quarta-feira, 30 de julho de 2008

Resenha - Zygmunt Bauman

Nas décadas de 60 e 70, o capitalismo estava sendo contestado de todos os lados. Além das
greves freqüentes, estudantes e minorias se rebelavam e articulavam, no discurso e na
prática, a miséria do cotidiano – preconceitos, sexualidade restrita, vida tediosa e
programada – às exigências de uma ordem capitalista. E diante da crua realidade do
“socialismo”, o direito de ser diferente dos outros e de si mesmo tornou-se modo de
permanecer revolucionário apesar das notícias amargas sobre os resultados das revoluções.
A partir da década de 80, porém, o capitalismo ressurge triunfante, sem adversários, sejam
estes reais ou postulados. A concentração de renda aumenta, o desemprego torna-se
endêmico e a fome se espalha pelo mundo; mesmo assim, a crítica se cala. Pior, o direito à
diferença torna-se receita de livro de auto-ajuda. No final do século XX e início do XXI,
sociólogos de diversos matizes são obrigados então a se colocar três questões: que nova
sociedade é esta? Que tipo de discurso crítico é preciso construir? Que responsabilidade o
discurso do direito à diferença pôde ter no esvaziamento recente da crítica ao capitalismo?
Essas questões formam o horizonte do novo livro de Zigmunt Bauman, Modernidade
Líquida. Bauman é um ensaísta prolífico; a cada ano, nos deparamos com um novo título
seu nas estantes. A singularidade de Modernidade Líquida é que, nele, Bauman não se
limita a coletar signos e conceituar a distância entre o presente e nosso passado recente;
preocupa-se também com a atualidade dos discursos críticos próprios da época moderna,
discursos que de início questionaram a ordem social tendo em vista a possibilidade e a
necessidade de uma nova e boa ordem a ser construída no futuro, mas que, depois,
passaram a se inquietar com as ameaças implícitas à liberdade individual na imposição por
alguns de sua visão do bem.
O livro, como sugere seu título, parte da mensuração da proximidade e distância entre o
presente e o passado recente. A proximidade é a constatação de que continuamos
modernos, simplesmente porque a Modernidade significa o fim da crença em uma ordem
revelada e mantida por Deus e a assunção de que “os humanos encontram-se no mundo por
conta própria”. Deste modo, o que o homem fez pode ser desfeito: a Modernidade é a época
da história que pensa a si mesma historicamente.
Esta forma de aproximação obriga a construir a diferença. Nosso passado recente torna-se a
fase sólida da Modernidade. Embora Marx parta da constatação de que tudo que é sólido
desmancha no ar, esta fase inerentemente transgressiva só se dava a tarefa de liquefazer os
sólidos herdados da tradição para construir bons e duráveis sólidos no futuro. Por isso,
Bauman escolhe como sua metáfora a fábrica fordista; afinal, o sonho de Lênin era livrar
este modelo do caos do mercado e estender a “organização científica do trabalho” para a
sociedade como um todo. A boa ordem a vigorar no futuro seria inimiga da contingência,
da variedade e da ambigüidade. Deste modo, a Modernidade pesada, embora refletisse
normativamente sobre a sociedade e confiasse no vínculo entre ação intencional dos
indivíduos e transformação coletiva da sociedade, tinha uma tendência totalitária. A ordem
a construir era imaginada como homogeneidade compulsória. Inevitável, assim que a teoria
crítica, desde a Escola de Frankfurt ao menos, temesse que a primeira vítima da boa ordem
fosse a liberdade individual e se desse como principal objetivo a defesa da autonomia e a
luta contra a invasão da esfera privada pela esfera pública.
Nosso presente, a Modernidade Líquida, é uma versão privatizada e individualizada da
Modernidade. Só acreditamos ser capazes de transformar a nós mesmos para nos preparar
para as inumeráveis transformações sociais que experimentamos cotidianamente. Os
sólidos que se derreteram na fase líquida da Modernidade são os elos que entrelaçavam os
projetos individuais em projetos e ações coletivas. Cada um por si procura ser flexível para
se capacitar para as incertezas do futuro; ao mesmo tempo, ninguém se crê capaz de
transformar a sociedade como um todo. Conceituando precisamente, a Modernidade
Líquida tem uma estrutura sistêmica remota, inalcançável e inquestionável, ao mesmo
tempo em que o cenário do cotidiano – relações familiares e amorosas, emprego e cidade -
é fluido e não-estruturado. Deste modo, experimentamos uma clivagem entre a ação
humana transformadora e a ordem como um todo. O mais interessante é que este mundo
evidentemente distópico, onde o futuro é catástrofe e incerteza que força mudanças
individuais, onde a ordem é rígida, não é obra de uma tirania, mas “o artefato e o
sentimento da liberdade dos agentes humanos”.
Se a Modernidade líquida é caracterizada por esse abismo entre o direito à auto-afirmação
individual e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa liberdade
factível, se ela é marcada pela privatização do destino e pela crise da política, é necessário
mudar a tarefa da teoria crítica. Se antes o decisivo era defender a autonomia privada contra
o avanço do Estado, a tarefa hoje é defender o evanescente domínio público de sua invasão
por interesses e sofrimentos privados. Como restituir lugares públicos na cidade, ao invés
de ela ser marcada pela proliferação dos condomínios fechados e shoppings centers? Como
evitar que nossos jornais e TVs sejam ocupados por fofocas sobre personalidades públicas e
pela exibição de sofrimentos individuais sem qualquer possibilidade de articulação em
causas públicas?
Bauman apresenta esses temas através da análise de cinco conceitos decisivos, cada um
formando um capítulo do livro: emancipação, individualidade, espaço/tempo, trabalho e
comunidade. Em todos eles, reaparecem diversos traços em que nos reconhecemos: a
incerteza da vida cotidiana, a insegurança na cidade, a precariedade dos laços afetivos e do
trabalho, o privilégio do consumo em detrimento da produção, a troca do durável pela
amplitude do leque de escolhas, o excesso de informações, etc.
No último capítulo, Bauman se dedica não mais a mostrar a inadequação dos conteúdos da
teoria crítica à nossa realidade, mas a questionar uma alternativa ética e política do
presente, o sonho comunitário. Para Bauman, a popularidade desse sonho é gerada pelo
crescente desequilíbrio entre a liberdade de direito e as garantias individuais. A
comunidade é a promessa de “um porto seguro para os navegantes perdidos no mar
turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível”. O problema é que este é um
sonho de pureza, que opera segundo a distinção entre nós e eles, excluindo tudo o que se
considera estranho, como ocorre nos condomínios fechados e nos nacionalismos.
A aposta de Bauman é no modelo republicano, aquele onde a unidade é um resultado e não
uma condição a priori, uma unidade erguida pela negociação e reconciliação e não pela
supressão das diferenças. Este modelo é a sua resposta a uma questão que angustia a muitos
hoje: como voltar a lutar pelo bem comum reconhecendo, ao mesmo tempo, que existem
múltiplas versões do bem e que o totalitarismo sempre ronda aqueles que querem impor sua
versão aos outros?

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