quinta-feira, 2 de abril de 2009

IDENTIDADE BRASILEIRA...PROF SEBAH

O que faz o brasil, Brasil?
De Roberto DaMatta

Na linha de pesquisa da identidade nacional, DaMatta revela o Brasil, os brasileiros e sua cultura através de suas festas populares, manifestações religiosas, literatura e arte, desfiles carnavalescos e paradas militares, leis e regras (quando respeitadas e quando desobedecidas), costumes e esportes. Por que para ele, cultura é, sobretudo, produção simbólica, o modo de fazer as coisas, a redução do interesse público do cidadão à problemática familiar, às relações pessoais de compadrio e cordialidade.

Apesar de muito mais inspirado em Sérgio Buarque de Holanda, particularmente em Raízes do Brasil, Roberto DaMatta perpetua a


interpretação dualista da cultura brasileira inaugurada por Gilberto Freyre de Casa grande & sensala, Sobrados & mocambos e Ordem & progresso, principalmente com dois de seus principais livros:

Carnaval, malandros e heróis e A casa e a rua. Se a casa é espaço privado das relações familiares e da vida afetiva, dela se exclui a desordem e a competição do mercado da rua. Como se exclui o diabo da Igreja. Ou o interesse público das corporações. Ou a virtude das ruas, que pelas próprias expressões “mulher da rua”, “comida de rua” ou “menino de rua” já denota vício e degradação. Assim, o mercado é por definição vil e perigoso, como a etimologia do termo trabalho vem de tripaliu, instrumento de tortura de escravos na Roma antiga, sinônimo mesmo de castigo. Quando em casa, no mundo protegido das relações familiares, no máximo prestamos serviço, ao contrário da concepção saxã de work como obra ou atividade produtiva visando prosperidade. O patrão latino (de grande pai), diferentemente do lord inglês, não é apenas o senhorio explorador do trabalho de outrem, mas o titular dos direitos de propriedade de seu servo, responsável moral pela sua própria conduta e destino sociais, como na relação de pai e filho, o que embaça a própria relação econômica do contrato trabalhista.

No plano da convivência social, Roberto Da Matta evidencia o pastiche de nossa tolerância racial quando, citando Antonil, desde o século XVIII, afirmava que o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos. Ou traduzindo em termos de cidadania: nenhum direito e todos os deveres para os escravos negros; todos os direitos como privilégios para os brancos a custa dos deveres de manutenção da ordem; e um mundo utópico e marginal à lei para os mulatos que, aliás, se chamam assim por derivação de mulos, animais de carga ambíguos e híbridos por excelência, o que mais uma vez procura embaçar a relação injusta do racismo. O que já foi denunciado por Florestan Fernandes como o preconceito de ter preconceito, a ideologia predileta brasileira de mascarar o conflito do preto no branco e do servo e do senhor, perpetuando a desigualdade perante a lei. A própria comida brasileira básica, o feijão com arroz, passa a ser nossa grande metáfora social, uma vez que o costume é misturar o preto no branco, direitos e deveres, público e privado, diferentemente da exigência por discernimento do originário pão, pão, queijo, queijo europeu. Persistimos no entendimento do Estado enquanto mátria, uma vez que cabe à mulher o domínio da ordem da casa, dos modos à mesa, da hospitalidade e afeto sobre o domínio da rua, do mercado e do trabalho, da política e das leis do mundo masculino representado pela pátria. Daí a consagração da política como relação de compadrio, de companheiros (do latim, o que come pão junto) acesso às boquinhas e à teta da viúva do erário público.

Há uma relação de estranha verossimilhança entre desfiles de festas carnavalescas, paradas cívico-militares e procissões religiosas, o que evidencia mais o deslocamento do trajeto, a expiação, do que propriamente os diferentes fins, outra vez nos embaçando a compreensão das diversas instituições sociais. O que nos faz confundir igualdade perante leis universais (para todos) com a demagogia da igualdade social como forma de mascarar desigualdades na aplicação das leis, ou simplesmente privilégios. Entre o que pode e o que não pode, nos esmeramos em encontrar um jeito... de burlar as leis. A demonstrar esta nossa tradição, a citação do trecho final da carta de Pero Vaz de Caminha: "E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez por assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em qualquer outra coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que dela receberei em muita mercê."

E partimos nós, desde então, a conceber a coisa pública de dentro de um engenho privado, de onde não partem ruas mas se congregam casa grande e senzalas, misturamos comeres, festas, leis, privilégios, interesses, direitos e deveres, sincretismos religiosos, erudito e popular, tudo pela utopia da conciliação e pelas máscaras do pastiche.