quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Questões do mundo Contemporâneo:Abrahão.C.Andrade




Perguntas elaboradas pelo Prof. Dr. Arturo Gouveia (Letras – UFPB) e dirigidas a vários professores de diferentes instituições de ensino superior, com o intuito de elaborar um livro sobre a Escola de Frankfurt. Infelizmente o projeto gorou. A seguir apresento minhas respostas, ao mesmo tempo em que aproveito para agradecer a generosidade intelectual desse meu caríssimo amigo, que me incluiu no rol dos professores universitários capazes de poder dizer algo fecundo a respeito de tão difíceis questões. Sem parvoíce, espero não me tenha distanciado muito do que desses professores se esperou.

1. Paul Ricœur, em Tempo e narrativa (tomo III), ao propor um estudo do entrecruzamento da história e da ficção, prefere a expressão “história das vítimas” a “história dos vencidos”. Para ele, os vencidos podem ser candidatos fracassados à dominação. A alusão ao nazismo é bastante clara: os nazistas foram vencidos pelos Aliados e, nessa condição, eles se igualariam a outros vencidos referidos por Benjamin. Por isso a expressão primeira não é apropriada. Como vocês observam essa crítica implícita de Paul Ricœur a Benjamin à luz dos mais fatídicos acontecimentos do século XX?

ACA : Queria começar manifestando a alegria de ver, numa entrevista sobre a Escola de Frankfurt, a referência direta feita a Ricœur, relacionando-o com um dos membros dessa Escola. Não é fácil viver na solidão. As modas intelectuais, de que o Brasil permanece presa, elegem cada ano um bibelô, enquanto os autores que podem nos ensinar algo sobre nós mesmos continuam no limbo. Tendo estudado muito a obra de Paul Ricœur, muitas vezes me senti como o homem que sabia javanês, tamanha é a falta de interesse por esse autor que, ao meu ver, e sem tirar os méritos reais de Michel Foucault, seria para nós muito mais importante do que esse último, que a moda devorou. Dito isso, observo que, talvez, não se trate propriamente de uma crítica de Ricœur a Benjamin e, ao mesmo tempo, gostaria de enfatizar a relação muito estreita e quase nunca anunciada entre o filósofo francês e o filósofo alemão, pelo menos no que diz respeito àquela instância da filosofia da história que provê sobre a possibilidade do novo, do diferente. (Ricœur estaria para Benjamin assim como os dois não estariam para Adorno, no que diz respeito à possibilidade da ação inovadora, de que Adorno, com boas razões, não se cansou de duvidar.) Benjamin, nisto adepto de Sorel, e diferentemente de Ricœur (mais próximo de uma reforma que garanta o funcionamento normal, porém transformável, das instituições historicamente conquistadas), acredita que somente com a paralisação completa das atividades realizadas sob o signo do agora vigente, somente com uma greve geral poder-se-ia dar cabo do continum da história, estabelecendo um estado de exceção declarado, a fim de se criar uma forma diversa de habitar o mundo. A aproximação entre Ricœur e Benjamin, dentre outros modos possíveis, poderia ser realizada por esse viés da possibilidade do novo que não beira a utopia. Ricœur poderia ser considerado o filósofo que examina de perto as condições reais de possibilidade dessa transformação do mundo. Ele estuda aquela região do humano mais especificamente humana, a linguagem, a fim de perceber se, nela, existe essa possibilidade do novo, e a encontra na inovação semântica da metáfora viva, na poesia; e da armação do enredo, na narrativa. Dizer diferente e contar de novo, de uma outra maneira, segundo Ricœur, são atos que possibilitam ver diferente e agir de outro modo. Sob a égide do agir de outro modo é que se encontra o contexto de sua escolha (na verdade, uma retificação, já que no volume primeiro de Tempo e narrativa ele chega a utilizar a expressão história dos vencidos) pela expressão história das vítimas. Evidentemente que a alusão aos nazistas é correta. A emergência da Segunda Grande Guerra está intimamente relacionada com a insatisfação alemã quanto ao tratado de Versailles, que desde cedo (nos anos 1930) Ricœur considerou abusivo e se posicionou contra. As humilhações a que o famoso tratado submete os alemães deram corda aos argumentos de Hitler, e a guerra aconteceu (elle a eu lieu), como se expressou Merleau-Ponty. Assim, falar em história dos vencidos seria reafirmar a posição dos alemães depois da Primeira Guerra e, assim, talvez, contar a história de um mesmo jeito, o que pode ser uma outra forma de exceder o uso da memória em achaques de ressentimentos. A memória é tão importante quanto certo esquecimento. Mas o que não se deve esquecer nunca, e isto já é contar a história de uma outra forma, são as vítimas, as que sofreram com a erupção do mal, o que inclui os mortos do lado de cá, como seu próprio pai morto no front de 1915, e a figura emblemática de Walter Benjamin. A história das vítimas desata o nó vicioso dos “fla-flus” do Poder e pensa a história sem maniqueísmos nacionalistas e mais istas possíveis. A vítima não é o Estado vencido em seus interesses frustrados, mas o outro (próximo ou distante) cuja voz foi ceifada pela hegemonia das armas. A história dos vencidos pode ajudar Bush em sua reeleição; a história das vítimas, não. Porque as vítimas são tanto os afegãos quanto os executivos mortos nas torres gêmeas. O que você acha?


2. Hannah Arendt, em seu relato sobre o julgamento do comandante da Solução Final (Eichmann em Jerusalém), reconhece no século XX a “banalidade do mal” e decreta a incompetência da tradição jurídica ocidental para julgar um crime das proporções do Holocausto. Zygmunt Bauman (Modernidade e holocausto) segue raciocínio semelhante no reconhecimento do limite dos critérios e meios jurídicos para julgar a tirania totalitarista. Paul Ricœur afirma que a vitimização, como “reverso da história”, não pode ser legitimada por nenhuma astúcia da Razão. Em que medida pode-se estabelecer uma comparação, de endosso ou divergência, dessas teses com o conceito frankfurtiano de razão instrumental?

ACA: A banalidade do mal, a banalidade em geral, agora eu me lembro de um texto lido há muito tempo em um livro didático dos tempos da escola, de Monteiro Lobato, chamado “A era dos milagres”, título tornado prospectivamente sugestivo, graças aos títulos do grande historiador britânico. A era dos milagres, dizia ele, não foi o tempo em que Jesus andou no mundo com seus apóstolos, mas o nosso, em que se fala com o amigo distante como se estivesse com ele dentro da cabeça, ao telefone, e o mundo inteiro, como o Aleph borgiano, pode ser visto numa pequena tela de algo chamado televisão (hoje, a internet). Se, argüi o narrador, um homem das cavernas aparecesse do nada aqui entre nós, ele diria ser um verdadeiro milagre toda a parafernália que a tecnologia nos possibilitou. (Isso porque Lobato não conheceu Adorno, que chegou a dizer que do estilingue neolítico a bomba de hidrogênio não há nenhuma distância além da sofisticação, pois a razão de um quanto de outra não são díspares.) O telégrafo, o telefone, o rádio, a tv, tudo isso é hoje banal, de tão corriqueiro. Tanto quanto é banal e corriqueiro o mal (feito ou sofrido), e os media estão aí dispostos a divulgar tanto a violência que, mais do que banal, ela se torna anódina e nos torna a todos indiferentes. Sou levado a pensar, assim, que a banalidade do mal é correlata da banalidade das conquistas tecnológicas, e aqui entro numa discussão difícil quanto o alcance e a essência da técnica, assunto tão apreciado por Heidegger e tão mal compreendido por muitos de seus leitores. A razão instrumental dos frankfurtianos, que Adorno e Horkheimer vão identificar até mesmo no fundo do quintal de Homero, é o mesmo logos platônico-aristotélico-esquecido-do-ser a que se refere o filósofo da floresta sem luz. Há, nisto, uma identificação possível entre os projetos filosóficos de Heidegger e Adorno, ambos insatisfeitos com a direção que tomou a civilização ocidental, e ambos dando um passo de volta às origens de uma certa decisão historial (para falar como um deles), e que consiste na acepção de razão tornada hegemônica ao longo da história do Ocidente, uma razão violenta por definição. O que distingue Heidegger de Adorno, quanto a isso, é que Heidegger, voltando ao ponto onde tudo começou, julgou haver nos pensadores originários uma saída possível para a reconstrução de um novo modo de habitar a terra, e fazer história; ao passo que Adorno, mais corrosivo, não se contenta em acusar Platão e Aristóteles (para Heidegger, na esteira de Nietzsche, os autores com os quais começaria a decadência do Ocidente), e verruma sua crítica da razão até os primórdios da civilização helênica, encontrando o germe da lógica burguesa já nas aventuras de Ulysses. Adorno, como se sabe, não cometeu a bobagem de prometer nada para o futuro da humanidade; Heidegger, ao sugerir uma saída, foi e tinha de ser mal-compreendido (inclusive por Adorno), já que compreendê-lo é lançar-se para além do horizonte em que vivemos hoje e permaneceremos vivendo enquanto não operarmos uma conversão a seu modo de pensar, que é um salto para além das determinações da cultura ocidental (e do modo de pensar sedimentado por essa cultura). Mas, então? A razão instrumental dos frankfurtianos, identificada ao logocentrismo denunciado por Heidegger, está na base de um modo de mover-se em relação à natureza que é a causa única tanto do progresso tecnológico, que se banalizou (mais do que se democratizou, é verdade), quanto da pulverização do crime e da violência. Digo: “em relação à natureza” e logo me recordo de Marx, para quem a primeira relação do homem com a natureza é sua relação com a mulher, isto é, com outro ser humano; e esta relação, a história está aí para não nos desmentir, é essencialmente de violência. Porém, é preciso dizê-lo, essa equiparação entre razão e mal é apenas um primeiro momento de uma análise maior (que está por ser feita, e a contribuição de Z. Bauman é neste sentido preciosa), pois sabemos que seria uma atitude simplista aquela que se desespera da razão depois de identificá-la como a causa das mazelas do mundo. Afinal, a causa das mazelas do mundo não é, de mesmo, a razão, mas o modo como os homens, durante sua história, a fizeram funcionar. E isto simplesmente porque a razão é história, e essa acepção de uma razão trans-histórica não passa de mais uma figura desse processo histórico, vivido pelo Ocidente, que consistiu em fazer da razão o uso que bem conhecemos. A maior lucidez de Adorno, a mim me parece, consistiu em manter vigorosa a tensão e a ambigüidade entre certo conceito de razão a ser denunciado (a instrumental) e certo outro, que fazia a denúncia (a razão crítica); contudo, manter essa tensão jamais foi fazer apologia da racionalidade; daí a impossibilidade, tanto em Adorno quanto em muitos outros pensadores pós-1940, de legitimar qualquer astúcia da razão. Com o fim de certo conceito unívoco de razão desmorona-se também a idéia de uma história universal, de sentido único e certeiro. A persistência da razão crítica (de si mesma) justifica-se pela insistência em manter-se firme na denúncia de toda forma de justificação do que não pode e não deve ser justificado. Aliás, foi Kant o primeiro a identificar como o mal radical esse tipo de atitude: a impostura da razão; o passar por razoável aquilo que é justamente o seu contrário. Mas, insisto, qualquer adeus rápido à razão pode ser o reverso de um apego também rápido a outras tantas formas de totalitarismo.

3. Adorno destaca-se na Escola de Frankfurt pela chamada “dialética negativa”. Stephen Eric Bronner (Da teoria crítica e seus teóricos), ao comentar essa peculiaridade de Adorno, refere-se a uma concepção de “dialética imobilizada”, o que parece um paradoxo brutal. Muito antes da Dialética negativa, entretanto, o pensamento de Adorno já caminha nessa direção: não há um novo sujeito histórico e o indivíduo contemporâneo é incapaz de agir à margem do sistema que o reifica. O próprio pensamento crítico sofre constantemente esse cerco totalizante da reificação. Como vocês avaliam essa posição um tanto dissonante de Adorno em relação às possibilidades da história e à própria tradição do pensamento marxista?

ACA: Imagino que você se refira ao seguinte: dialética é o movimento de superação de embaraços, tanto no nível do pensamento, quanto no nível da realidade. Dizer, como Engels, que a realidade é dialética é dizer que seus embaraços concretos são passíveis de ser superados, já que a história não seria outra coisa senão o movimento pelo qual os homens seguem encontrando limites para a afirmação de sua humanidade, tanto quanto seguem transpondo esses limites. O capitalismo, sabemos, é um desses limites; a revolução socialista, o encaminhamento necessário para sua superação. “O que é, exatamente por ser tal como é, não pode ficar do jeito que está”, dizia Brecht, e com isso muitos acreditaram que fazer a revolução era somente um detalhe, pois o curso do mundo se encarregaria disso de alguma forma. O superdesenvolvimento das forças produtivas, acontecido sob o modo de produção capitalista (modo visceralmente contraditório, porque cria riquezas astronômicas no mesmo gesto em que produz misérias universais), cria a situação insuportável de exclusão estrutural, mas esta situação tende a conservar sua contradição interior se nada será feito contra ela em termos de organização e participação política revolucionária mundial. Mas também muitos entenderam que, se não pode ficar do jeito que está, mais uma razão para se fazer a revolução o quanto antes. Uma dialética imobilizada seria uma não-coisa, um absurdo, na medida em que seria a anulação de sua própria definição, mas também o aniquilamento de todo projeto político revolucionário. Dentro da tradição do pensamento marxista, Adorno, com sua postura segundo a qual a teoria crítica é a única forma possível de mobilização contra o curso da história, uma teoria social que se demora na teoria e não se apressa em partir para a revolução social, pode eventualmente ser chamado de um resignado. Mas não seria uma inocência manter-se nesta tradição (e chamar Adorno de resignado), sem levar em conta os muitos acontecimentos históricos do século XX? Ora, ninguém fala mal de um autor situando-se em lugar nenhum. Pode-se dizer que há, no mercado geral das idéias, outras escolhas disponíveis. Mas, quando se trata de compreender a escolha de um autor, é preciso então se colocar no lugar de seu pensamento, e não medi-lo por um padrão estranho. E o lugar do pensamento de Adorno é aquele que questiona, à luz dos grandes eventos do século XX, as ilusões da modernidade, aí incluída a própria idéia de revolução. Ao meu ver, Castoriadis presta um grande serviço a Adorno, isto é, à sua melhor compreensão, quando, em sua Instituição imaginária da sociedade, tece uma crítica impiedosa à concepção marxista da história, chamando a atenção para necessidade de reinventar a filosofia da história de Marx, tanto quanto sua teoria da revolução e da ditadura do proletariado, que já não se sustentam quando lidas à luz do século XX. Imobilizar a dialética – penso – seria uma forma de vincar essa necessidade, livrando-nos de todo otimismo acrítico e bem pensante que, sob o pretexto de levar em conta as contribuições de Marx, deixa de fora o essencial desse pensador, que não foram suas teorias, nem mesmo suas intervenções políticas, mas um seu gesto de base, o de pensar com radicalidade o seu presente histórico. Desse modo, ser marxista não seria, hoje, apegar-se a esta ou àquela teoria de Marx, nem mesmo fazer política de esquerda (noção hoje completamente perturbada, depois que Lula ascendeu ao poder), como Marx, mas atinar para um pensamento indócil no que diz respeito à deliberação de pensar o mundo até seu fundamento, e por baixo deste; o que é o mesmo que cuidar para não se deixar iludir, ou imergir nas malhas do sistema.


4. As teses de Marx sobre Feuerbach atacam o materialismo contemplativo: Feuerbach já representa um avanço em relação ao idealismo alemão, mas resolve a essência religiosa na essência humana, ou seja, propõe o descentramento da religião (especialmente o cristianismo) em função de explicações antropológicas e materialistas para os fatos. Tal solução, para Marx, é insuficiente, porque a história não se resolve conceitualmente, mas na práxis sensível. No século XX, ocorrem pelo menos duas dissensões a essa solução marxiana: a filosofia analítica e o pensamento de Adorno. Por um lado, a filosofia analítica é uma tendência da filosofia da linguagem a resolver tudo no interior da própria linguagem; por outro, Adorno condena a banalização da práxis, por considerá-la já apropriada e distorcida pelo sistema, e proclama a teoria como produção prática, defendendo o momento de autonomia do pensamento teórico. Como vocês interpretam esses posicionamentos à luz do século XXI, depois do 11 de Setembro?

ACA: Julgo que o que você me pede com essa pergunta (que se relaciona de perto com minha resposta anterior) é quase um posicionamento político. Sou da geração dos “cara-pintadas”, de que não participei (tava lendo Kant). Não porque não quisesse ver Collor fora, mas porque sabia, deus sabe como, que não era por ali que esse objetivo seria alcançado. A história do Brasil está cheia de casos como este. Não é a mobilização popular que alcança seus fins; são fins que se estabelecem com outros interesses que os do povo, e para o alcance dos quais a mobilização popular pode ser uma boa. Isto não quer dizer que a história do povo brasileiro seja uma história sem lutas, senão que as verdadeiras lutas populares foram massacradas pelas forças oficiais, ao passo que muitas lutas “oficiais” levaram o povo de carona. Tanto é assim que, para o povo, quero dizer, para as organizações de esquerda, nunca se tratou simplesmente de tirar Collor, mas de fazer desaparecer o tipo de política que esse presidente representava. Pelo menos era nisto que pensávamos que daria o PT. Ora, esse “tipo de política” está aí até hoje. Salvo engano é Marx quem diz que somente a direita tem planos para o futuro. Um jornal da extrema direita francesa se chamava L’action. Não quero fazer, com isso, tomando uma via conservadora da história do Brasil, a velha repetição de que os brasileiros são politicamente passivos, repito. Não quero dizer que não haja, entre nós, mobilizações populares e movimentos sociais de peso e relevância. Quero somente assinalar que, tanto os movimentos contemporâneos, quanto tantos outros na história do Brasil foram e são, via de regra, traídos pela eleição (privilegiada em altas instâncias) de interesses contrários aos interesses populares. Olha, a filosofia da linguagem foi, desde o início, um basta às balelas da metafísica, que vivia engabelando os jovens sedentos por algum saber definitivo, ou alguma forma de vida iluminada por Deus, pela idéia de alma imortal, etc. Uma variante da radicalização da crítica kantiana. Essa aproximação entre Adorno e a filosofia da linguagem é boa se pensarmos nesse ponto que eles têm em comum: a denúncia dos falsos problemas e das fáceis soluções. O não-participar (Nicht mit machen) adorniano é um convite à desconfiança; um modo de não se deixar levar pelas seduções midiáticas (e outras). Há, talvez, mais virulência numa análise de Quine sobre a cabeça de um rouxinol ou num aforismo das Minima Moralia do que num atentado suicida dos terroristas. Talvez Marx não esteja certo nesse ponto: a filosofia não interpretou suficientemente o mundo. Embora ele não esteja errado neste outro: apesar disso, ainda assim precisamos transformá-lo. Ocorre somente que não é um qualquer voluntarismo de intelectuais que fará essa transformação.

5. Observem as datas: 11 de setembro de 1903: nascimento de Theodor Adorno; 11 de setembro de 1973: a ascensão de Pinochet; 11 de setembro de 2001: o ataque às torres gêmeas de Nova York. Tomando essas datas como imagens metonímicas, que relações vocês estabelecem entre a contundência da Teoria Crítica e sua descrença na emancipação humana sob o capital, a produção de ditaduras pela maior democracia do mundo e as reações terroristas ao domínio americano? Em que medida essa reflexão pode contribuir para a teoria da história e para a filosofia política?

ACA: Eu o compreendo, Arturo. Você está demasiado ligado a certa tradição do pensamento marxista que não se conforma com a redução do mundo ao conceito de mundo. Você detesta toda hermenêutica que reduz o ser à linguagem,e toma esta última como pura semiose. Porque para você a fome que grassa no Nordeste (e no antigo “terceiro mundo”) e a violência urbana generalizada fazem parte do ser (social, bem entendido), e você custa a acreditar que isso seja simulacro, imaginário, signos... Daí sua necessidade de pensar o mundo em termos de história, e pensar a história como o palco das transformações possíveis...

6. Marx, já no século XIX, afirma que a humanidade ainda não superou a pré-história das relações sociais. Por mais que os frankfurtianos ampliem o campo de compreensão e de estudos do marxismo e proponham releituras críticas, há muitos pontos de convergência, dos quais se sobressai a consciência da não-emancipação do homem. Convém distinguir que em Marx ainda há esperanças, enquanto Adorno, por exemplo, não comunga com as idéias superficiais em torno da alteridade, por considerar que o mundo fetichizado tem apenas aparências de diferença e tolera temporariamente movimentos contestatórios. Hoje, as potências querem privatizar o DNA, a África tem quarenta milhões de aidéticos e o desemprego estrutural atinge até países do Primeiro Mundo. Como vocês apreciam esse quadro? Seria possível delinear um novo sujeito histórico para transformações efetivas?

ACA: Se você prestar bem atenção aos enunciados de sua questão, Arturo, você poderá perceber que há neles um pressuposto, o de que há uma diferença, de ordem ideológico-política, entre os intelectuais que apostam na emergência de novos sujeitos históricos e os que não fazem essa aposta. Essa diferença os colocaria entre a esquerda e a direita, respectivamente, e na medida em que uma tal classificação ainda faz algum sentido. Você sabe que a noção de sujeito histórico está relacionada com a idéia de emancipação social, e sabe da origem moderna dessa vinculação. Você deve então pensar no conformismo conservador dos chamados pós-modernos, para os quais os tempos modernos chegaram a um completo esgotamento e nos resta apenas, como nos lembra Habermas, a propósito de um desses pensadores do fim da história, “contar somente com o que temos”. Assim, responder pela negativa à sua pergunta é cair no laço deste pressuposto e fazer coro com os pós-modernos. É ser, portanto, de direita. O que me resta, se não topo cair nessa armadilha? Afirmar que é “possível delinear um novo sujeito histórico”? Mas, e a honestidade intelectual, a mim e a todos nós (mas nós, quem?) tão cara? Afirmar essa possibilidade, parece-me, depende de um diagnóstico de época sociologicamente construído. Como não tenho acesso a este diagnóstico, é honesto calar-me a respeito. O MST, talvez o mais forte e expressivo movimento social organizado do Brasil contemporâneo, já disse claramente que não pretende fazer a revolução e construir o socialismo: quer um lugar ao sol do mercado; seus membros não têm (e como poderia ter?) o menor ódio à propriedade privada. A não ser à dos outros, mas somente enquanto não se torna deles. Quando um de seus líderes diz que é preciso morder a orelha dos latifundiários, a mídia corre a chamar a ambulância e a verificar o estoque de gazes e esparadrapos dos hospitais, já prevendo o dispêndio de curativos. E logo em seguida ele se retrata dizendo que falou metaforicamente. Nunca a metáfora no Brasil foi tão viva, e tão perigosa. Agora, ironias à parte, se a intenção de sua pergunta é saber se, filosoficamente, e para além das aporias da dialética negativa, é possível pensar num “novo sujeito histórico”, então é claro que toda resposta negativa será, sem apelação, má-fé do mais alto cariz sartriano. Porque o enunciado dessa negativa fará parte de uma antropologia impossível: O homem, sim ou não, é capaz de mudar o mundo? Responder que não é perder toda a especificidade do conceito “homem”, pois por definição (pensemos apenas nos Manuscritos de 1840) o homem é o agente de transformação do mundo, da natureza, e não pode ser identificado por tal fora dessa relação de abalo (ou depredação?) que sua presença representa no mundo. Além disso, ser de linguagem, se é possível ao homem inventar uma nova metáfora, aquela que faz ver o mundo como outro, de um novo modo, ou, como insistirá Ricœur, se a ele é dado tecer de um acontecimento uma nova intriga, um novo enredo que configure e refigure o tempo humano, então como não ser possível passar do “ver como” outro ao “ser como” outro? Antropológico-filosoficamente, portanto, a possibilidade de um novo sujeito histórico é inarredável. Mas isso, como bem lembra ainda Ricœur, e para que o fetichismo generalizado antevisto por Adorno possa perder seu potente efeito, depende de uma dialética viva entre tradição e inovação, entre interpretação do que já foi posto ou deposto (as promessas não pagas do passado; e a teoria dessas promessas) e imaginação projetiva que veja o futuro como história por fazer. Escrevi um livro inteiro para falar disso. Vou publicá-lo com o título O pote e a rodilha, em homenagem a um dito popular que diz “quem não pode com o pote que não pegue na rodilha”. Tudo a ver?

7. Em uma passagem notável de Ésquilo (Prometeu acorrentado), Hefestos diz que o poder jamais terá compaixão e sempre será capaz de qualquer audácia. Conforme Adorno, a democracia tem todos os ingredientes para converter-se em ditadura. Embora o exemplo imediato de Adorno, a República de Weimar, seja conjuntural, a experiência da guerra fria demonstrou muito bem essa fragilidade da democracia na América Latina. Como vocês relacionam isso com a autoproteção dos países dominantes e as relações internacionais cada vez mais hierarquizadas? Qual o espaço reservado à emancipação não-reificada na divisão internacional do trabalho e do poder?

ACA: Sei não. Se você pensa a conjuntura contemporânea fora da mais nova ideologia segundo a qual não há mais ideologia e o socialismo é uma quimera do passado, além de o conceito “luta de classe” ser um conceito superado (eles só não dizem por quem, nem onde), ou seja, se você pensa essa conjuntura com os olhos de quem ainda quer e acredita possível e desejável mudar o mundo, você não encontra nenhuma saída dentro dos quadros institucionais já postos de antemão. As relações internacionais estão intimamente relacionadas com o jogo do poder econômico e só há possibilidade de inserção dos países ditos “em desenvolvimento” no cenário mundial da divisão do poder sob a condição de que eles aceitem a regra desse jogo, regras de cuja construção eles não participaram. A possibilidade de emancipação não-reificada está, portanto, de princípio, bichada. Agora, se fizermos um exercício de imaginação projetiva e pensarmos fora do quadro das instituições já sedimentadas, se pensarmos, portanto, nas organizações não-governamentais e nas múltiplas ações paralelas (da ordem da não-delinqüência), em nível internacional, no sentido de mudar as condições de vida do planeta sem se preocupar em tomar o poder, quem sabe – mas aí já segue algum quinhão de ingenuidade – as velhas instituições políticas não se tornem obsoletas, e o mundo se recomponha emancipado apesar do poder de coerção e violência legítima do Estado? Seria como uma espécie de drible contra o poder instituído, já que a revolução sangrenta e a ditadura do proletariado parece ter sido uma possibilidade histórica rifada. Mas não. Só o meu melancólico desejo de exílio pode pensar em algo assim como um estado paralelo de bem-estar social. Quem pagaria a conta? Aí não tem outra, Marx volta com toda a força. Somente com a crítica do fetichismo da mercadoria na ponta da língua e a ampla organização e participação política popular é que se pode deixar de ver como sonho impossível alguma saída, sem receita pronta.

8. Já houve uma febre de pós-moderno nas universidades brasileiras. Aqui na UFPB alguns professores chegaram a interpretar Walter Benjamin e Nietszche como pensadores pós-modernos. Como vocês interpretam essas tendências?

ACA: A idéia de uma época pós-moderna – e os seus postulados, como a morte do sujeito e o fim da filosofia – só fazem sentido no interior de um diagnóstico do presente que considere os tempos modernos como esgotados. O trabalho de J. Habermas, que está na base de seu esforço de reconstrução do conceito de modernidade, alimenta-se da crença (muito bem fundada) de que uma tradição é sempre um vasto tesouro simbólico aberto a quem se dispuser a interpretá-lo, de modo que, uma vez retomada, essa tradição está suscetível de enriquecer-se de novos significados. Neste sentido, não vejo porque não se deveria se reinterpretar Nietzsche e Walter Benjamin. Todavia a questão central não está aí.
Como a modernidade pode, de alguma maneira, ser considerada “a época da razão”, a aposta de Habermas é a de que, desde que se retome, da “tradição moderna”, o conceito de razão e faço-o falar de uma maneira inusitada, não haveria, pois, motivo, nem de desespero da razão (por haver chegado a seu fim, como querem os “jovens conservadores anarquizantes”, segundo sua terminologia), nem de júbilo apressado (por apenas uma de suas noções ter alcançado um êxito triunfal), como querem os “neoconservadores”, crentes de que somente um conceito de razão (a orientada para fins, que antepara a modernização social) pode ainda subsistir. Para Habermas, de fato, a modernidade, que surge num contexto de ruptura com a tradição, forma ao longo de alguns séculos sua própria tradição e, sob a iminência de um esgotamento, pede para ser reinterpretada, a fim de fazer valer recursos por ela criados e, no entanto, ainda não explorados devidamente. Neste sentido, a modernidade é, para ele, um projeto – e mais: um projeto inacabado.
Para assegurar essa posição, Habermas retoma o diagnóstico de época feito pela sociologia de Max Weber, recorrendo, entretanto a Hegel, que, ainda segundo Habermas, seria a “autoconsciência da modernidade” em toda a sua vigência. É por isso que, em Hegel, a tentativa de fornecer um conceito preciso da modernidade coincide com a tentativa de superá-lo. Se a modernidade se explicita como um conjunto de cisões, tomar consciência dessas cisões (natureza e espírito, fé e razão, entendimento e sensibilidade, etc.) é já sentir a necessidade de superá-las, buscando o solo substancial da perdida unidade. A diferença, aqui, é que, para Hegel, a substância é sujeito...
O problema da modernidade, pois, é o problema de suas cisões (a dissolução do mundo substancial do feudalismo e da idade média), que trazem drásticas conseqüências para o mundo da vida. Trata-se, com efeito, de elaborar um projeto de vida que faça da história um mundo habitável. Para tanto, é preciso conceber um conceito de razão que concilie os pares cindidos. Já Schiller, a quem Habermas não deixa de recorrer, sentia essa tarefa como o ideal da humanidade: pôr em relação recíproca o sensível e o inteligível, o “impulso formal” e o “impulso material”, a partir de uma unidade a que ele chamou “impulso lúdico” ou “forma viva” a ser conquistada por uma educação estética da humanidade. Mas a principal fonte de Habermas permanece sendo Hegel. É em Hegel que ele vai buscar o inexplorado da “tradição” da modernidade, a saber, um conceito de razão reconciliadora, baseado na interação social.
O jovem Hegel, por volta de 1802, no escrito sobre a essência do cristianismo, atina para esse conceito de razão a partir da pressuposição de uma totalidade ética historicamente vivenciada pela Pólis grega e pelo cristianismo primitivo. O castigo, tomado como destino, é, lembra Habermas, o fio condutor desse conceito de razão. Quando um homem rompe com a unidade da vida ética, mutilando uma vida alheia e tornando-se assim um criminoso, é preciso que ele seja punido até o limite de sentir a perda daquela vida como a perda de sua própria vida. Se mutilar uma vida é tomar o outro como objeto, sentir o peso e a dor de ter cometido o crime é – pensa Hegel – já reconhecer o outro como sujeito. A unidade da vida ética sustenta-se nessa relação entre um sujeito e outro sujeito, e é esta relação intersubjetiva o que ensejará, entre eles, uma ação comunicativa. Hegel, dissemos, atinou para isso, mas logo desistiu da idéia, pois ele a vislumbrava em experiências históricas passadas, para as quais o tempo presente não oferecia mais um – lugar.
São dois os motivos pelos quais Hegel desistiu dessa idéia. A época moderna possui, como princípio de auto-reconhecimento, a subjetividade – e esta, como é evidente, não pode conviver com o mesmo ideal de vida da antiga Pólis e do cristianismo primitivo, pois o pressuposto de sua possibilidade é justo o fim dessas formas de vida, por essência comunitária. Além disso, também seus estudos de economia política fizeram-no ver que o capitalismo instaurara também ele um modo de vida incompatível com aquelas experiências passadas.
Se, então, a modernidade tem de ganhar sua legitimidade, é a partir de si mesma e nada mais. Ora, foi essa exigência que fez Hegel mudar de estratégia e radicalizar o princípio da subjetividade. O resultado disso veio cinco anos depois, em 1807, com a publicação da Fenomenologia do Espírito. Neste livro, Hegel forja um conceito de razão a priori que, como Espírito, cinge sujeito e objeto e concilia o real e o racional na medida em que, no elemento do conceito, “o efetivo é o racional e o racional é o efetivo”. Contudo, o conceito hegeliano de razão, extremamente ambicioso, resolve o problema ao mesmo tempo em que o destrói. Já que, como nota Habermas, as cisões da modernidade estariam diluídas num conceito absoluto de Razão que, por se identificar com o espírito, continuaria centrado na subjetividade, o que tornaria a deixar de fora as vicissitudes do mundo da vida, em Hegel apenas cristalizadas em pensamento.
Habermas acredita que, antes, dever-se-ia apostar num conceito mais modesto de razão e, a partir dele, resolver o problema das cisões no interior da própria modernidade, sem se apressar em dar adeus geral a ela. Como esse era o desiderato dos jovens hegelianos de esquerda, somos, como diz Habermas e o meu amigo Luiz Sérgio Repa, alhures, enfatiza, somos seus contemporâneos. O projeto de modernidade em Habermas (nisto em consonância com os jovens hegelianos) consiste em recuperar as indicações do jovem Hegel (e também do jovem Marx, com sua idéia de trabalho e práxis social), não porque hoje se possa voltar enfim ao modo de vida da Pólis grega e do cristianismo primitivo, mas porque o próprio conceito de razão – avatar da modernidade – ainda pode ser reformulado de um modo que o livre das invectivas “pós-modernas”: uma razão intersubjetiva.
Com efeito, a razão que os autores ditos “pós-modernos” pretendem dar adeus é uma razão centrada na subjetividade, que oferece a base da relação cognoscitiva de “sujeito e objeto” e é por essência dominadora e violenta, pois conforme esta concepção o objeto é sempre sujeitado – ao sujeito. Ora, quando se renuncia a esse conceito em vista de um outro tipo (ou paradigma) de relação, a que existe de sujeito a sujeito na linguagem e na ação, outro conceito de racionalidade desponta. Esse o conceito de razão comunicativa.
Este conceito, nascido da interação entre sujeitos capazes de falar e de agir, oferece uma nova saída para os impasses da modernidade, que permanece aberta para novas e diversas experiências. A história da filosofia moderna tem mostrado que, para cada conceito de razão corresponde um conceito de subjetividade. Como a razão, em Habermas, seria comunicativa, a subjetividade não pode mais ser considerada isoladamente, mas sempre no quadro de uma prática social – a comunicação. Este novo paradigma supõe não uma relação entre sujeito e objeto, com a costumeira supremacia daquele em relação a este, mas uma relação de sujeito a sujeito, uma “intersubjetividade”.
Com isso, mantém-se a referência a pessoas concretas que interagem no mundo da ação também ele concreto. Posto o conceito de razão comunicativa, Habermas pode recuperar a noção de sujeito num quadro amplo o suficiente para pôr-se a salvo das objeções pós-modernas, mostrando, ao mesmo tempo, que ainda existe um lugar para a filosofia nos chamados tempos pós-metafísicos.


9. O Professor Maffesoli, em várias conferências na UFPB, tem salientado a concepção pós-moderna da inexistência do tempo. Uma indagação elementar que pode ser dirigida a ele – e aos pós-modernos que comunguem da mesma concepção – é: “Então por que pós-moderno”? Ora, pós é um prefixo de sentido temporal e moderno é uma palavra essencialmente temporal. Existe aí nesse discurso apenas uma impropriedade lingüística? Ou essa impropriedade também é histórica e conceitual?

ACA: (Silêncio).

10. A nona tese de Benjamin sobre a filosofia da história é centrada, simbolicamente, na figura do Angelus Novus, de Paul Klee. Trata-se de um anjo um tanto esdrúxulo. Na tradição judaica, o anjo é portador da “boa nova”, é o mensageiro da esperança, portanto, é prospectivo. Em Benjamin, o anjo dá as costas para o futuro, onde só há ruína. Qual o significado simbólico e político dessa conotação para uma nova historiografia?

ACA: Marx dizia (ou era Marilena Chauí?) que somente a classe dominante faz planos para o futuro... Agora percebo que esta frase tem dois sentidos, ao menos. Somente ela faz planos porque pode realizá-lo depois. Mas também somente ela os faz por causa de sua concepção burguesa de história, como história do progresso. Para o historiador materialista, todavia, o futuro só faz sentido como o futuro de um passado cujas promessas aguardam realização. Quer dizer, o futuro é nosso próprio presente, porque não é nosso, mas dos nossos antepassados. Enquanto nosso presente é a perpetuação infernal de um passado recalcado, isto é, que tanto mais nos incomoda quanto menos é cascavilhado; de modo que jamais sairemos dele, ou seja, jamais teremos futuro se não resolvemos nosso passado. Contar o passado se torna, então, uma forma de absolvê-lo e de nos absolvermos dele.

11. Habermas diz que o progresso capitalista serviu como “secularização de esperanças escatológicas” (O discurso filosófico da modernidade), o que pressupõe um certo resquício de religiosidade e misticismo na noção de progresso. Já Adorno e Horkheimer revogam a divisão tradicional entre mito e razão. Eles detectam um entrelaçamento entre os dois: a razão se mitifica, assim como o mito já demonstra racionalidade (Dialética do esclarecimento). A vitória de Ulisses sobre as forças da natureza, na Odisséia, faz do herói grego o protótipo do homem moderno. No século XX, os homens não venceram apenas as sereias e os gigantes, mas partículas subatômicas. O controle excessivo da natureza, do Projeto Manhattan ao Genoma, aumenta astronomicamente as diferenças de classes, porque a tecnologia é capital e o conhecimento não é socializado. A ONU, recentemente, emitiu um relatório segundo o qual o Brasil, para atingir o patamar dos países ricos, teria que fazer um esforço ininterrupto de pelo menos cem anos. Já Chico de Oliveira (“O ornitorrinco”) adverte sobre as ilusões de socialização do progresso, porque o subdesenvolvimento não é etapa de uma cadeia evolutiva, mas um estado de exceção permanente produzido pelas forças internacionais. Como vocês avaliam essas condições para uma visão de mundo mais crítica no século XXI?

ACA: Arturo, para responder a esta questão eu peço que você leia comigo este texto que escrevi há algum tempo para uma conferência, e que se chamou “A Natureza Humana como Corpo”.
            O título desta conferência está obviamente abreviado, a menos que eu me decida a falar segredos de Polichinelo, o que talvez possa ser o caso. Mas o título preciso seria, antes, o seguinte: a natureza humana como corpo e o corpo como história – a natureza humana como história.
Com efeito, o objetivo de minha exposição é desenvolver esta equação, partindo da observação de algo patente, o fato de que a natureza humana não coincide com uma qualquer essência metafísica, que porventura encravaria o homem num ser prévio ao seu e o obrigaria a lhe corresponder, sob pena de tornar-se antinatural. 
Todos, na verdade, entendem o que eu quero dizer. É corrente a expressão “isso não é da natureza humana”. Tudo se passa, aí, como se o que viesse do homem brotasse de algo intimamente seu, infinitamente próprio. Àquilo que pertence intimamente a uma coisa, aquilo sem o que a coisa desprovida desfigura-se em seu ser e se perde de si para jamais, os filósofos chamaram de “essência”. A essência de algo não é um de seus elementos constitutivos, como se algo além dessa e dessa outra característica tivesse também essa terceira, a essência. O que algo é, como algo, é sua essência, e fora dela nada existe de efetivo. Quando se fala, então, de natureza humana, logo se remonta a esta acepção de natureza, natureza como essência. É da natureza humana mentir? É da natureza humana roubar? É da natureza humana amar? É da natureza humana fingir? Tudo isso quer dizer: a essência do homem é tal que, em sendo o que é, ele também é mentiroso, larápio, amante, poeta (o poeta é um fingidor...)? Ninguém, hoje em dia, se deixa mais se enrolar em tais problemas. Entendida nesse sentido simplesmente não existe natureza humana, nunca existiu além de na cabeça dos metafísicos.
            Sabem vocês que o que se contrapõe à natureza é a liberdade. O contrário da natureza é a liberdade, como o contrário do voluntário é o involuntário. Foi Jean-Paul Sartre quem em boa hora nos ensinou que o homem não tem essência, já que primeiro ele existe e só depois ele é. Quando afirma que “a existência precede a essência”, Sartre quer enfatizar o quanto o homem não tem um ser de antemão. O ser do homem se constrói enquanto ele se larga à tarefa de ir sendo, tateando o mundo e a si mesmo em suas múltiplas possibilidades.
Se, no fundo do homem, não há nada como um resto essencial além de múltiplas possibilidades de ser, isto significa que nada determina o homem e, neste sentido, ele pode ser e não ser o que bem quiser; ainda que tudo indique o contrário. Sim, ainda que tudo indique o contrário porque, para Sartre, “não importa o que os outros fizeram de mim, mas o que eu fiz do que os outros fizeram de mim”. No fundo resta somente a liberdade. O resto é má-fé.
Assim, se a essência é o ser, e o homem enquanto livre não tem essência, a liberdade é o nada de ser, de que é feito o homem. Infinitas possibilidades de ser, o homem não é coisa alguma.  Nem tudo. O homem é apenas aquilo que tem sido no exercício de sua liberdade.
Claro, contra Sartre sempre poderemos perguntar sobre quem, ou o quê, no homem, põe a liberdade em exercício; sempre poderemos desconfiar da possibilidade de um ato primeiro e mais originário que toma a seu cargo a tarefa de fazer valer a liberdade a que está condenado o homem.
De fato, é porque o homem precisa ser que ele existe, já que não existe ser fora da existência. A liberdade é a negação de toda positividade para que de seus escombros surja o homem. Neste caso, é lícito imaginar que haja uma força de afirmação anterior à liberdade, um ato pelo qual o homem, para ser homem, se livra de toda determinação e se põe no mundo como livre. Essa afirmação originária, que outros chamam desejo ou esforço para permanecer na existência, confunde sobremaneira a concepção sartriana de homem como nada de ser porquanto livre de tudo. Mas minha preocupação aqui ainda não é confundir Sartre. Tomo sua noção de liberdade para desfazer o equívoco de que haja uma natureza humana como essência. Feito isso, é preciso acrescentar: existe o corpo. De fato, quem duvidaria disso? Descartes, talvez; mas Descartes tinha lá com ele suas segundas intenções, que aqui ainda não interessam. Enquanto isso, o corpo resta como uma positividade e, enquanto tal, é-me involuntário e a fonte de tudo de involuntário em mim. Posso, na verdade, fazer o que quiser com o meu corpo, exceto, dirão vocês, deixá-lo de lado pra fazer outra coisa. Ao fazer outra coisa, vocês têm razão, é meu corpo quem o faz. Em um primeiro momento, o corpo é um limite à minha liberdade e, neste sentido, parece ser o limite de minha história. Como limite e determinação, como involuntário, o corpo é uma natureza. Justamente, a natureza humana, a natureza do homem está aí, no corpo. Assim, tudo se passa como se eu pudesse livrar-me de toda determinação, mas jamais me livrar de meu corpo, senão livrando-me, com ele, de mim mesmo. Sei que de um lado há um eu, que possui um corpo mas não se confunde com esse corpo, pois de outro lado há um corpo como meu corpo, que não corresponde exatamente a mim como eu gostaria; mas não saberia me desfazer desse corpo que não sou inteiramente eu sem me desfazer de mim por inteiro. Há, assim, uma desproporção entre mim e meu corpo ao mesmo tempo em que há uma indissolubilidade entre nós dois:
 
Cometeria suicídio
tranqüilamente
se eu mesmo pudesse depois limpar a casa,
vestir o cadáver, atender as visitas,
consolar os íntimos,
ir ao enterro e voltar
sozinho e conciliado,
livre de mim
e pronto
para outra.
 
Mas não posso exterminar o meu corpo sem ir com ele. Sem também me extinguir. E não me venham falar de imortalidade da alma porque nada sei de alma, nada sei da alma sem meu corpo. Toda experiência que tenho da alma, eu a tenho no horizonte de meu corpo: dor e gozo estão na alma, mas é o corpo quem sofre; é o corpo quem goza.
Delícia e inferno.
Gostaria de ter muitos corpos, de poder trocar de corpo como quem troca de roupa. Ou melhor, como quem troca de alma. Sim, pois na liberdade constitutiva da alma, posso ser e não ser infinitamente o que sou e venho a ser. Vimos. Mas o corpo apresenta-se ao que parece como o limite dessas possibilidades.
Trocando de alma, posso me desfazer da promessa que te fiz. Mas quem foi desonesto? Aquele ali, que agora passa por ti como se nada tivesse acontecido. Jovem ou com rosto carregado de rugas, sempre aparecerá meu corpo como o marco de minha responsabilidade.
Quando alguém me aponta: “Foi ele”, posso me virar procurando outro corpo para responder pela ação cometida... mas haverá outro corpo? Posso me arrepender, posso não ser mais o mesmo, posso querer voltar atrás. Mas quem volta atrás? Quem se arrepende? Não o corpo, decerto, mas o seu dono, eu. Mas esse eu tão volúvel não é dono de outro corpo, senão deste corpo. Será? A ficção científica e as muitas técnicas de cirurgia plástica podem nos servir aqui sérias objeções a esta unicidade do corpo. Contudo, é preciso mostrar que, fora mesmo da ficção e das técnicas cirúrgicas, o corpo tem, apesar de toda essa aparente permanência, todavia desgastada pelo tempo e com o tempo, tem uma história.
A natureza humana, portanto, é o corpo do homem: o crisol de todas as necessidades, o lugar onde todas e cada uma das suas necessidades se misturam. Mesmo as necessidades ditas espirituais, é no corpo que elas gritam. O corpo, contudo, exposto ao tempo e às vicissitudes de suas necessidades, tem uma história. Há sem dúvida nisso uma idéia difícil de aceitar, quando não de entender.
A história, dizem alguns filósofos, só pode ser história da liberdade. A história, para Hegel, por exemplo, é o processo temporal pelo qual o espírito toma consciência de si como consciência de sua diferença em relação à natureza e, nesta medida, como consciência de ser, todo, liberdade. Ora, como o corpo, região da natureza, logo, da necessidade, poderia ter também uma história, ser uma história? 
A história, com efeito, supõe além da liberdade, a diferença. A história do espírito é a história de sua diferença em relação à natureza. No entanto, o corpo, o meu corpo, é somente um; dissemos. Como, de fato, posso supor uma história de algo singular, sem contraponto para uma diferença? A arte sem dúvida tem uma história; mas será que se pode fazer a história de A Monalisa, de Leonardo da Vinci? Essa hipótese só se levanta se pudermos postular, ao menos, uma diferença por assim dizer interna, de si em relação a si... De fato, de meu corpo de ontem, em relação ao meu corpo de hoje, posso até dizer que permanece meu, mas não posso dizer que é o mesmo.  Walter Benjamim, a respeito da obra de arte antes da época de sua reprodutibilidade técnica, portanto a respeito daquela arte singular, autêntica, única, original, como A Monalisa, fala de sua historicidade como a história das marcas deixadas pelas mãos que a possuíram e a tocaram. “É nessa existência única”, diz ele, “e somente nela, que se desdobra a história da obra. Essa história compreende não apenas as transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade em que ela ingressou. Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises químicas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios da segunda são o objeto de uma tradição, cuja reconstrução precisa partir do lugar em que se achava o original”. Ao que parece, podemos dizer do corpo o mesmo que Benjamin disse da obra de arte. Análises químicas ou físicas podem dizer do quanto ele mudou em relação a si mesmo, mas principalmente também o corpo, como a obra de arte, tem uma tradição, e é por meio dela que ele tece e vive a sua história.
Também meu corpo foi passado de mão em mão, das mãos do médico ao da enfermeira, no ato de meu nascimento; desta para o colo de minha mãe, que provavelmente passou aos braços de meu pai, que o contemplou. O olhar de meu pai, como o olhar de quem contempla um quadro, também faz parte da história de meu corpo, como o olhar do outro faz parte da história da arte. O corpo lavado, o corpo beijado, o corpo lambido pela fome, o corpo saciado, o corpo tocado pelas mãos sujas da rua, o corpo abraçado pelo outro corpo ou simplesmente arranhado pela ausência do corpo amado. Todos os toques compõem o meu corpo, até o toque de meu olhar no espelho, passando evidentemente pela masturbação e pelo orgasmo compartilhado.
Assim, talvez pudéssemos definir desse modo a história do corpo: o processo temporal pelo qual ele, o corpo, permanece meu corpo sem permanecer o mesmo corpo.  Que se pense nos auto-retratos de Rembrandt. Cada rosto expressa uma fase de sua vida, desde a juventude robusta e autoconfiante até o velho pobre e arruinado. Mesmo que cada um deles seja o mesmo Rembrandt, Rembrandt não é o mesmo em cada um. A história do corpo é, pois, a história dessa diferença. A diferença surgida da fricção ontológica entre o corpo e ele mesmo, entre o corpo e os outros, entre o corpo e o mundo. Mesmo as necessidades de que ele é feito não são as mesmas. O que o corpo jovem precisa pode ser o mesmo de que precisa o corpo envelhecido? O olhar cheio de dignidade do velho artista, se comparado com o olhar do jovem, pode nos dar uma resposta. Talvez ela soará como o belíssimo poema “Retrato”, de Cecília Meirelis:
“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha essas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil.
-Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
Retomando nossa equação, é possível afirmar: a natureza humana dá-se como corpo; mas, vimos, o corpo é sua (ou possui uma) história. Logo, a natureza humana só poderia ser, também ela, história. Esta antítese fundamental entre natureza e história e sua primeira superação aparecem no exato momento em que o homem é finalmente compreendido como humano, isto é, como ser social, isto é, como produto de um processo histórico. Este “momento exato”, o jovem Marx, em um de seus Manuscritos econômico-filosóficos, descreve como sendo o momento da relação (ou seja, do ato de relar, ralar, morder, trabalhar, afligir, atormentar) entre o homem e a mulher. “Na relação com a mulher, na condição de presa e serva da luxúria comunal”, escreve Marx, “exprime-se a infinita degradação em que o homem existe para si mesmo, uma vez que o segredo desta tem a sua expressão inequívoca, incontestável, revelada e descoberta na relação do homem à mulher e na maneira como se concebe a relação genérica direta e  natural. A relação imediata, natural, necessária, do homem ao homem é também a relação do homem à mulher. Nesta relação genérica natural, a relação do homem à natureza é diretamente a sua relação ao homem, e sua relação ao homem é sua relação imediata à natureza, a sua própria condição natural. Em tal relação, revela-se portanto de modo sensível, reduzida a um fato observável, até que ponto a essência humana se tornou para o homem característica e em que medida a característica se transformou em essência humana do homem. A partir de semelhante relação, é possível apreciar todos os níveis de formação do homem. Do caráter desta relação infere-se até que ponto o homem se tornou e se compreendeu a si mesmo como um ser genérico, como ser humano; a relação do homem à mulher constitui a relação mais natural do homem ao homem. Nela se manifesta, por conseguinte, em que medida o comportamento natural do homem se tornou humano, em que medida a sua essência humana se tornou, para ele, uma essência natural, até que ponto a sua característica humana se tornou natureza. Na mesma relação, revela-se também em que medida as necessidades do homem se transformaram em necessidades humanas e, portanto, em que medida o outro homem enquanto pessoa se tornou para ele uma necessidade, até que ponto ele, na sua existência mais individual, é ao mesmo tempo um ser social.” Nesta passagem vemos com evidência como a essência não é um dado natural, como a própria natureza não é uma essência previamente posta, mas natureza e essência são um produto de um processo histórico. O que há de humano no homem é história, mesmo a sua mais “primitiva” relação com a natureza.
 Com efeito, a história não é só a história da liberdade, mas também a história da luta para conquistá-la e, nesse sentido, a história da ausência de liberdade.  Corpo e história têm isso em comum: a necessidade posta como limite e a necessidade de transpor o limite da necessidade. Ora, mas também isso pode ser entendido como uma figura da liberdade. A liberdade como necessidade de transpor limites. A transposição de limites, pode-se dizer, é o jeito de o homem tornar possível sua existência. Digamos ironicamente que isso seja “da natureza humana”, quando na verdade sabemos que é, antes, “de natureza humana”. Faz parte, portanto, de sua liberdade (de sua humanidade, de sua historicidade) essa natureza. Assim,  revertendo nossa equação inicial, podemos dizer com acerto: se a história é a única natureza humana e a natureza humana é o corpo, o corpo, ao se pôr como natureza, põe-se mais efetivamente como história.

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