quarta-feira, 30 de julho de 2008

Entrevista com o sociólogo Zygmunt Bauman

Entrevista com o sociólogo Zygmunt Bauman, autor do famoso "O mal-estar da pós-modernidade".


Como amar em um mundo assustador?


Há anos o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, professor emérito da Universidade de Leeds e de Varsóvia, dedica-se a retratar as desastrosas consequências sociais de uma modernização que privilegia apenas uma minoria. Prestes a completar 80 anos, o autor dos best-sellers "O mal-estar da pós-modernidade" e "Amor líquido" está mais activo do que nunca: dois novos livros estão chegando ao Brasil, ambos pela Jorge Zahar Editor. Em "Vidas desperdiçadas", Bauman faz um prognóstico assustador: o crescimento incontrolável do "lixo humano", pessoas descartáveis ou "refugadas", como prefere que não puderam ser aproveitadas e reconhecidas numa sociedade cada vez mais seletiva. O outro lançamento é "Identidade", uma entrevista que concedeu ao jornalista italiano Benedetto Vecchi, em que reforça seus conceitos sobre a crise de identidade imposta pela modernização. Em entrevista exclusiva ao jornal O Globo, 5-11-05, Bauman analisa a fluidez dos relacionamentos amorosos, compara a vida em sociedade ao "Big Brother", critica o combate militar ao terrorismo, comenta o "jeitinho brasileiro" e nega o rótulo de pessimista: "Acredito fortemente que um mundo alternativo seja possível", diz ele.

No seu livro "Amor líquido" é um sucesso comercial no Brasil. Na sua opinião, por que as pessoas têm se interessado tanto pelo assunto? Por que a idéia de durabilidade das relações amorosas nos assusta tanto?

ZYGMUNT BAUMAN: As relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais penosos com que precisamos nos confrontar e solucionar. Nestes tempos líquidos, precisamos da ajuda de um companheiro leal, "até que a morte nos separe", mais do que em qualquer outra época. Mas qualquer coisa "até a morte" nos desanima e assusta: não se pode permitir que coisas ou pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo de vida. Compromissos de tempo indeterminado ameaçam frustrar e atrapalhar as mudanças que um futuro desconhecido e imprevisível pode exigir. Mas, sem esse compromisso e a disposição para o auto-sacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar no amor verdadeiro. De facto, é uma contradição sem solução. A esperança ainda que falsa é que a quantidade poderia compensar a qualidade: se cada relacionamento é frágil, então vamos ter tantos relacionamentos quanto forem possíveis.

O senhor está casado com a mesma mulher há 56 anos (a também socióloga Janina). Há segredo para uma união duradoura em tempos de "amor líquido", em que os parceiros são descartados de acordo com a sua funcionalidade?

BAUMAN: Quanto mais fácil se torna terminar relacionamentos, menos motivação existe para se negociar ou buscar vencer as dificuldades que qualquer parceria sofre, ocasionalmente. Afinal, quando os parceiros se encontram, cada um traz a sua biografia, que precisa ser conciliada, e não se pode pensar em conciliação sem fazer concessões e auto-sacrifício. Eu e Janina, provavelmente, consideramos isso mais aceitável do que a perspectiva de ficarmos separados um do outro. No fim das contas é uma questão de escolha, do valor que se dá a estar junto com o parceiro e da força do amor, que torna o auto-sacrifício em prol do amado algo natural, doce e prazeroso, em vez de amargo e desanimador.

A sociedade fragmentada que o senhor apresenta em "Vidas desperdiçadas" não estimula a individualização e o sentimento de medo ao estranho que foram apresentados em "Amor líquido"?

BAUMAN: Claro. Nos comportamos exactamente como o tipo de sociedade apresentada nos "reality shows", como por exemplo, o "Big Brother". A questão da "realidade", como insinuam os programas desse tipo, é que não é preciso fazer algo para "merecer" a exclusão. O que o "reality show" apresenta é o destino e a exclusão é o destino inevitável. A questão não é "se", mas "quem" e "quando". As pessoas não são excluídas porque são más, mas porque outros demonstram ser mais espertos na arte de passar por cima dos outros. Todos são avisados de que não têm capacidade de permanecer porque existe uma cota de exclusão que precisa ser preenchida. É exactamente essa familiaridade que desperta o interesse em massa por esse tipo de programa. Muitos de nós adoptamos e tentamos seguir a mensagem contida no lema do programa "Survivor": "não confie em ninguém!" Um slogan como esse não prediz muito bem o futuro das amizades e parcerias humanas.

Em "Vidas desperdiçadas" o senhor menciona a questão criada por "imigrantes" em busca de um Estado que os proteja e lhes dê sobrevivência. De que modo os recentes atentados terroristas nos EUA e Europa são uma conseqüência dessa "marginalização" de seres humanos?

BAUMAN: A globalização negativa cumpriu sua tarefa. As fronteiras que já foram abertas para a livre circulação de capital, mercadorias e informações não podem ser fechadas para os humanos. Podemos prever que quando e se os atentados terroristas desaparecerem, isso irá acontecer apesar da violência brutal das tropas. O terrorismo só vai diminuir e desaparecer se as raízes sociopolíticas forem eliminadas. E isso vai exigir muito mais tempo e esforço do que uma série de operações militares punitivas. A guerra real e capaz de se vencer contra o terrorismo não é conduzida quando as cidades e vilarejos arruinados do Iraque ou do Afeganistão são devastados, mas quando as dívidas dos países pobres são canceladas, os mercados ricos são abertos à produção dos países pobres e quando as 115 milhões de crianças actualmente sem acesso a nenhuma escola são incluídas em programas de educação.

O que o senhor acha da afirmação de alguns acadêmicos que a globalização acabou e que o momento que vivemos agora é de vácuo pós-globalização?

BAUMAN: Não sei o que esses "acadêmicos" têm em mente. Até agora, a nossa globalização é totalmente negativa. Todas as sociedades já estão abertas. Não há mais abrigos seguros para se esconder. A "globalização negativa" cumpriu seu papel, mas sua contrapartida "positiva" nem começou a actuar. Esta é a tarefa mais importante em que o nosso século terá que se empenhar. Espero que um dia seja cumprida. É questão de vida ou morte da Humanidade!

O que será preciso acontecer para que nossa sociedade se dê conta da armadilha que caiu em busca da suposta "modernidade"?

BAUMAN: A civilização moderna não tem tempo nem vontade de reflectir sobre a escuridão no fim do túnel. Ela está ocupada resolvendo sucessivos problemas, e principalmente os trazidos pela última ou penúltima tentativa de resolvê-los. O modo com que lidamos com desastres segue a regra de trancar a porta do estábulo quando o cavalo já fugiu e provavelmente já correu para bem longe para ser pego. E o espírito inquieto da modernização garante que haja um número crescente de portas de estábulos que precisam ser trancadas. Ocasiões chocantes como o 11 de Setembro, o tsunami na Ásia, (o furacão) Katrina, deveriam ter servido para nos acordar e fazer agir com sobriedade. Chamar o que aconteceu em Nova Orleans e redondezas de "colapso da lei e ordem" é simplista. Lei e ordem desapareceram como se nunca tivessem existido.

O senhor aponta uma "crise aguda da indústria de remoção de refugo humano". É possível criar mecanismos de inclusão dos seres humanos "excessivos" e "redundantes"? A modernização implica, necessariamente, uma "lixeira humana"?

BAUMAN: Esse excesso de população precisa ser ajudado a retornar ao convívio social assim que possível. Eles são o "exército reserva da mão-de-obra" e lhes deve ser permitido que voltem à vida activa na primeira oportunidade. Os "redundantes" são obrigados a conviver com o resto da sociedade, o que é legitimado pela capacidade de trabalho e consumo. Em vez de permanecer, como era visto anteriormente, como um problema de uma parte separada da população, a designação de "lixo" torna-se a perspectiva potencial de todos. Há partes do mundo que se confrontaram com o antes desconhecido fenômeno de "população sobrando". Os países subdesenvolvidos não se disporiam, como no passado, a receber as sobras de outros povos e nem podem ser forçados a aceitar isso.

Países como Brasil, Índia e China são constantemente apontados como estratégicos para o século XXI. Ao mesmo tempo, são três países com grande número de "lixo humano", com alto índice de desemprego. Isso não é uma contradição?

BAUMAN: Certamente. Isso fica ainda pior quando os gigantes do século XXI, China, Índia, Brasil, entram no "processo de modernização". O número de "pessoas desnecessárias" crescerá. E aí há o grande problema que mais cedo ou mais tarde teremos que enfrentar: capacitar ou não China, Índia e Brasil a imitar o modelo de "bem-estar" adotado nos Estados Unidos em uma época em que "modernização" ainda era um privilégio de poucos? Para dar vazão, seriam necessários três planetas, mas nós só temos um para dividir.

Um dos mais importantes compositores brasileiros, Chico Buarque de Holanda, afirmou que "uma nação grande e forte é perigosa, mas que uma nação grande, forte e ignorante é ainda mais perigosa". Ter uma nação grande, forte e ignorante no comando do mundo como parecem ser os Estados Unidos da Era Bush não pode acirrar ainda mais o "refugo" dos seres humanos?

BAUMAN: Lamento não conhecer Chico Buarque: ele toca no cerne da questão. Até onde vai a situação de nosso planeta com um único superpoder, confundido e subjugado pela ilusão de sua repentina ilimitada liberdade? A elevação súbita dos Estados Unidos à posição de superpotência absoluta e uma incontestada hegemonia mundial pegou líderes políticos americanos e formadores de opinião desprevenidos. É muito cedo para declarar a natureza deste novo império e generalizar seu impacto no planeta. Seu comportamento é, possivelmente, o fator mais importante da incerteza definida como "Nova Desordem Mundial". Um império estabelecido pela guerra tem que se manter por guerras. Acabamos de ver isso no Iraque, apesar de todos saberem que era óbvio que bombardear e invadir o país não aniquilaria o terrorismo.

No Brasil, temos uma expressão muito popular, "jeitinho brasileiro", que representa a capacidade do povo de superar adversidades, sejam elas pequenos problemas do cotidiano ou não. O senhor acredita que há nações com seres "redundantes" que saibam sobreviver melhor do que outros?

BAUMAN: O que vocês chamam de "jeitinho brasileiro" é a maneira que a modernização nos obrigou a reagir. Um dos resultados cruciais da modernização é a dependência dos processos da vida humana pelos "jeitinhos". Isso implica o outro lado da mesma moeda: a vulnerabilidade crescente dos legítimos modos instruídos de viver.

Aos 80 anos, sua produção intelectual ainda é grande. O que o motiva a continuar escrevendo?

BAUMAN: Pierre Bourdieu ressaltou que o número de personalidades do cenário político que podem compreender e articular expectativas e demandas está encolhendo. Precisamos aumentá-lo, e isso só pode ser feito apresentando problemas e necessidades. O próximo século pode ser o da catástrofe final ou um período no qual um novo acordo entre os intelectuais e as pessoas que representam a Humanidade seja negociado e trazido à tona. Vamos esperar que a escolha entre estes dois futuros ainda seja nossa.

Todas suas obras apresentam um cenário bastante pessimista do mundo. Temos razão para acreditar em dias melhores?

BAUMAN: Rejeito enfaticamente essa afirmação. Optimistas são pessoas que insistem que o mundo que temos é o melhor possível; os pessimistas são os que suspeitam que os optimistas podem ter razão. Portanto eu não sou nem optimista nem pessimista, porque acredito fortemente que outro mundo, alternativo e quem sabe melhor, seja possível. Acredito que os seres humanos sejam capazes de tornar real essa possibilidade.

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Resenha - Zygmunt Bauman

Nas décadas de 60 e 70, o capitalismo estava sendo contestado de todos os lados. Além das
greves freqüentes, estudantes e minorias se rebelavam e articulavam, no discurso e na
prática, a miséria do cotidiano – preconceitos, sexualidade restrita, vida tediosa e
programada – às exigências de uma ordem capitalista. E diante da crua realidade do
“socialismo”, o direito de ser diferente dos outros e de si mesmo tornou-se modo de
permanecer revolucionário apesar das notícias amargas sobre os resultados das revoluções.
A partir da década de 80, porém, o capitalismo ressurge triunfante, sem adversários, sejam
estes reais ou postulados. A concentração de renda aumenta, o desemprego torna-se
endêmico e a fome se espalha pelo mundo; mesmo assim, a crítica se cala. Pior, o direito à
diferença torna-se receita de livro de auto-ajuda. No final do século XX e início do XXI,
sociólogos de diversos matizes são obrigados então a se colocar três questões: que nova
sociedade é esta? Que tipo de discurso crítico é preciso construir? Que responsabilidade o
discurso do direito à diferença pôde ter no esvaziamento recente da crítica ao capitalismo?
Essas questões formam o horizonte do novo livro de Zigmunt Bauman, Modernidade
Líquida. Bauman é um ensaísta prolífico; a cada ano, nos deparamos com um novo título
seu nas estantes. A singularidade de Modernidade Líquida é que, nele, Bauman não se
limita a coletar signos e conceituar a distância entre o presente e nosso passado recente;
preocupa-se também com a atualidade dos discursos críticos próprios da época moderna,
discursos que de início questionaram a ordem social tendo em vista a possibilidade e a
necessidade de uma nova e boa ordem a ser construída no futuro, mas que, depois,
passaram a se inquietar com as ameaças implícitas à liberdade individual na imposição por
alguns de sua visão do bem.
O livro, como sugere seu título, parte da mensuração da proximidade e distância entre o
presente e o passado recente. A proximidade é a constatação de que continuamos
modernos, simplesmente porque a Modernidade significa o fim da crença em uma ordem
revelada e mantida por Deus e a assunção de que “os humanos encontram-se no mundo por
conta própria”. Deste modo, o que o homem fez pode ser desfeito: a Modernidade é a época
da história que pensa a si mesma historicamente.
Esta forma de aproximação obriga a construir a diferença. Nosso passado recente torna-se a
fase sólida da Modernidade. Embora Marx parta da constatação de que tudo que é sólido
desmancha no ar, esta fase inerentemente transgressiva só se dava a tarefa de liquefazer os
sólidos herdados da tradição para construir bons e duráveis sólidos no futuro. Por isso,
Bauman escolhe como sua metáfora a fábrica fordista; afinal, o sonho de Lênin era livrar
este modelo do caos do mercado e estender a “organização científica do trabalho” para a
sociedade como um todo. A boa ordem a vigorar no futuro seria inimiga da contingência,
da variedade e da ambigüidade. Deste modo, a Modernidade pesada, embora refletisse
normativamente sobre a sociedade e confiasse no vínculo entre ação intencional dos
indivíduos e transformação coletiva da sociedade, tinha uma tendência totalitária. A ordem
a construir era imaginada como homogeneidade compulsória. Inevitável, assim que a teoria
crítica, desde a Escola de Frankfurt ao menos, temesse que a primeira vítima da boa ordem
fosse a liberdade individual e se desse como principal objetivo a defesa da autonomia e a
luta contra a invasão da esfera privada pela esfera pública.
Nosso presente, a Modernidade Líquida, é uma versão privatizada e individualizada da
Modernidade. Só acreditamos ser capazes de transformar a nós mesmos para nos preparar
para as inumeráveis transformações sociais que experimentamos cotidianamente. Os
sólidos que se derreteram na fase líquida da Modernidade são os elos que entrelaçavam os
projetos individuais em projetos e ações coletivas. Cada um por si procura ser flexível para
se capacitar para as incertezas do futuro; ao mesmo tempo, ninguém se crê capaz de
transformar a sociedade como um todo. Conceituando precisamente, a Modernidade
Líquida tem uma estrutura sistêmica remota, inalcançável e inquestionável, ao mesmo
tempo em que o cenário do cotidiano – relações familiares e amorosas, emprego e cidade -
é fluido e não-estruturado. Deste modo, experimentamos uma clivagem entre a ação
humana transformadora e a ordem como um todo. O mais interessante é que este mundo
evidentemente distópico, onde o futuro é catástrofe e incerteza que força mudanças
individuais, onde a ordem é rígida, não é obra de uma tirania, mas “o artefato e o
sentimento da liberdade dos agentes humanos”.
Se a Modernidade líquida é caracterizada por esse abismo entre o direito à auto-afirmação
individual e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa liberdade
factível, se ela é marcada pela privatização do destino e pela crise da política, é necessário
mudar a tarefa da teoria crítica. Se antes o decisivo era defender a autonomia privada contra
o avanço do Estado, a tarefa hoje é defender o evanescente domínio público de sua invasão
por interesses e sofrimentos privados. Como restituir lugares públicos na cidade, ao invés
de ela ser marcada pela proliferação dos condomínios fechados e shoppings centers? Como
evitar que nossos jornais e TVs sejam ocupados por fofocas sobre personalidades públicas e
pela exibição de sofrimentos individuais sem qualquer possibilidade de articulação em
causas públicas?
Bauman apresenta esses temas através da análise de cinco conceitos decisivos, cada um
formando um capítulo do livro: emancipação, individualidade, espaço/tempo, trabalho e
comunidade. Em todos eles, reaparecem diversos traços em que nos reconhecemos: a
incerteza da vida cotidiana, a insegurança na cidade, a precariedade dos laços afetivos e do
trabalho, o privilégio do consumo em detrimento da produção, a troca do durável pela
amplitude do leque de escolhas, o excesso de informações, etc.
No último capítulo, Bauman se dedica não mais a mostrar a inadequação dos conteúdos da
teoria crítica à nossa realidade, mas a questionar uma alternativa ética e política do
presente, o sonho comunitário. Para Bauman, a popularidade desse sonho é gerada pelo
crescente desequilíbrio entre a liberdade de direito e as garantias individuais. A
comunidade é a promessa de “um porto seguro para os navegantes perdidos no mar
turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível”. O problema é que este é um
sonho de pureza, que opera segundo a distinção entre nós e eles, excluindo tudo o que se
considera estranho, como ocorre nos condomínios fechados e nos nacionalismos.
A aposta de Bauman é no modelo republicano, aquele onde a unidade é um resultado e não
uma condição a priori, uma unidade erguida pela negociação e reconciliação e não pela
supressão das diferenças. Este modelo é a sua resposta a uma questão que angustia a muitos
hoje: como voltar a lutar pelo bem comum reconhecendo, ao mesmo tempo, que existem
múltiplas versões do bem e que o totalitarismo sempre ronda aqueles que querem impor sua
versão aos outros?

terça-feira, 29 de julho de 2008

Diversidade

Diversidade cultural e os desafios da política brasileira de saúde do índio





Esther Jean Langdon

Professora do Departamento de Antropologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC





Durante os últimos cinqüenta anos, a posição das minorias perante o Estado se transformou significativamente. Decretos internacionais, bem como a legislação nacional, reconheceram a natureza multiétnica do Estado e a necessidade de assegurar os direitos e o respeito dos diferentes grupos étnicos. No Brasil, essas mudanças legais vieram acompanhadas pelo surgimento de organizações indígenas como força importante dentro da arena política. Maior visibilidade da etnia resultou nas mudanças na política e na organização dos serviços de saúde indígenas.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho assinalou o reconhecimento internacional dos direitos indígenas em 1989. Esse documento foi o primeiro instrumento legal internacional concebido com o objetivo de proteger especificamente os direitos indígenas, exigindo o reconhecimento e o respeito à diversidade cultural dos povos nativos em todas as dimensões, incluindo o emprego, a educação e a saúde entre outros. A Convenção 169 reverteu o ideal de integração dos povos nativos e também substituiu a noção da colaboração eventual dos índios pela da participação ativa nas medidas legislativas e nas decisões que os afetam imediatamente.

O aumento significativo no número de atividades das organizações indígenas nos últimos 25 anos influenciou as mudanças nas políticas relacionadas às minorias étnicas no Brasil, e a Constituição Federal de 1988 afirmou sua composição multiétnica. As questões de poder, etnia, e conflito interétnico dominaram as discussões que concernem às relações do Índio com a sociedade. Embora o povo indígena ainda necessite de uma cidadania plena em uma sociedade sem preconceito e exploração, o surgimento da etnia como uma força política importante teve grandes conseqüências na política de saúde indígena e no papel dos cientistas sociais envolvidos com pesquisa em saúde ou intervenção.

No Brasil, os Índios são minoria numérica e étnica. A população indígena compõe aproximadamente 0,2% da população, e está estimada entre 350.000 e 800.000. Essa população é caracterizada por uma multiplicidade de grupos e idiomas nativos. A maioria dos Índios brasileiros pertence a micro sociedades. Vinte e oito por cento (28,2%) dos 216 grupos indígenas apresentam uma população de menos de 200 indivíduos, e 77% possuem menos de 1000. É impossível caracterizar uma "cultura" indígena única.

Contribuindo para essa situação de diversidade cultural, os grupos se encontram em diversos estados de contato: em um extremo, poucos se mantêm isolados ou semi-isolados e sofrem o impacto da violência e das doenças de contacto. No outro extremo, que é a situação da maioria, os Índios estão em contato freqüente e continuo com a sociedade. Essa última situação caracteriza a maior parte das regiões fora do Amazonas. No Sul, bem como no Nordeste, os Índios enfrentam uma situação de saúde semelhante à da população carente em geral: alta prevalência de desnutrição, tuberculose, problemas dentários, parasitas intestinais, alcoolismo, alta taxa de mortalidade infantil, baixa expectativa de vida, etc. Apesar de não haver estatísticas disponíveis, a AIDS parece poder se tornar a nova epidemia ameaçando a sobrevivência dos povos indígenas.

A Constituição Federal de 1988 foi parte do retorno à democracia no Brasil. Nessa mesma década, a reforma do sistema de saúde com o estabelecimento do Sistema Único de Saúde - SUS delegou maior responsabilidade e poder às prefeituras e ao consumidor. Em face dessa reforma, a Primeira Conferência Nacional para a Proteção da Saúde Indígena foi organizada em 1986, para avaliar sua situação de saúde e para criar uma política especial para eles.

Até o final da primeira Conferência, não havia uma política relacionada à saúde indígena e os serviços de saúde nunca eram adequados. Inicialmente, os missionários forneciam algum atendimento de saúde. A saúde indígena estava entre as responsabilidades do Serviço para Proteção dos Índios (SPI), criado em 1919. Por toda a sua existência, os serviços de saúde eram pequenos em número, esporádicos e desorganizados. Os dados sistemáticos relacionados às condições de saúde não foram mantidos e não havia nenhuma pesquisa. O Serviço Nacional de Tuberculose (SNT) ajudava sua atividade nos anos 50, tratando a tuberculose nas regiões do Alto Xingu e do Araguaia. Em 1956 as Unidades Sanitárias Aéreas -SUSA se uniram para atender populações indígenas isoladas. Os Índios que tinham maior contato com a sociedade nacional não foram cobertos por esses serviços.

A FUNAI – Fundação Nacional do Índio, assumiu as responsabilidades da SPI. Os postos de saúde para a provisão de atenção primária foram estabelecidos dentro das Terras Indígenas – TI. Um único atendente de saúde, que tinha suas atividades complementadas pelas equipes de saúde visitantes, normalmente freqüentava o Posto. Casos difíceis, que necessitassem de tratamento ou diagnóstico sofisticados eram atendidos pelos hospitais locais, os serviços de saúde rural, INAMPS, e as Secretarias de Saúde Estadual, que mantivessem convênios com a FUNAI.

Esses serviços eram altamente insatisfatórios, desorganizados, e ineficientes. Freqüentemente seu papel principal era limitado à distribuição de medicamentos enviados ao local periodicamente. Fora das Terras Indígenas, os Índios sofriam discriminação pelos hospitais locais e outros serviços. As "Casas Indígenas" nos centros regionais eram super lotadas com pacientes e suas famílias e ficaram conhecidas como centros de infecção e disseminação de doenças, incluindo as sexualmente transmissíveis.

Entre a Primeira Conferência Nacional e o estabelecimento do presente Subsistema de Saúde Indígena, diversas tentativas foram feitas para resolver os serviços de saúde indígenas e fazê-lo nos moldes dos princípios do Sistema Único de Saúde, que incluem acesso universal, serviços de saúde humanos e controle social. A responsabilidade pelos serviços de saúde passava entre a Fundação Nacional de Saúde – FUNASA e a FUNAI, e havia problemas crônicos de desorganização, confusão institucional, e falta de verba. Em 1999, o Subsistema de Saúde Indígena, que estabelecia 34 Distritos Especiais de Saúde Indígena – DSEI foi lançado, delegando a FUNASA a responsabilidade total de administrar esse Subsistema. As necessidades que necessitassem atenção além dos Postos de saúde indígenas deveriam ser articuladas com aquelas do SUS. Os princípios de acesso universal, atenção diferenciada, e controle social são os princípios que governam esse Subsistema.

Desde a década de 90, a estratégia de fornecimento de serviços de saúde foi a de criar uma integração entre as instituições governamentais e não-governamentais com as universidades. Seu papel, nem sempre bem definido, incluiu pesquisa, consultas, provisão de serviços, e a provisão de cursos para profissionais de saúde e/ou Índios. A Escola Paulista de Medicina, que estabeleceu o Programa de Saúde do Parque Nacional do Xingu em 1965, foi talvez a instituição mais notável em fornecer serviços de saúde e fazer pesquisa, mas outras instituições também foram importantes. A Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no Rio de Janeiro e Manaus, assumiu um papel importante no treinamento de profissionais e de agentes de saúde. Muitas outras universidades se uniram a essas instituições na última década e houve um crescimento importante dos projetos de pesquisa e intervenção no nível interdisciplinar.

O estabelecimento das 34 DSEIs em 1999 foi acompanhado por um aumento considerável nos recursos financeiros dedicados à saúde indígena e um número cada vez maior de profissionais e programas que se dedicam à saúde indígena. A tendência de mais pesquisa continua e publicações significantes sobre o tema surgiram.

Entretanto, após oito anos, não houve avaliação global do Subsistema. Houve claramente um impacto importante no acesso aos serviços de saúde. Um segundo resultado positivo foi o aumento da participação das Organizações Indígenas. Parte disso foi estimulada pelo estabelecimento de convênios entre tais organizações e a FUNASA para o fornecimento de serviços de saúde às Comunidades Indígenas, eliminando o papel das prefeituras no atendimento primário. Esses convênios causaram conflitos de interesses, e as acusações mútuas entre as partes interessadas podem indicar um aumento do controle municipal na atenção primária nas Terras Indígenas. É muito cedo para avaliar essa situação, mas qualquer que seja o resultado, as Organizações Indígenas fortaleceram seu poder com sua participação.

Apesar dos benefícios positivos, muitas questões importantes ainda necessitam ser respondidas em relação ao sucesso da política de saúde, e os artigos nessa edição são extremamente pertinentes para três questões gerais. A primeira relacionada à situação epidemiológica atual e os problemas com o sistema de informação da FUNASA. Formulado em 2001, o sistema de informação continua enfrentando diversos problemas, impedindo uma avaliação do impacto do número maior de serviços de saúde na prevalência e distribuição de doenças entre a população indígena. Possuímos, como evidência nessa questão, os resultados de pesquisas individuais em situações específicas, que nem sempre indicam resultados favoráveis.

Uma segunda questão tratada nessa edição se refere ao princípio de atenção diferenciada. A atenção diferenciada supõe que profissionais de saúde devem considerar a particularidade cultural da comunidade indígena, e respeitar práticas de saúde tradicionais e curandeiros. Apesar desse princípio ser parte da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, a FUNASA não conseguiu desenvolver diretivas que orientem efetivamente as equipes de saúde. Esforços para oferecer atenção diferenciada são isolados, e há uma tendência a "essencialização" das noções de cultura e tradição, que se tornou centro da luta por poder entre as comunidades e as equipes de saúde.

Uma terceira questão importante se relaciona à eficiência da participação e controle social das comunidades indígenas. Uma hierarquia de conselhos que garanta participação e controle social eficientes foi instituída. Começa com o conselho de saúde local, para o Conselho Distrital, e finalmente para a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena, que reporta ao Conselho de Saúde Nacional. Apesar da participação indígena ser garantida em todos os níveis, pouca pesquisa foi dedicada para examinar se esses conselhos representam processos democráticos e controle social eficiente na prática, ou se de fato eles continuam a ser dominados por grupos de interesse.