultura
ocidental tem momentos de se pensar igual
ao negro. Por exemplo: Schopenhauer,
Spi no za. E Heidegger é o grande fi lósofo.
Em Heidegger tem a questão da
crítica, en ten di da como observação, como
dis tin ção, como discernimento. Ele é um
fi lósofo que dá atenção à terra. Diferença
entre terra e mundo. É um fi lósofo que
mostra a pre sen ça dos deuses, a presença
do trans cen den te. E ao mesmo tempo é um
fi lósofo que mostra também a importância
do tem po.
É na verdade um filósofo da
tem po ra li da de e que oferece para a
questão do ne gro no Bra sil a possibilidade
de pensar na ou tra transmissão
temporal para além da his tó ria, que é a
ancestralidade. Nisso, há algo em comum
entre Heidegger e a cul tu ra ne gra: a
questão da ancestralidade, que é mui ta
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 29
próxima da concepção de an ces tra li da de
dos nagôs.
Quer dizer, as vozes que partem
do pas sa do em que a história de hoje as
res pon de. Essa voz, para o negro, é como
um destino. Ele está constantemente
res pon den do as mensagens do passado.
Há mui tos pontos em contato entre
Hei de gger e a cultura bra si lei ra e é por isso
que ele me interessa mui to. Mas Heidegger
ex clui a di men são da luta, que é muito forte
em Ni et zs che e que é muito forte entre os
negros. Nietzsche diz
assim: fulano é edu ca do de mais para lutar.
O negro africano, nagô, de ter rei ro, vê como
luta a própria relação amo ro sa. Ele vê o
sexo masculino e fe mi ni no como princípios
de luta, prin cí pi os com ple men ta res em luta.
Então a luta é tam bém fazer compreender
com ações. Isso é muito próprio do negro e
isso está em Ni et zs che.
RF – Na década de 70, o senhor
trabalhou em parte com o pensamento
do es tru tu ra lis mo, mas ressaltando que
esse método não esgota o conhecimento
da cultura. Até que ponto o pensamento
estruturalista foi útil para o seu trabalho?
Sodré – Eu fui realmente um grande
co nhe ce dor e amante do estruturalismo.
Eu acho que o estruturalismo de Levy-
Strauss, de Barthes, de Lacan, toda essa
gente, cada um com seu modo de se dizer
es tru tu ra lis ta, chamou a atenção para
o que efe ti va men te me interessa muito,
que é a lin gua gem. A grande descoberta
do es tru tu ra lis mo foi o papel central da
linguagem na cons ti tui ção do sujeito.
Ajudou a tirar da cabeça dos aca dê mi cos
a idéia de que a lin gua gem é um simples
veículo e a colocou em pri mei ro plano,
como aquela instância agen ci a do ra que
constitui o sujeito, que cons ti tui a vida
social e que nós vivemos na lin gua gem a
partir da linguagem. Para mim, essa foi a
importância do es tru tu ra lis mo.
RF – Percebemos na sua obra a
pre o cu pa ção em analisar a natureza do
código da cultura de massa. O código já
foi chamado de retórico-globalizante, de
modelo, de cam po e, neste último livro,
que trata de uma teoria de comunicação,
o código é de no mi na do de bios-mediático.
Fale um pou co sobre isso.
Sodré – O bios é o código. É a codifi cação
que se faz vida. É como se fosse uma
mem bra na que envolvesse os indivíduos.
Isso é o bios. E os indivíduos passam
a circular, a se movimentar a partir das
regras do có di go. Só que eu não uso mais
a palavra có di go. Eu peguei a palavra
aristotélica bios. No lu gar de dizer o código
virtual, eu digo o bios-virtual. É pra indicar
bem que se trata de uma ambiência, de
uma forma de vida e não de uma operação
semiótica manobrada por alguém.
RF – Notamos na sua obra a infl uência
da teoria crítica da Escola de Frankfurt,
prin ci pal men te na década de 70. O senhor
faz al gu mas objeções a ela. Fale um pouco
so bre isso.
Sodré – Sem dúvida nenhuma, a Escola
de Frank furt, de Adorno e Horkheimer, foi a
que mais percebeu antecipadamente o que
estava por trás da intervenção da téc ni ca
na cultura contemporânea. Mas Adorno
e Horkhei mer eram muito nostálgicos da
cul tu ra elevada. Eu acho que eles não
pen sa ram é que o pensamento crítico
depende de um distanciamento entre
sujeito e ob je to. E é próprio desse biosvirtual
uma re du ção, senão o acabamento,
dessa dicotomia própria da metafísica
entre sujeito e objeto. E m
Adorno e Horkheimer, no pen sa men to
crítico clássico, ainda é um pen sa men to
da metafísica, uma montagem uni ver sal
de sig ni fi ca ções, que procede por di vi sões
rí gi das entre sujeito e objeto, entre natureza
e cultura. Adorno ainda é tri bu tá rio dessa
divisão, dessa metafísica clássica, que
re pou sa va, ao mesmo tempo, sob o laço
entre a ontologia monovalente e uma lógica
30 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral bi va len te das coisas: O verdadeiro não é
fal so, o falso não é verdadeiro. Não existe
aí um terceiro termo. Uma lógica de junção
ou conjunção. Ou é ou não é. Essa lógica
bivalente das coisas é uma lógica que não
dá conta dos fenômenos culturais, como
por exemplo os signos e os ins tru men tos
da indústria cultural. Que não per mi te
tam bém uma boa análise das obras de arte
e nem das transformações dos cos tu mes.
Então essa divisão fundamental entre alma
e coisa, espírito e matéria, sujeito e objeto,
a máquina e a liberdade do homem, deixa
de lado a realidade onde há um ter cei ro
dado, que é o terceiro excluído. Ador no
e Horkheimer e a teoria crítica clássica
de pen di am dessa ontologia monovalente
e des sa lógica bivalente. Adorno está do
lado da alma. As coisas são dominadoras,
ali e nan tes. E quando se coloca com o olhar
da cultura elevada, ele responsabiliza as
coi sas pela dominação que exercem sobre
o homem e é a partir daí que constitui a sua
teoria.
RF – É por isso que Adorno e Horkheimer
não admitiam, por exemplo, que a cultura
popular também produzisse co nhe ci men to,
produzisse arte.
Sodré – Não admitiam porque no fundo a
cul tu ra popular estava do lado da coisa,
dos objetos. Eles eram platônicos, no
sen ti do de que a idéia universal é que
é pro pri a men te o ente, enquanto que a
matéria, o ob je to, não constitui o ser. É uma
espécie de não-ser.
Ora, as culturas populares es ta vam
den tro dessa teoria crítica do lado do nãoser.
Quan do, portanto, a matéria passa a
ser subs tan ci aliza da, as idéias da cultura
po pu lar são também consideradas como
não-verdadeiras, como não-sendo. É,
por tan to, uma teoria crítica aristocrática.
Está ligada ao programa metafísico
platônico-aris to té li co.
RF – Professor, e a semiótica? Até que
pon to ela infl uenciou a sua obra?
Sodré – Eu gosto da semiótica. Fui aluno
de Barthes. Para mim, ele foi o mais
cri a ti vo em praticar a semiótica. E praticar
in ven tan do. Mostrava o método, mas dizia
ao mesmo tempo que esse método era
uma invenção dele. O reaproveitamento
de Saus su re. Eu sempre gostei, me
encantei com a semiótica. E eu cheguei
à co mu ni ca ção por via da teoria da
linguagem, porque sempre fui voltado
para a questão da lin gua gem. Primeiro
pelo meu interesse por língua. Eu aprendi
sozinho. Nunca tomei curso, a não ser
o alemão. Desde menino, eu falo inglês,
francês, alemão, russo, ita li a no, espanhol.
Recentemente, estudo árabe. Fui professor
de latim. Falo iurubá, que é a língua dos
terreiros, um pouco do crioulo de Cabo
Verde.
Enfim, sou muito afeito a línguas
es tran gei ras. Hoje menos, mas era muito
mais. Foi então pelo interesse pela língua
que me in te res sei por lingüística. E da
lin güís ti ca pas sei para a semiótica. Mas
não dou mais aula disso. Particularmente,
não me in te res sa mais como um método
para estudo. Não con fio mais nos
re sul ta dos me to do ló gi cos da análise de
discurso. Eu acho que é a reflexão o
caminho. Mas eu gosto par ti cu lar men te da
semiótica de Peirce. E tem gen te que faz
coi sas criativas com a se mi ó ti ca de Peirce.
Cito por exem plo um uru guaio, que é muito
ami go meu, chamado Fernando Antarsht.
Mas a ten dên cia é sem pre repetir
um pou co o que Pe ar ce fez. En tão, o que
eu noto é que a se mi ó ti ca, assim como a
aná li se de dis cur so, é muito um fas cí nio
como mé to do dos ou tros, é muito a
repetição me to do ló gi ca.
RF – Um conceito que nos parece
im por tan te na sua obra é o de mito e nesse
sen ti do Barthes é um autor com infl uência
de ci si va, principalmente ao trabalhar a
ques tão da identidade, não é mesmo?
Sodré – Esse conceito me foi dado
com o es tru tu ra lis mo, principalmente
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 31
com Bar thes. O seu livro Mitologias me
im pres si o nou mui to. Não só pela maneira
como ele es cre via aqueles textos, mas
também pelos ca mi nhos metodológicos
que ele indicava, mostrando como o mito
era uma palavra evasiva. Não era mais o
mito das so ci e da des tradicionais. Mas um
mito empurrado pela ideologia. O mito de
Barthes era mais uma mitologização do
que um mito ori gi nal. A maneira como a
eternização da ide o lo gia invadia as fi guras
da cultura bur gue sa pra convencer as
pessoas da eternidade das signifi cações
burguesas. Só que isto era muito provisório
em Barthes. Quando ele fala de mitos,
ainda havia a consciência des mis ti fi ca da,
a consciência esclarecida e momentos
mitificantes da cultura bur gue sa. O
problema é que com a extensão da cultura
de massa tudo tende a ser res sig ni fi ca do,
mitologizado no espaço público.
Então essa categoria perdeu a
im por tân cia pra mim com a expansão da
cultura in dus tri al. Mas eu passei a valorizar
a ques tão do mito doutra maneira. Ou seja,
ver a ver da de nos mitos originários, li ga dos
às gran des cosmogonias na cultura ne gra.
O candomblé e o culto afro são sis te mas
que vivem o mito. Mas não é esse mito
ide o ló gi co, de ressignifi cação. É um mito
de re ve la ção originária do real. Não é um
mito a ser desmistifi cado, combatido. Mas é
um mito a ser compreendido. Vem daí. Vem
do estruturalismo e da minha vi vên cia na
cultura negra.
RF – E Barthes parece mesmo ter uma
in fl u ên cia decisiva no seu texto quando
ele trata sobre a “negação do outro”,
dos mo de los de reconstrução mítica da
iden ti da de. Isso é importante na sua obra e
está sen do cada vez mais, não é?
Sodré – Cada vez mais. Porque essa
ques tão tem uma contrapartida política. Eu
não vejo as ciências sociais no interior do
jogo político. Não é que as ciências sociais
vão ser doutrinárias, partidárias. Não é isso.
Elas só se justifi cam na medida em que são
capazes de responder, de atuar den tro da
práxis e constituição da sub je ti vi da de e da
identidade humana.
Então, as ciências da comunicação,
a teoria da co mu ni ca ção, interessam na
me di da em que eu posso fazer uma crítica
dos apa ra tos de po der, dos aparelhos de
do mi na ção, que es tão colocados aí pelo
mer ca do, pelo capital transnacional. Para
isso, eu tenho que ver quais são os pontos
de exer cí cio desse po der. E o ponto básico
é a ques tão da iden ti da de subjetiva.
RF – Então fale um pouco sobre a
sin gu la ri da de em relação à identidade.
A questão da perda de si no outro,
a importância da atitude ética para
aproximação das di fe ren ças, o que implica
singularidade ativa e não receptor passivo.
Sodré – A singularidade é um conceito que
se opõe ao de identidade. A iden ti da de
de pen de de comparações. O grande po der
cul tu ral e simbólico do Ocidente é o poder
de comparar. Em toda a comparação você
tem uma operação forte de poder.
Porque quem sobrevive à
comparação é o comparador. É aquele que
dá o termo com pa ran te. Quem é que tem
o poder de fazer a comparação? Daí dizem
que todos os ho mens são iguais. Mas
nessa frase quem diz que os homens são
iguais é mais poderoso do que os outros,
porque é ele quem faz essa comparação.
Mas nós sa be mos que to dos os homens
são diferentes. E não só pela cor, mas
de cabeça. Seu pai é diferente de sua
mãe, de seu irmão, di fe ren te de mim. E
ao mesmo tempo se me lhan te, já que é
pessoa. Não somos iguais nem de si guais.
Somos simplesmente pes so as di fe ren tes
que coexistem no espaço.
Então por que comparar? Falar no
mais for te, no mais sábio? No mais igual,
no menos igual? En tão a identidade é
o lu gar de po der sobre a consciência,
sobre a sub je ti vi da de. Já a sin gu la ri da de
não pre ci sa de com pa ra ção, pois ela é
a aceitação do outro tal e qual ele se
apresenta no seu mo vi men to, em sua ação.
32 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral Um exemplo nesse sentido pode ser em
relação a sua mãe, a sua na mo ra da. A sua
alegria interfere no outro. No fundo você
gosta de sua mãe pela ale gria que você
tem em relação a ela. Isso signifi ca que
ela é tal e qual como se apre sen ta. Com os
defeitos, as virtudes, é feia, bonita, ve lha,
nova, viva ou morta.
Você não a com pa ra com a mãe de seu
ami go. Essa aqui é a minha mãe. Você não
a ama pela sua iden ti da de, mas pela sua
sin gu la ri da de, pela sua in com pa ra bi li da de
em re la ção a você. É nessa am bi va lên cia
que você cresce e que ela também se
afi rma como sua mãe. Ambivalência é luta.
É a pos si bi li da de das coisas já iden ti fi ca das
mudarem um pouco de lugar.
RF – O senhor dialoga com diversos
au to res para fundamentar seu trabalho de
pes qui sa em comunicação. Baudrillard,
Fou cault e Christhopher Lasch, por
exemplo, teriam uma infl uência decisiva
em al gu mas refl exões. Estou certo? Quais
seriam os ou tros?
Sodré – Baudrillard, por exemplo, foi
para mim uma descoberta. Acho que é
um pen sa dor que não tem discípulos no
sen ti do de que ele tem a sua versão, o
seu chu te. Ele chuta muito. Criativo e
chutador. Daquela
forma e com aquele exagero, é uma jogada
dele. Ele é um criador ra di cal. Então é
possível pegar o que ele diz e fazer daquilo
um conceito para trabalhar. Porque ele
mesmo nos autoriza isso. E pen sa men to
é criação, chute e suor. Desse modo, ele
teve, sim, uma infl uência im por tan te no
meu texto. Eu sempre fui leitor de Marx,
que sugere recriação, me ensina a re cri ar.
E também fui leitor de Freud. E Bau dri llard
é alguém que passeava por esses autores,
in ven tan do, criando. Barthes tam bém me
in fl u en ciou bastante. Ele foi meu professor
em Paris, a exemplo de Bau dri llard, que é
meu amigo até hoje. As gran des infl uências
são Barthes e Baudrillard, sem dúvida
ne nhu ma.
RF – O senhor se considera um pensador
de esquerda. Seria por causa disso que sua
obra não faz uma abordagem culturalista,
pois leva em conta a ideologia? Suas
crí ti cas a Gilberto Freyre, por exemplo,
atestam essa perspectiva teórica.
Sodré – Por trás ou junto com todo o
re per tó rio cultural, de todo o enunciado
cul tu ra lis ta, tem um enunciado político.
Mes mo que a política representativa esteja
em crise no Ocidente, o homem é um
animal po lí ti co. As formas de socialização
são for mas políticas. A política não é
só uma ques tão partidária, a política
dos cientistas po lí ti cos. Política é esse
movimento de or ga ni za ção das formas de
vida, de re la ci o na men to com o Estado,
de relacionamento dos as su jei ta dos com
o poder. Portanto, eu acho que não é
possível encarar a co mu ni ca ção apenas a
partir dela mesma. Partir des se movimento
produtor disso que nós cha ma mos cultura.
A comunicação tem que ser pensada a
partir de fora. Nós podemos es tar dentro
dela, mas tem um de ter mi na do momento
em que é preciso olhar ela de fora para
poder ter um juízo crítico. E essa olhada
de fora, essa decisão de criticar, é uma
decisão política. Para mim, a ciência da
comunicação é um estudo com interesse
político e científico. Desse modo, sem
dú vi da nenhuma, minha abordagem não é
cul tu ra lis ta.
RF – Em A verdade seduzida, o senhor
afir ma que a cultura de massa é um
subcampo da cultura burguesa. Isso,
por exemplo, di ver ge do pensamento da
Teoria Crítica. Essa sua posição parece ser
bem coerente com seu pensamento, que
valoriza a cul tu ra ne gra no sentido dela ser
também capaz de produzir conhecimento.
Ou seja, o se nhor faz questão de salientar
que a cultura negra é singular em relação
à cultura de massa. Já o mesmo não
se poderia dizer em relação à cultura
burguesa. Seria isso?
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 33
Sodré – Essa refl exão é de 1983 e de lá
para cá as coisas mudaram muito. Naquele
mo men to, sem dúvida nenhuma, a cultura
de massa era um subcampo da cultura
bur gue sa. Um momento em que a cultura
de massa era muito ameaçadora e era uma
no vi da de. Neste momento, com a realidade
virtual, esse subcampo se confunde com
o campo da cultura burguesa. Já não há
uma distinção tão grande entre cultura
burguesa e cultura de massa. Na rede,
como na in ter net, a cultura dita “elevada”,
ou a cultura complexa, pode conviver
ciberneticamente com a trivialidade. Então,
essa distinção cul tu ra elevada/cultura de
massa deixou de ter a mesma relevância
que tinha vinte anos atrás. Por isso, hoje
não se tem um grande interesse teórico
em fazer essa distinção en tre campo e
subcampo.
RF – Essa idéia de campo e subcampo o
senhor se valeu da metodologia de Pierre
Bourdieu. Até que ponto ele foi útil para
essa refl exão?
Sodré – O Bourdieu para mim é um
ser ju rás si co. Ele faz aqueles grandes
sistemas e que me lembra um pouco
aqueles pin to res holandeses do século
XVIII. Um fazia o ros to, outro a roupa e
no fi nal o mestre as si na va o quadro que
era vendido na grande sala burguesa. O
Bourdieu me lembra mui to isso. É a fi gura
mais importante da so ci o lo gia francesa.
Produz aqueles grandes li vros, com muitos
pesquisadores, e no final ele assina.
Faz aquelas explicações de ta lha das
dos aspectos da cultura, mas ninguém
consegue ler por inteiro. São livros muito
tautológicos. Mas sem dúvida nenhuma,
prin ci pal men te o Bourdieu da primeira
fase, ele tem momentos importantes na
so ci o lo gia.
O Bourdieu da antropologia prá ti ca,
o Bour dieu da violência simbólica. Essa
his tó ria dos campos me serviu me to do lo gi c
a men te.
RF – Em Reinventando a cultura, o senhor
realmente abandona essa dicotomia cul tu ra
elevada/cultura de massa. Quando, por
exem plo, sua análise se detém à obra de
arte, notamos a problemática a respeito
dela, seja da cultura burguesa ou da
cul tu ra po pu lar, gerar demandas fora da
sis te ma ti za ção do valor de troca da cultura
de massa.
Sodré – Isso vale para qualquer obra que
quei ra se reconhecer ou não como arte. E
a pa la vra arte é cada vez mais complicada.
Eu acho que a obra de arte, como
sa í da do valor centrado no capital, é ao
mes mo tem po buscar no social qual é a
po tên cia mais alta do homem. O que no
homem fica como potência maior para
além do pre ço do mer ca do. Como é que o
homem pode ter ex pe ri ên cia de plenitude
a partir de sua própria autonomia. Como
é que ele pode celebrar os aspectos
efêmeros da vida dele, ver a eternidade
na plenitude dele, gozar in con di ci o nal me
n te a vida sem as cauções de pre ço, do
mercado, do valor.
RF – Nesse sentido, vale destacar a
sua aná li se no campo da literatura.
Gos ta rí a mos que o senhor comentasse
um dos as pec tos focalizados na sua obra:
o conceito de subjetividade, que entre
outras coisas ser ve para ressaltar como é
trabalhada a ques tão identitária na literatura
de massa, na elevada e na popular.
Exemplo: a des va lo ri za ção de negros e
índios na literatura de José de Alencar e
Monteiro Lobato.
Sodré – Para mim o romance foi a forma
po pu lar encontrada pelo Ocidente para
afi r mar na história o sujeito da consciência.
O con cei to de subjetividade depende
das nar ra ti vas que a sociedade elabora
sobre o que é esse sujeito autônomo,
consciente e se pa ra do do objeto. Portanto,
há sub je ti vi da de na medida em que há
narrativas so bre a sub je ti vi da de. Essas
narrativas são a fi lo so fia pla tô ni ca,
34 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral que é reaproveitada pela nar ra ti va do
cristianismo. É o ro man ce, a po e sia. É a
difusão dos retratos da mo der ni da de. São
todos os grandes textos que se re fe rem ao
homem como uma sub je ti vi da de au tô no ma,
isolada. Portanto, a li te ra tu ra do Oci den te,
principalmente a nar ra ti va ro ma nes ca, é
uma literatura voltada pra con so li da ção
da subjetividade, de uma sub je ti vi da de
com uma vida interior a ser sondada pelos
poetas, pelos analistas da alma, pelos
psicanalistas. A literatura do Ocidente,
en tão, é uma literatura de mons tra ti va da
cons ti tui ção do sujeito, feita por sujeitos
even tu al men te geniais. É uma exal ta ção da
grande subjetividade. Ora, isso não ocorre
na cultura negra, nas cul tu ras tradicionais,
porque o que está posto no primeiro plano
é o grupo, a coletividade. É a subjetividade
grupal, e não é a mesma coisa da
sub je ti vi da de individual. Nesse meu livro
A teoria da literatura de massa eu mostro
a diferença entre a literatura de con su mo
e a literatura de grande alcance sim bó li co,
tendo no meio como di fe ren ci a do res os
aparelhos de reprodução dos efeitos, que
no caso da gran de literatura é a escola. E
mostrar que no caso de outras literaturas,
de outros dis cur sos, há instrumentos
ma te ri ais de re pro du ção dos efeitos que
não es tão ne ces sa ri a men te ligados à
sub je ti vi da de. Por exem plo: a literatura dos
escritos negros e tam bém a literatura de
grande con su mo, onde também não é tanto
a sub je ti vi da de do au tor que é valorizada,
mas a subjetividade dos personagens.
São téc ni cas também de produção de
subjetividade, mas a partir dos conteúdos.
RF – Um aspecto da subjetividade que o
senhor salienta e que está presente tanto
na literatura de massa como na televisão
diz respeito ao seu caráter pedagógico para
a constituição do sujeito.
Sodré – A televisão, assim como a li te ra tu ra
de massa, é pedagógica. Aí há um pon to
em comum, sem dúvida nenhuma. E
cada vez mais nós estamos vivendo um
pe da go gis mo público. Um pedagogismo
po pu lar, que tenta o tempo inteiro ensinar
coi sas às pessoas. Já não vê mais de sin t
e res sa da men te animais na televisão. Você
tem que saber como é que aqueles animais
se re pro du zem, vivem. Não há mais uma
con tem pla ção distraída, desinteressada.
RF – Com a realidade virtual já teríamos
outro tipo de análise em relação à
sub je ti vi da de.
Sodré – Os conteúdos da literatura de
mas sa são da ordem do imaginário, da
or dem da fabulação mítica. Ao mesmo
tem po, da or dem de uma pedagogia da
cons ti tui ção do sujeito. Enquanto que na
re a li da de vir tu al, eu acho que ela supera
a ques tão do ima gi ná rio. A realidade virtual
é esse ima gi ná rio feito realidade. Já não
se trata mais de um lado o real e do outro
o imaginário, como é no caso da literatura
de massa. En tão na realidade virtual o
ima gi ná rio se subs tan ci aliza. Você entra
nele, você vive ele. Você já não sabe
mais o que é real e o que é imaginário. O
que está em questão aí é exa ta men te a
indistinção entre real e ima gi ná rio.
RF – Notamos em seu texto, entre outros
aspectos, três linhas de força para o
estudo da cultura de massa: a questão do
poder, da subjetividade e da identidade.
A iden ti da de, por exemplo, o senhor
trabalha em toda a obra. Notamos isso,
por exemplo, quando trata da conversão
de falante/ou vin te para emissor/receptor.
Nessa con ver são já te rí a mos, de modo
implícito, a pro ble má ti ca da identidade: ou
se é produtor ou se é consumidor. Ou seja,
o sujeito não tem ex pe ri ên cia existencial
com o código. Já em Claros e escuros, o
senhor estuda a iden ti da de explicitamente:
a identidade cul tu ral bra si lei ra. Como se
dá a evolução de seu pen sa men to sobre a
identidade no seu tex to?
Sodré – Essa questão da identidade que
es ta va no receptor, ou se é produtor ou
se é con su mi dor, eu mesmo não havia
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 16 • dezembro 2001 • quadrimestral 35
per ce bi do isso dessa forma ... Mas o que
você está di zen do faz sentido. Isso é
luta, entendeu? E luta significa
a possibilidade de os ter mos polares de
uma relação terem va lên ci as diferentes
no relacionamento. E na mí dia, você
não tem peso diferente. A mí dia está
ali, estática e imóvel, falando com você.
Agora, eu me dou conta do seguinte: que
a intelectualidade brasileira sempre teve de
forte o pensamento sobre a iden ti da de. A
identidade foi o campo de onde poderia ter
nascido a fi losofi a brasileira. Foi aí nesse
campo onde despontou gente como Afonso
Arinos, Gilberto Freyre, Sér gio Buarque de
Holanda, Caio Prado Jú ni or, Capistrano
de Abreu. Foram autores que tentaram
explicar a identidade na ci o nal. E a partir
daí produziram obras re ve la do ras sobre
o Brasil, com perspectivas so ci o ló gi cas,
antropológicas, históricas, psi co ló gi cas.
Mas eram obras que misturavam
es sas dis ci pli nas. Não se limitavam a uma
úni ca pers pec ti va teórica, o que resultava
numa quase filosofia. Não era filosofia
por que as questões não tinham unidade
na cons ti tui ção e nem no campo do
pen sa men to. Era um ensaio. A questão da
iden ti da de na ci o nal sempre me interessou.
Me interessou do ponto de vista do negro,
que não res pon de a essa questão da
identidade na ci o nal reflexivamente pela
escrita, mas res pon de pela ação, pela
liturgia, pela fes ta, pelo sagrado, que é
outro modo de res pon der. Respondeu com
o corpo. Não res pon deu com a cabeça. E
o corpo é um ou tro tipo de pensamento. A
corporalidade tem uma lógica própria de
pensar. E tudo isso parte da questão da
identidade. Mas pensando agora no que
você diz, re tros pec ti va men te, eu vejo que
a questão ... falante, ouvinte, é também
uma questão da mu dan ça da identidade no
sujeito ... Cabe a você falar nisso .
Nota
Entrevista concedida a Paulo Cirne Caldas, Mestre em
Co mu ni ca ção - FAMECOS/PUCRS, em junho 2001.
Tatuagem, gênero e lógica da diferença
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006 251
Tatuagem, Gênero e Lógica da Diferença*
CÉSAR SABINO 
MADEL T. LUZ 
RESUMO
Este artigo analisa a lógica das tatuagens dos fisiculturistas e freqüentadores
assíduos das academias cariocas de musculação e fitness, destacando o aspecto
identitário de tal lógica e sua relação com a questão da diferença e das
hierarquias sociais associadas, no estudo, à concepção cosmológica presente
no pensamento metafísico ocidental. Tal concepção é confrontada com o
perspectivismo ameríndio, no qual a diferença e o devir se apresentam como
cerne do cosmos.
Palavras-chave: Tatuagem; gênero; fisiculturismo; identidade; diferença.
Recebido em: 03/07/06.
Aprovado em: 26/07/06.
252
César Sabino e Madel T. Luz
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006
Introdução
Em diversas culturas de distintas complexidades, a tatuagem mobiliza
olhares, reflete sentimentos, classifica e ordena subjetivamente o fluxo
intermitente de indivíduos que lhe servem de tela e que nela buscam distinções
simbólicas. Formando uma espécie de linguagem, os desenhos da epiderme
apresentam uma “gramática” que possibilita organizar nas academias de
musculação o regime da visibilidade institucional. Portanto, a tatuagem, do ponto
de vista sociológico, é uma linguagem que “está intimamente ligada à organização
social: [apresentando] motivos e temas [que] servem para exprimir diferenças
de posição, privilégios de nobreza e graus de prestígio” (LÉVI-STRAUSS,
1975, p. 292).
A “gramática” epidérmica parece manifestar-se por intermédio de uma
contradição: a maioria dos(as) tatuados(as) das academias pesquisadas escolhe
seus desenhos após uma decisão pessoal que expressa a vontade de distinção.
Tatuando-se, buscam singularizar suas figuras, sempre lhes conferindo uma
característica diferencial, um detalhe específico; alguns até mesmo “inventam”
seus desenhos ou “carregam” no estilo do mesmo ao se dirigirem ao tatuador.
Toda essa atitude é engendrada na busca de uma individualidade relacionada à
concepção de livre arbítrio e da distinção daquele que faz suas escolhas, pelas
quais se vê como plenamente responsável.
De fato, segundo Sanders (1989), a tatuagem é um meio de individuação
que tem a tarefa de demarcar a diferença em relação ao outro, tatuado ou não.
Também constitui uma demarcação de inconformismo que pode expressar a
incorporação de uma estética pessoal. Por outro lado, a grafia epidérmica
permite reivindicar o pertencimento a uma categoria social, servindo como
uma espécie de “etiqueta coletiva” (DURKHEIM, 1972, p. 113), simbolizando
a filiação privilegiada a um grupo social específico que busca demarcar sua
identidade coletiva em um processo de emblematismo.
Embora os fisiculturistas que participam freqüentemente de competições
não as exibam em profusão (pois se os desenhos forem grandes poderão
atrapalhar a visão de seus músculos ou desviar deles a atenção), as tatuagens
estão presentes em inúmeros corpos nas academias de bodybuilders e
“marombeiros”.1 Numa pequena amostra da sociedade da performance e da
aparência que constitui tais instituições, a superfície da pele realça o que ela
reveste, aquilo que constitui objeto e propósito de todo o trabalho nesses locais:
o músculo. O desenho gravado na epiderme surge como espécie de acabamento
Tatuagem, gênero e lógica da diferença
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006 253
artístico num contínuo processo de busca por um ideal estético que envolve a
encenação pública e a encarnação de papéis inerentes à dinâmica social. Se
corpos musculosos “pavoneiam” (FOUCAULT, 1990, p. 9) pelos cenários
repletos de espelhos, halteres e máquinas de exercícios, as tatuagens conferem
a esses corpos o paroxismo da visibilidade que lhes é inerente.
Associadas, no Ocidente, à marginalidade até a década de 60 do século
XX - quando estigmatizados como presidiários, motoqueiros dos Hell’s Angels
e marinheiros sem nenhuma patente desenhavam, por vezes de forma canhestra,
imagens, palavras ou frases em seus corpos -, as tatuagens se tornaram
atualmente parte do cotidiano das classes superiores. Decoram o corpo de
indivíduos de idades variadas e demonstram a existência de um processo de
circularidade cultural, no qual o poder de um item estigmatizado se torna emblema
de status e domínio, invertendo o jogo social pela disputa de hegemonia simbólica
das classes (GINZBURG, 1986; BAKTHIN, 1987).
Como os costumes de um povo, grupo social ou classe se organizam
em sistema que apresenta um estilo, ocorre, por vezes, uma transposição cultural,
uma reinterpretação de significados que fazem parte da própria dinâmica
coletiva. Tal movimento é possível porque, dentre outros aspectos, os sistemas
não se organizam em número ilimitado, sugerindo, de acordo com um clássico,
que “as sociedades humanas, assim como os indivíduos - em seus jogos, sonhos
e delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher certas
combinações num repertório ideal” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 167).
Nas academias de musculação é possível perceber a produção coletiva
- e inconsciente - de uma gramática imagética composta por inúmeros itens
retirados e reinterpretados de outras culturas e/ou classes sociais. Tatuagens
inspiradas em figuras mitológicas pertencentes às culturas da Polinésia Francesa
e celta (denominadas tribais), japonesa, chinesa, hindu, balinesas, medieval, além
de ideogramas e personagens de quadrinhos e de desenhos animados, que vão
de super-heróis a anti-heróis, sem contar toda uma classificação “totêmica”
inspirada em animais e fenômenos naturais, como cães, tigres, panteras, beijaflores,
raios e estrelas, decoram os corpos dos freqüentadores, nem sempre
fisiculturistas. Há também toda uma formação simbólica organizada em torno
de objetos pertencentes à atual cultura de mercado e cyberculture, como marcas
famosas de roupas e tênis (Nike, Adidas, Mizuno) e símbolos da computação,
tais como @, além de códigos de barra, em geral estampados em locais
estratégicos do corpo, como nuca, pulso ou região lombar.
254
César Sabino e Madel T. Luz
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006
Canevacci (1993) ressalta que nas grandes megalópoles a linguagem
visual assume papel efetivo, por sua instantaneidade. Propõe que o antropólogo
das sociedades complexas preste detida atenção à linguagem dos signos visuais,
pois essa linguagem ressalta o hibridismo, ou sincretismo cultural, que vem
imperando nos centros urbanos. Tal hibridismo consolida o corpo como mapa
social, expressando narrativas individuais e coletivas simultaneamente. Essas
narrativas - da mesma forma que a bricolagem - são construídas por diversos
itens, ou termos, pertencentes a culturas diversas tanto no tempo quanto no espaço.
Desta maneira, por exemplo, uma mulher com ascendência alemã pode estampar
em seu cóccix uma tatuagem “tribal”, marca ancestral de homens taitianos, ou
um entrelaçado celta, recriando a partir da mitologia germânica a concepção de
“forças do infinito”. Tudo isto com o objetivo - consciente - de não apenas tornarse
singular, mas de se identificar - muitas vezes inconscientemente - com
determinado grupo que freqüenta locais (os chamados points) e que consome
produtos específicos, escuta determinado tipo de música e assim por diante.
Essa construção identitária, ao mesmo tempo concêntrica e excêntrica,
está diretamente relacionada à dimensão visual das interações sociais. Quanto a
esse aspecto, há a necessidade de expor signos, sejam eles músculos ou desenhos,
corte e cor de cabelo, roupas ou ideogramas inscritos na pele. Esse apelo visual
das sociedades complexas se faz presente delimitando espaços, demarcando
diferenças e fazendo com que - no caso específico - os componentes das academias
entrem no cenário iluminado da vida urbana com sua mise-en-scène singular
inerente aos fluxos culturais preponderantes na cultura globalizada (HANNERZ,
1997; LUZ, 2003; LE BRETON, 2004), superexpondo-se num jogo que pode ser
exemplificado pela produção do corpo-imagem nos campeonatos de fisiculturismo,
nos quais cada fibra muscular deve ser mostrada e demonstrada em uma espécie
de dissecação em vida do competidor.2 Mostrar, expor as entranhas musculares,
exibir, alardear, ser notado, não apenas ostentando os adereços que compõem a
sociedade de consumo, mas sendo dela o próprio adereço: “o corpo humano se
torna um corpo panoramático que reflete, retroage e projeta infinitas combinações
de sinais ventríloquos” (CANEVACCI, 1993, p. 23).
Pele de homem. Pele de mulher
As tatuagens nas academias de musculação dividem-se em femininas,
masculinas e unissex. Mulheres tendem a tatuar determinadas figuras, como
rosas e flores em geral, estrelas, borboletas, lua, sol, personagens femininas de
Tatuagem, gênero e lógica da diferença
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006 255
histórias em quadrinhos, beija-flores, gatos e fadas. Ideogramas, desenhos tribais,
palavras e frases em letra gótica, símbolos da computação, códigos de barra,
corações, duendes, deuses ou deusas mitológicos são símbolos inscritos tanto
na pele de homens quanto de mulheres. Águias, cruzes, panteras, tigres, dragões,
demônios, caveiras, armas, arame farpado, sereias, mulheres nuas, tubarões,
esqueletos com foice e capuz e, principalmente, cães da raça pitbull, são
tatuagens masculinas. Os locais do corpo também definem o gênero: mulheres
costumam tatuar a nuca, a região lombar (principalmente as chamadas tribais),
os seios, as nádegas e virilhas, às vezes omoplatas, pés e calcanhares. Já entre
os homens os desenhos situam-se principalmente no bíceps (em geral na parte
exterior, mas também há desenhos na parte interior), costas, deltóide, antebraço
e mais raramente abdômen, panturrilhas e peito.
As divisões estabelecidas pelos desenhos configuram a manutenção,
reprodução mesmo, da gramática das diferenças inerentes às relações de gênero.
Quando pensa escolher seu desenho (seja ele qual for), o indivíduo é “escolhido”
por todo um conjunto de representações e práticas, estruturas subjetivas e
objetivas reproduzidas pelo estilo de vida que articula e imita (EDMONDS,
2002). Tal sistema (inconsciente) aparta, organiza, distingue e constitui as
(dis)posições sociais, alocando o indivíduo em uma, e exprimindo a sua condição
de gênero e classe.3
A tatuagem - surgida, como dito acima, entre pessoas antes consideradas
escória social - tornou-se o emblema, ao menos nos casos das academias
cariocas de musculação e fitness, o ethos de uma fração da classe média que
hipervaloriza a exposição estética. Ela se apresenta como adorno e acabamento
distintivo daqueles que buscam, no cultivo do corpo, dos músculos e da ausência
de adiposidade, o sinal de destaque e superioridade sensitiva característicos
dessa camada social. Tais estruturas subjetivas e objetivas são inscritas nos
corpos em um duplo processo de “interiorização da exterioridade e exteriorização
da interioridade” (BOURDIEU, 1983, p. 47). O aspecto “volátil” dessa ética
estética característica de parcelas da sociedade urbana atual é reiterado pelo
fato de que, tendo em princípio sido inscrições feitas na pele para toda a vida
(ou seja, supostamente inalteráveis), hoje os grupos de tatuados adotam, por
vezes, a estratégia de realizar outro desenho por cima da figura que já não mais
satisfaz seus objetivos, cobrindo uma tatuagem com outra.
Mas o que significam essas tatuagens? Qual é sua função no contexto
cultural estudado? Qual é o sentido do ato de tatuar-se para os que se tatuam?
256
César Sabino e Madel T. Luz
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006
Adiantando uma via interpretativa, podemos repetir, a respeito das tatuagens,
que elas, de uma forma ou outra,
conferem ao indivíduo sua dignidade de ser humano; operam a passagem da
natureza à cultura, do animal “estúpido” ao homem civilizado. Em seguida,
diferentes quanto ao estilo e à composição [...] expressam, numa sociedade
complexa, a hierarquia dos status. Possuem, assim, uma função sociológica
(LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 183).
O desenho pode significar, para aquele que o tem em seu corpo, uma
iniciação, o pertencimento, a identificação e a aceitação em determinado grupo:
[...] “mandei” esse dragão porque todo o pessoal que conheço tem tatuagem
na academia, e no tatame, os caras mais “feras” têm as mais “iradas”, as mais
“maneiras” [...] aí mandei esse dragão no braço... Agora quero fazer um
pitbull aqui nas costas (Carlos. 23 anos. Estudante, fisiculturista amador e
lutador de jiu-jitsu).
Ou:
Ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... A galera toda lá do curso tinha,
aqui na academia as garotas todas têm tatoo e piercing, cê sabe, né? É moda,
sei lá [...] aí eu mandei essa aí na nuca e depois botei o piercing no umbigo
[...] minha mãe reclamou muito, não me deu o dinheiro p’ra fazer, aí eu
comecei a vender uns colares e pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro
e fiz (Tatiana. 18 anos. Estudante).
O “sofrimento de ser escrito pela lei do grupo [a dor] vem acompanhado
de um prazer, o de ser reconhecido, de se tornar uma espécie de palavra
identificável e legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de um
texto anônimo, de ser inscrito em uma simbólica sem dono e sem autor” (DE
CERTEAU, 2002, p. 232). Essas mensagens, não raro, estão relacionadas a
uma suposta rebeldia presente nos movimentos estético-musicais de massa:
eu tenho o Bob Marley nas costas, ainda não acabei de fazer, vai demorar um
tempo porque tem que colorir toda e é grande, pega toda as costas como ‘cê
tá vendo, né? [...] mandei essa tatoo por que gosto de reggae, me identifico com
a mensagem do Bob, desde moleque eu gosto [...] de vez em quando aperto um,
claro, né?, P’ra acalmar [...] então a tatoo tem tudo a ver [...]. É um lance cabeça
e pele, sei lá (Filipe. 24 anos. Estudante, fisiculturista e skatista amador).
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Representações e práticas podem ser sugeridas pelos símbolos que os
integrantes desse grupo urbano inscrevem na pele. As tatuagens mais comuns
entre os fisiculturistas e freqüentadores assíduos das academias são aquelas
que expressam força, autoridade e poder, relacionando-se este diretamente à
virilidade. Junto a esses símbolos aparecem os ligados ao uso das drogas: ratos
com corpo de fisiculturista e duendes musculosos fumando maconha, além de
cogumelos de todos os tamanhos, alusão a um dito chá de cogumelo alucinógeno,
e o próprio desenho da planta cannabis sativa.
Essas alusões às drogas merecem uma hipótese: o rito de iniciação de
um marombeiro - aquele que se torna um freqüentador assíduo das academias,
futuro fisiculturista - está relacionado ao uso coletivo dos esteróides anabolizantes.
A maioria desses freqüentadores utiliza tais substâncias para melhorar
desempenho no treinamento, aumentando a força, diminuindo o percentual de
gordura e ampliando a massa muscular. A convivência com esta realidade repleta
de substâncias químicas é, portanto, fato inevitável para os atuais freqüentadores
assíduos de academias. Para construir sua identidade e ser aceito no grupo
(salvo raras exceções), o agente necessita passar pelo uso de tais substâncias.
O processo ainda é reiterado pela concepção da boa forma física, a aparência,
como sinônimo de saúde.
A droga faz parte do processo ritual de iniciação, rito de instituição,
estando presente, de forma duradoura, no cotidiano dessas pessoas. Durante
nosso trabalho de campo foi possível perceber que muitos utilizam drogas, além
das “bombas”, em festas ou momentos de lazer fora das academias. Tatuar
sobre os músculos os símbolos relacionados ao consumo de drogas reitera e
afirma o pertencimento do tatuado às estruturas objetivas e subjetivas que
perpassam e constituem as práticas de cultivo da forma. Quando a tatuagem
alude à iniciação às drogas, ela articula um processo que permite ao tatuado se
fazer e se perceber como parte de um grupo.
A tatuagem também pode representar uma extensão e complemento
do significado dos músculos e de tudo aquilo que está envolvido no seu cultivo.
Figuras de cães ferozes, caveiras e cruzes, morte, símbolos de super-heróis,
tigres, panteras e dragões, enfim animais e objetos considerados perigosos servem
como advertência: “Cuidado, sou perigoso!” (DIÓGENES, 1998). A imagem
do cão da raça pitbull, por exemplo, considerado feroz e de temperamento
explosivo, surge na fala dos marombeiros como símbolo de força e daquilo que
consideram qualidades: agressividade, destemor, ferocidade e potência: “[...]
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esse pitbull aqui [aponta para a imagem tatuada na panturrilha] é o meu
mascote... Ele me dá força” (Pedro. 25 anos. Estudante). Ou:
A tatoo dessa fera aqui, no braço [...] nesse braço aqui, é do meu pitbull [...]
eu me identifico com essa raça de cachorro, tem um movimento aí que quer
acabar com eles, já ouviu falar, né? Dizem que o bicho é violento e coisa e
tal [...] mas não vão conseguir, a gente que luta, que malha que gosta de
esporte radical, a gente se amarra nesse bicho [...]. Vamos continuar criando
[...] ele é nosso símbolo [...] forte. A mordida dele tem mais de uma tonelada
de pressão, é isso aí, quero que meu soco também fique com uma tonelada
de pressão... (João. 28 anos. Comerciante).
No que concerne às mulheres das academias, as figuras remetem à
delicadeza, sensualidade e submissão. Tais desenhos acentuam esteticamente
aquilo que tradicionalmente é considerado feminilidade em nossa cultura - ou os
encantos, particularmente para os olhos masculinos, dessa feminilidade (FREYRE,
1986). Essas figuras são inscritas, geralmente, em regiões específicas do corpo
da mulher: quadris, ventre, seios, virilhas, nuca. Se, no registro masculino, os
desenhos ressaltam a musculosidade e a masculinidade de regiões do corpo que
representam a virilidade e a força - e, portanto, a honra de ser homem - no
registro feminino tais desenhos destacam o inverso, ligando a força feminina
diretamente à sedução e à sexualidade. A tatuagem torna-se um adorno para as
qualidades físicas diretamente ligadas ao gênero e às hierarquias de poder e
relações de força a ele inerentes (LE BRETON, 2004). Mesmo aquelas figuras
unissex, que poderiam dar a impressão de mudança de condição disfarçada pela
mudança de posição, são inscritas nas regiões específicas do corpo nas quais
ficam demarcadas as peculiaridades do contrapoder feminino radicado na
dependência da dominação masculina. O desenho aí surge como adorno das
qualidades sensuais e sedutoras da mulher - mesmo quando suposto sinal de
“liberação” - sugerindo que o uso do corpo e da estética feminina continua
subordinado e radicado no ponto de vista masculino, já que tais qualidades sensuais
o são justamente por reiterarem a condição subordinada daquela que as apresenta:
o corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado [nos jogos de
sedução] manifesta a disponibilidade simbólica que [...] convém à mulher, e
que combina um poder de atração e de sedução [...] adequado a honrar os
homens de quem ela depende ou aos quais está ligada, com um dever de
recusa seletiva que acrescenta ao efeito de “consumo ostentatório” o preço
da exclusividade (BOURDIEU, 1999, p. 40-1).
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Demarcar regiões corporais que são alvo da cobiça sexual masculina -
por significarem a condição tradicional de mulher - parece funcionar como uma
potencialização da sedução:
[...] a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do bumbum... É claro,
né, são lugares de mulher fazer tatoo [...] Por quê? Porque dá um tchan, um
destaque naquela parte que você acha que você tem de legal, que atrai os
caras, que te dá aquele charme [...] entende? Se a mulher tem uma cintura
bonita, fininha, um quadril largo, ela manda logo uma tribal aqui [aponta para
a região abaixo dos rins], se ela tem um peitão bacana manda uma no peito,
e aí vai... Tá ligado? Muita mina diz que faz na nuca, na bunda que é p’ra
não enjoar da tatoo, porque ali ela não fica vendo o desenho o tempo todo,
tudo bem, pode até ser, mas é muito mais p’ra dar um destaque naquela parte
do corpo que ela acha que tem legal (Juliana. 20 anos. Estudante).
Entretanto, nem todas demonstram essa reflexividade a respeito da
função da tatuagem: “Fiz tatoo porque gosto, não tem porquê... Achei legal e
mandei no tornozelo, depois esse ideograma na nuca que quer dizer vida e
amor; é isso fiz porque fiz e pronto” (Mariana. 25 anos. Jornalista).
Deste modo, ao se servir do seu próprio corpo, a mulher tatuada, ao
menos neste caso específico, naturaliza uma ética estruturada culturalmente
que a constrói como ser-para-o-outro. A tatuagem parece então surgir como
uma espécie de adorno que realça e sensualiza determinados dotes físicos,
conferindo e reiterando à portadora o poder (ou o contrapoder) e o quantum da
sua feminilidade, construída como complemento e contraposição à masculinidade
que a define em oposição a determinada sensualidade masculina que reside na
musculosidade diretamente ligada à figura do homem senhor de sua força e de
forças alheias. A dureza muscular, a grandeza e, por vezes, a rusticidade tornamse
sinônimos para as mulheres dessas instituições, de excelência:
gosto de homem com cara de homem, corpo de homem, jeito de homem, não
precisa ser um monstro de músculos, mas tem que ser malhado, tem que ser
grande, espaçoso, tem que ter pegada [risos], jeito de macho, presença [...]
que impõe respeito, autoridade [...] (Fabiana. 28 anos. Advogada).
O quadro a seguir sugere alguns aspectos classificatórios representados
pelas figuras tatuadas nos corpos dos fisiculturistas e freqüentadores assíduos
das academias de musculação e fitness. A classificação está diretamente
relacionada à divisão de gênero, com suas relações de poder inscritas no corpo.
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Tatuagem e lógica da identidade
A existência da classificação triádica sugerida acima (tatuagem de
homem, tatuagem de mulher e unissex), representada pelas figuras desenhadas
na pele tanto de homens quanto de mulheres, talvez se refira a uma maleabilidade
classificatória relacionada à conquista feminina da igualdade entre os sexos. É
possível interpretar que tal ambigüidade apenas reitera que a mulher mudou de
posição, mas, na maioria das vezes, não mudou de condição social, pois a disciplina
que tradicionalmente se impõe ao seu corpo, delimitando sua situação em
contraposição à condição masculina, conforme é possível perceber nas academias
de musculação, ilustra a significação moral inscrita não apenas na sua aparência,
mas em seus atos: costas a serem mantidas retas, andar requebrado e
malemolente, quadril empinado, ausência de barriga, pernas fechadas ao sentar,
seios propositadamente enfatuados, olhares de soslaio, etc., como se a
feminilidade se medisse pela arte de se fazer delicada ou pequena (BOURDIEU,
1999; SIMMEL, 1993). As técnicas corporais femininas presentes nas
sociedades complexas têm por efeito paradoxal - através da demonstração de
disciplina e contenção, da oferta e da negação da oferta, de suposta dissimulação
- concretizar e reiterar a ordem da sedução e da beleza femininas, socialmente
construídas, mostrando e demonstrando, mesmo que circunstancial e
sorrateiramente, os atrativos do corpo relacionados diretamente a sua
sexualidade.
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Tanto a Sociologia como a Antropologia urbana têm elaborado
abordagens teóricas que universalizam a dominação masculina. Assim, grosso
modo, procedem as abordagens, por exemplo, de Lévi-Strauss e Bourdieu.4
Porém, novos estudos direcionados às sociedades tribais não-estratificadas da
Amazônia e Nova Guiné não compartilham a universalidade dessa dominação,
reiterando que em tais sociedades, em geral, as relações entre os gêneros são
permeáveis e equilibradas (OVERING, 1984; CASTRO, 2002; GONÇALVES,
2001; LAGROU, 1998). Esse aspecto pode ser percebido, por exemplo, nas
práticas da couvade, quando após o parto o homem também fica de resguardo.
Essa prática seria inerente às sociedades nas quais as tarefas sexuais são
relativamente flexíveis e o poder e o status feminino são altos. A couvade
talvez sirva para estabelecer as tarefas do pai na vida da criança e para equilibrar
as funções masculinas e femininas na criação destas.
Outro comportamento ritual que demonstra a imitação masculina do poder
reprodutivo feminino é o “saignade”, ritual de sangramento que imita a
menstruação. Embora o sangue menstrual seja universalmente temido, em muitas
culturas acredita-se também que ele carregue grande poder, sendo fonte e causa
da saúde superior das mulheres e também causa do seu rápido crescimento.
Assim, entre os Menihaku da Amazônia existem inúmeras ocasiões nas quais os
homens menstruam simbolicamente, sendo a mais significante o ritual de perfuração
das orelhas. Entre os Sambia das terras altas da Nova Guiné, o sangue menstrual
também é identificado com a vitalidade, longevidade e feminilidade das mulheres.
Para garantir saúde similar e longevidade, os homens Sambia produzem um ritual
doloroso e brutal de imitação da menstruação, no qual se provoca o sangramento
do nariz nos jovens durante cerimônias de iniciação (COUNIHAN, 1996).
Sacralidade similar em relação ao sangue menstrual e exaltação do poder feminino
foram percebidas por Osório (2000) em relação ao grupo de praticantes da bruxaria
moderna no Rio de Janeiro, denominado Wicca.
Se em muitas culturas existe equivalência entre os gêneros, este não é
o caso entre fisiculturistas e marombeiros. A classificação triádica existente no
sistema simbólico da tatuagem provoca apenas uma ilusão igualitária, radicada
na suposta maleabilidade simbólica da tatuagem unissex. As classificações dos
desenhos da epiderme remetem às classificações ternárias destacadas no
pensamento selvagem estudado por Lévi-Strauss (1975a e 1975). O autor sugeriu
o caráter contínuo (ou de continuidade dinâmica do mundo) presente no raciocínio
selvagem: “as sociedades que denominamos primitivas não concebem que possa
existir uma fossa entre os diversos níveis de classificação [...] representam
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PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006
[tais níveis] como as etapas ou os momentos de uma transição contínua” (1975a
p. 202). De acordo com Lévi-Strauss, na classificação primitiva não há a
concepção estática da realidade, mas esta é percebida como processo dinâmico,
com ausência de formais escaninhos estanques, como poderia sugerir uma análise
apressada do binarismo presente nas temáticas estruturalistas.
A binaridade lógica (ou as partições ontológicas) apresentaria uma
solução original no pensamento selvagem: sendo relação entre contínuo e
descontínuo, o universo estaria “representado em forma de um continuum
composto de oposições sucessivas” (LÉVI-STRAUSS, 1975a, p. 205). Conforme
assinala Viveiros de Castro, as oposições binárias estáticas não estariam
presentes nessa ontológica, pois, nesta, a identidade não seria nada mais do que
um caso ou manifestação da diferença.
Apontando para um erro comum na Antropologia urbana, o autor
assinala que uma antropologia das sociedades complexas não deveria se
preocupar apenas em encontrar nas culturas e sociedades nacionais de tradição
cultural européia ou eurasiáticas, a mesma lógica ou sentido constatada entre
os “primitivos”, mas, ao contrário, buscar as diferenças entre tais sociedades.
O autor ainda afirma que uma concepção nublada do estruturalismo levou
inúmeros pesquisadores de sociedades complexas, de modelos europeus ou
asiáticos, a fazerem projeções de termos de uma cultura para outra. Tal equívoco
apenas demonstra que uma projeção efetiva deveria ser a do tipo geométrico,
em que as relações fossem preservadas e não os termos, por exemplo:
o “‘equivalente” do xamanismo ameríndio não é o neoxamanismo californiano,
ou mesmo o candomblé baiano. O equivalente funcional do xamanismo
indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias,
é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o acelerador de partículas
de lá (CASTRO, 2002, p. 489).
Esse erro de projeção tem impedido muitos pesquisadores de
perceberem as singularidades estruturais entre tipos de pensamento muito
distintos e, portanto, também impedido de perceberem a singularidade das
práticas socioculturais que apresentam conseqüências opostas em culturas
diferentes. Ao transporem os termos e não analisarem comparativamente as
relações, os pesquisadores mantêm um universalismo incapaz de perceber as
implicações críticas que tais relações colocam para a base cosmológica, a
racionalidade, do pensamento ocidental e suas práticas.
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Talvez a busca pelo imutável, pela identidade - entendida como essência
metafísica -, característica da cultura ocidental (SCHÖPKE, 2004; DELEUZE,
1981), possa ser expressa, dentre outros aspectos, pelas tatuagens circunstanciais
- em forma de frases. Tais tatuagens buscam eternizar um instante da vida
(circunstâncias), um momento, uma data, uma relação através da fixação na pele
de um nome ou mesmo um texto com supostos poderes mágico-protetores (LE
BRETON, 2004). Apresentam-se sempre em forma de frases que formam ou
não textos, ao contrário dos outros modelos de inscrição epidérmica. Um
fisiculturista e instrutor de musculação de uma academia no bairro do Grajaú
exibe, além de outras tatuagens espalhadas pelo corpo, uma tatuagem com esse
tipo com letras góticas, com a inscrição “CULTURISMO” no antebraço:
Mandei escrever “CULTURISMO” no antebraço para todas as pessoas
verem que a musculação e o fisiculturismo são a minha vida, a razão do meu
viver; tudo que tenho consegui por intermédio do que faço... Então mandei
escrever isso aí, p’ra todo mundo ver [...] ainda quero mandar escrever [a
categoria] liberdade nas costas... (Pedro, 30 anos. Instrutor de musculação).
Ainda uma freqüentadora assídua das salas de musculação da mesma
academia:
Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha mente: palavra Deus em inglês
[...] tatuei porque acho que tenho que lembrar a todo instante dele, agradecer o
que tenho, saúde p’ra correr atrás do que preciso, por isso tatuei no pulso [...]
também p’ra todo mundo ver que me protejo, sei lá é meio mágico [...] também
[...] poder superior que você carrega no seu corpo (Carol. 18 anos. Estudante).
Se, a respeito das tatuagens entre tribos “primitivas” e neotribos urbanas,
uma projeção apressada fosse feita, provavelmente se concluiria que a
classificação triádica acima citada, presente nas academias de musculação,
remeteria a uma concepção dinâmica de universo, na qual a diferença se
apresentaria como constitutiva da realidade em ambos os pensamentos: o
ocidental e o ameríndio. Mas não é isso que ocorre. Se os termos forem deixados
de lado e as relações transpostas, perceberemos que, apesar das aparentes
semelhanças nas classificações entre fisiculturistas e ameríndios, as lógicas de
um e de outro são simetricamente invertidas. O aspecto triádico ameríndio está
relacionado ao continuum da realidade compreendida como processo ou devir.
O aspecto triádico manifesta-se, por sua vez, tanto em um grupo quanto
em outro (tribos ameríndias e neotribos urbanas), pela ampla variedade de
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desenhos que, se algumas vezes possuem os mesmos conteúdos (tema), variam
amplamente na forma (estilo). O exemplo dos índios do grupo Pano na Amazônia
remete ao aspecto nômade do pensamento ameríndio, em contraposição à
característica sedentária do pensamento ocidental. Para esse grupo, as
tatuagens permitem a identificação imediata do grupo ao qual pertence o
indivíduo: “particularmente elaboradas são as tatuagens dos diversos grupos da
área Juruá-Purus, caracterizadas por motivos angulares [...] cuja composição
varia de grupo para grupo, tornando possível a imediata identificação”
(SIGNORINI, 1968, p. 179 apud ERIKSON, 1986, p. 192).
De forma similar, as tatuagens entre os freqüentadores assíduos das
academias cariocas de musculação e fisiculturismo classificam indivíduos
pertencentes a subgrupos específicos numa lógica de “assimilação do mais
longínquo conjuntamente a uma diferenciação máxima vis-à-vis do próximo”
(ERIKSON, 1986, p. 192). Os mesmos desenhos, com suas variantes, podem
ser encontrados entre subgrupos diferentes, da mesma forma que no seio de
um mesmo subgrupo podem coexistir motivos bastante diferentes. Uma águia
pode ser representada de inúmeras maneiras, aludindo a significados distintos
para seções distintas, ou ter o mesmo significado para um grupo específico,
porém sendo representada por estilos diferentes; formas que tendem a demarcar
a singularidade daquele que porta o desenho (OSÓRIO, 2006). Essa diversidade
faz alusão à lógica da diferença presente entre os ameríndios, em que o mundo
é visto e compreendido como movimento incessante, “um todo interconectado
de seres [...] com intencionalidade e agência semelhantes à nossa, capazes de
adotar um ponto de vista” (LAGROU, 1998, p. 164).
Philippe Descola sugere a existência de modelos diversos de “ecologia
simbólica”: a naturalista (ocidental), onde vigora uma relação metonímica e
natural entre natureza e sociedade, sendo a realidade, em última análise, radicada
na natureza: os seres humanos teriam sua “essência” biológica como animais,
diferenciando-se destes apenas pela cultura. A abordagem “totêmica”, na qual
a relação é puramente diferencial e metafórica, sendo uma série comparada
por analogia a outra série; e, por último, o modo “anímico” (vigente nas
cosmologias amazônicas), em que a relação natureza/cultura é metonímica e
social, ou seja, inversamente às cosmologias ocidentais, estas últimas
compreendem o cosmos como sendo todo cultura e não natureza. Objetos e
animais teriam sociedades e se veriam como coletividade social; o animismo
seria, portanto, um sociocentrismo (DESCOLA, 1992, 1996; CASTRO, 2002).
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Mas se em alguns momentos o processo lógico parece ser o mesmo da
metafísica, tal fato não resiste a uma análise mais aprofundada. Entre os
praticantes de fisiculturismo e freqüentadores das academias de musculação,
no caso, a estrutura lógica do pensamento remete a uma classificação que
tende a buscar a identidade, entendida (de forma avessa à dos ameríndios)
enquanto negação da diferença, essência imutável do cosmos. Se para o grupo
ameríndio o movimento expresso pela variação infinita de formas das tatuagens
com o mesmo tema significa a “identidade” da diferença, para outro, o mesmo
movimento busca demarcar a identidade compreendida como manifestação do
imutável, cópia imperfeita deste. A tatuagem, no caso dos marombeiros e
fisiculturistas, expressaria a concepção inconsciente de que o cosmos não é um
devir, um tornar-se imanente, e sim parte volátil de uma realidade metafísica
superior essencialmente imutável, à moda platônica. Se no pensamento
domesticado, ou dito ocidental (LÉVI-STRAUSS, 1975; LUZ, 2004;
BOURDIEU, 2005), a identidade é ausência de diferença (e esta uma carência,
uma falha) - o que leva à busca da essência estática do cosmos na filosofia
metafísica -, no pensamento selvagem, ou dito nômade, o contrário ocorre: a
identidade é um caso particular, circunstancial e delimitado da diferença
(CASTRO, 2000; MARQUES, 2003; DELEUZE, 2006).
Tal processo lógico está diretamente relacionado ao perspectivismo
ameríndio.5 A mesma variabilidade das figuras tatuadas, existente entre
ameríndios e fisiculturistas e marombeiros, expressa, em última análise, sentidos
opostos. No caso dos marombeiros, essa variabilidade é representada pelo fato
de o mesmo desenho ser realizado no que eles mesmos denominam estilos.
Esses estilos apresentam diversidade (tradicional, oriental, new school, tribal,
etc.). Por exemplo, há o estilo tribal, que pode ser visto em variações como a
celta, o estilo samoano ou taitiano; há o estilo mecânico, que representa figuras
com formas cibernéticas; há o estilo oriental, com desenhos inspirados na arte
chinesa e japonesa, mormente da Yakusa (no caso japonês), e assim por diante.
Esse movimento - de variação da forma e do estilo - é compreendido pelo
fisiculturista como busca pela demarcação identitária que delimita a singularidade
da sua pessoa enquanto marca que deseja a imutabilidade e não como
demonstração da diferença e do devir imanente ao cosmos, processo que ocorre
no caso ameríndio, em que “a distância intensiva e extrínseca entre as partes
converte-se em diferença intensiva, imanente a uma singularidade dividida”
(CASTRO, 2002, p. 293). Enquanto a variabilidade e a continuidade para um
significam o próprio movimento cosmológico (o devir), para outro constituem
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busca pela singularidade identitária, marca de uma “essência” imutável (a
identidade). Se a singularidade é, e afirma o processo, em um aspecto, em
outro o processo deve ser negado pela própria busca da singularidade. Nesta
interpretação, enquanto o pensamento domesticado dos bodybuilders e
marombeiros afirmaria o transcendente, o pensamento selvagem ameríndio,
por sua vez, se apresentaria como a pura manifestação da imanência.
Conclusão
Se as tatuagens remetem a um tipo de sistema simbólico ou gramática
social, tal gramática nas academias de musculação e fisiculturismo remete às
relações hierárquicas de gênero e status, relações que produzem e são produzidas
pelas práticas cotidianas dos atores. Essa mesma lógica apresenta uma
singularidade triádica simetricamente invertida em relação ao pensamento
ameríndio. Este concebe o mundo - visto sem a cisão natureza/sociedade, posto
que tudo é sociedade e “humanidade” - como devir e diferença, enquanto a
lógica dos marombeiros e fisiculturistas (pequena amostra da lógica metafísica)
concebe a diferença, o devir como defeito, parte desequilibrada e tortuosa de
uma realidade superior imutável, pura, esta sim, máxima identidade e simetria.
Se, para uma forma de pensamento, o respeito à diferença e à assimetria
é a base de todo o processo de pensamento e de organização prática da vida,
para outra, a diferença e a assimetria surgem como males a serem combatidos
em nome de uma identidade suprema e imutável, manifestação pura da
perfeição e positividade. Se a lógica ou racionalidade ameríndia, ao contrário,
aceita a diferença e o movimento como positivos, absorvendo e respeitando
seu acontecimento, a lógica ou racionalidade ocidental vê na diferença a ameaça
à sua integridade, fato que remete, na prática, à dificuldade de tais pensamentos
(presentes nas sociedades complexas capitalistas) lidarem com as manifestações
do outro e da alteridade.
Enquanto uma lógica absorve positivamente essa alteridade
compreendendo-a com cerne de todo devir cósmico, a outra combate a mesma
alteridade - até mesmo quando fala em dialética - fazendo-a desaparecer no
seio de uma identidade imutável que deve, por fim, dominar, ordenar, administrar
e subjugar a diferença ao império do “igual” e do “mesmo”.
O que se deve, em termos práticos, destacar neste processo é que, em
um tipo específico de pensamento, o respeito à diferença e à assimetria produz
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relações sociais marcadamente igualitárias e simétricas (como se pode notar
nas relações de gênero entre os ameríndios); enquanto o outro tipo (o pensamento
racionalista ocidental), que se pretende defensor da igualdade e da simetria
sociais, produz regras na prática assimétricas, instituindo relações sociais,
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NOTAS
* Este artigo é fruto parcial do trabalho de campo (observação participante e etnográfica, com
realização de entrevistas gravadas e escritas, formais e informais), realizado em 12 academias de
musculação e ginástica das zonas Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro, durante os anos de
1998 a 2004, visando à elaboração de tese de doutorado em Antropologia Cultural (SABINO,
2004). Relata também algumas análises do grupo Racionalidades Médicas, do Instituto de
Medicina Social da UERJ. Foram entrevistados 310 freqüentadores assíduos dessas instituições
(200 homens e 110 mulheres, com idade entre 16 e 55 anos), sendo que, destes, 101 possuíam
tatuagens (63 mulheres e 38 homens).
 Pesquisador associado (FAPERJ) no grupo de pesquisa CNPq Racionalidades Médicas e
Práticas Corporais, do Instituto de Medicina Social da UERJ. Endereço eletrônico:
cesarsabino@hotmail.com.
 Professora titular no Departamento de Políticas e Instituições de Saúde do Instituto de
Medicina Social da UERJ; coordenadora do grupo de pesquisa CNPq Racionalidades Médicas
e Práticas Corporais. Endereço eletrônico: madelluz@superig.com.br.
1 Em linguagem “nativa” marombeiro significa todo(a) aquele(a) que freqüenta com assiduidade
academias de musculação e ginástica, apresentando corpo moldado (“sarado”, como é dito)
pelos exercícios. A palavra deriva de maromba, vara usada pelo funâmbulo para se equilibrar na
maroma, corda na qual caminha. Também pode significar o peso com o qual o funâmbulo
mantém seu equilíbrio (SABINO, 2002).
2 Talvez o fisiculturismo seja uma manifestação de um possível movimento de estetização das
entranhas. Essa estetização tem seu maior expoente artístico no médico alemão Gunther Von
Haggens, criador da escola chamada body work. O médico-artista inventou um processo de
plastificar cadáveres, denominado plastination. Essa técnica conserva os corpos mortos,
transformando-os numa espécie de bonecos hiper-realistas expostos em galerias de arte. Em
2002 Von Haggens realizou uma exposição de vários cadáveres na Atlantis Gallery. Havia entre
eles uma mulher grávida de oito meses, com útero aberto mostrando o feto. O trabalho do
médico tem alcançado notoriedade, pois o mesmo tem apresentado programas nas televisões
européias nos quais ele disseca cadáveres ao vivo (cf. O Globo. Sábado, 12/Abril/2003. Caderno
Prosa e Verso, p. 2).
3 Sobre a tatuagem - assim como sobre o músculo hiper-inflado do fisiculturista, parafraseando
Lévi-Strauss (1975), podemos dizer que é feita para o corpo, mas num outro sentido, o corpo,
neste caso específico, é predestinado à decoração por figuras e músculos, posto que é somente
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por, e através da decoração, que ele recebe sua dignidade social e significação. A decoração é
concebida para o corpo, mas o próprio corpo não existe senão por ela. A dualidade é, em
definitivo, a do ator e de seu papel, e é a noção de máscara que nos traz sua chave. Essa alusão
à máscara é significativa, posto que persona em latim tem o mesmo sentido: “é clássica a noção
de persona latina: máscara, máscara trágica, máscara ritual, máscara de antepassados” (MAUSS,
1974, p. 225). A etimologia evoca o quanto o agente é composto em suas ações por forças
sociais inscritas em seu corpo, conferindo-lhe identidade. A persona, enquanto produção social,
vive e repete - embora na diferença - as forças criadoras coletivas. Enquanto máscara, a persona
coloca em cena ou participa da encenação dos tipos sociais. Le Breton (2004) ressalta que
atualmente as tatuagens não são apenas uma forma de singularizar, mas de tocar as jovens
gerações em seu conjunto, confundindo todas as condições sociais e os gêneros - elas não são
exclusivamente apenas de homens.
4 Bourdieu (1999, p. 43), por exemplo, escreve: “simbolicamente votadas à resignação e à
discrição, as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força,
ou aceitando se apagar, ou pelo menos negar um poder que elas só podem exercer por procuração
(como eminências pardas)”.
5 O perspectivismo ameríndio é descrito da seguinte forma por Eduardo Viveiros de Castro
(2002, p. 350-1): “o estímulo inicial para esta reflexão foram as numerosas referencias, na
etnografia amazônica, a uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos
vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo - deuses, espíritos, mortos,
habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos,
objetos e artefatos - é profundamente diferente do modo como esses seres vêem os humanos e
a si mesmos. Tipicamente, os humanos em condições normais vêem os humanos como humanos
e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver esses seres usualmente invisíveis é um
signo seguro de que as ‘condições’ não são normais. Os animais predadores e os espíritos,
entretanto, vêem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa vêem os
humanos como espíritos ou como animais predadores: ‘o ser humano vê a si mesmo como tal.
A lua, a serpente , o jaguar e a mãe da varíola o vêem, contudo, como um tapir ou um pecari que
eles matam’, anota Baer sobre os Machiguenga. Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmo
que os animais e espíritos se vêem com humanos. Eles se apreendem como ou se tornam
antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios
hábitos e características sob a espécie da cultura: vêem seu alimento como alimento humano (os
jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os
vermes de carne podre como peixe assado, etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas,
garras, bicos, etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado
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identicamente às instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras de casamento, etc.).
Esse ver ‘como’ refere-se literalmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que,
em alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que sensorial do fenômeno; de qualquer
modo, os xamãs, mestres do esquematismo cósmico dedicados a comunicar e administrar as
perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou inteligíveis as
intuições. Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase
sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma roupa) a
esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou
de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Quando estão reunidos em suas aldeias na mata,
por exemplo, os animais despem as roupas e assumem a figura sua figura humana. Em outros
casos a roupa seria como que transparente aos olhos da própria espécie e dos xamãs humanos.”
ABSTRACT
Tatoo, Gender and the Logic of Difference
This article analyzes the tatoos logic of the bodybuilders and gyms frequenters
in Rio de Janeiro city, detaching the identity aspect of such logic and its
relation with the question of difference and the social hierarchies associated,
in the study, to the cosmological conception present in Western metaphysical
thought. Such conception is collated with the Amerindian perspectivism, in
which the difference and the becoming are presented as the cosmos essence.
Key words: Tattoo; gender; bodybuiding; identity; difference.