quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Espetacularização midiática da crueldade e a ordem da representação: o filme Contra todos

Espetacularização midiática da crueldade e a ordem da representação: o filme Contra todos
Renato Cordeiro Gomes




Há uma conhecida declaração de Martin Scorsese – “Me pergunto por que se vêem hoje cada vez mais efeitos especiais que mostram corpos mutilados ou em decomposição”. Referia-se o cineasta a um suposto movimento de naturalização da violência alentada pela guerra das imagens e pelo recrudescimento das polêmicas sobre a violência na televisão e no cinema. Houve mesmo nos anos 1990 uma quantidade de produções cinematográficas que explorava a violência tomando
o espectador de assalto (Quentin Tarantino, Oliver Stone, David Fincher, para citar alguns diretores), além de uma obsessão pelo serial killer.
Essa onda atinge também a televisão e o cinema brasileiros, gerando, de modo semelhante a outros países, o debate sobre a influência das imagens de violência nos espectadores, principalmente em jovens e crianças, enquanto recrudescia também a violência urbana, que se dava no cotidiano do cidadão, a quem eram oferecidas doses maciças de imagens violentas nos noticiários televisivos e na própria ficção veiculadas pelos meios de comunicação massiva. Estariam esses meios pondo em imagens atos de crueldade até o limite do suportável? Poderíamos colocar no mesmo plano todo tipo de imagem agressiva, sem levar em conta a intenção, o contexto e o sentido da ação mostrada nas telas? (Lembre-se, entre parênteses, a campanha veiculada nas TVs que pretende pressionar os grandes anunciantes para “não financiarem baixaria” na telinha. Tal campanha é parte de uma discussão mais ampla sobre a ética dos/nos meios de comunicação).
Tal tipo de debate que considera a manifestação de uma desmesura inédita da violência nas telas, muitas vezes encara esse fenômeno como se afetasse unicamente
a ordem da representação e da ficção, como se as transformações históricas e
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a representação da violência não tivessem a ver estritamente com a violência efetiva de nossas sociedades, como adverte o crítico francês Olivier Mongin em relação à discussão em seu país (Mongin, 1999: 15).
Frente ao paroxismo das imagens violentas e ao nosso desejo de contemplar o mundo e de habitá-lo, o crítico francês pergunta se estamos condenados a dar voltas ao redor de uma violência que se pretende cada vez mais natural e que já não se apresenta como experiência. “Não se está condenado a reciclar a violência quando
não se logra sair dela?”. Ou: “como reciclar a violência se o excesso e a irrisão fracassam, incapazes de interromper o fluxo das imagens e da violência? (Mongin, 1999: 115).
Essas indagações servem aqui de mote para buscar apreender relações entre
crueldade e violência e sua mediação e/ou construção pela cultura midiática, sobretudo naqueles produtos que tematizam e dramatizam a espessura do espaço urbano, o que permite evocar o binômio comunicação e crueldade-violência, ou seja, as formas de violência que se manifestam nas cidades e as modalidades com que o fenômeno é representado pelos meios de comunicação de massa. Tais representações
espraiam-se também pela cultura popular, pela arte, pela literatura e outras formas do discurso letrado, mas interessam, particularmente, aquelas representações veiculadas pela mídia, ao mesmo tempo em que se sabe que real, ou representada pela mídia ou pela arte, a violência (restringe-se aqui ao caso do Brasil) faz parte dos imaginários urbanos contemporâneos, pondo em causa o sonho ilustrado e utópico de uma cartografia primeira de uma comunidade imaginada (Anderson) entre nós. No sentido do contexto deste início do século XXI, fala Martín-Barbero (2002: 21) da fascinação pública com a violência e como esta tem passado a integrar os processos
de comunicação nos centros urbanos, corroendo profundamente as identidades individuais e coletivas. Os meios e os medos tocam-se como mobilizadores sociais, transfigurando as formas em que se vive o espaço público e privado, e as narrativas que dão conta deles (Moraña, 2002: 11). No ensaio “La ciudad que median los miedos”,
Martín-Barbero, falando de Bogotá, adverte que os meios de comunicação, ao tratar da violência generalizada vivida como um processo banal com normas e regulações, vivem dos medos, do terror, e os exploram de forma doentia, agravando a desinstitucionalização da violência e colaborando na expansão do sentimento de impotência em relação a uma ação coletiva e no constrangimento do indivíduo ao território doméstico e a si mesmo (2002: 21). Para Barbero, a reiterada presença do ato violento nos discursos sociais remete, por um lado, à sua banalização, e por outro à necessidade psicológica de sobrepujar o trauma permitindo sua assimilação como experiência (2002: 23).
Com as devidas proporções, essas observações cabem à realidade de grandes centros urbanos brasileiros e nossos modos de veiculação da violência pela mídia, que confirmam o espaço urbano como palco da violência e “educam” o indivíduo
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na sua naturalização, ao mesmo tempo em que camuflam o conflito social – adverte Teixeira Coelho em A imaginação e o capital cultural da violência no Brasil (2002).
Ao fiarmos no senso comum (segundo Deleuze, em A lógica do sentido, o senso comum supõe uma função, uma faculdade de identificação, que relaciona qualquer diversidade com a forma do Mesmo; o senso comum identifica, reconhece, assim como o bom senso prevê) que acaba sendo veiculado pela imprensa, pela televisão, e é apreendida pela cultura midiática de um modo geral, a crueldade é quase sempre associada à violência, ou mais ainda, tomada como seu sinônimo. Há mesmo uma equivalência intercambiável entre os dois termos, que ganham conotações associadas a fazer mal, atormentar ou prejudicar; ou ainda a terror e, como adjetivo (cruel, violento),
aponta para insensível, desumano, tirano. Estão aí concretizando tais acepções a personagem Nazaré, da telenovela Senhora do destino, que a TV Globo exibiu com altos índices de audiência, contribuindo para aumentar toda uma tradição de vilões de folhetim, que encarnam o mal absoluto (ver neste sentido a matéria “As flores do mal”, de Luiz Caversen, na Folha de S. Paulo, Ilustrada, 03/04/2004, que trata dos vilões Laura e Renato, da telenovela Celebridade). O cinema vem explorando também tais personagens. As imagens a eles associadas na telinha e na tela grande contribuem para reforçar essa relação entre crueldade e violência.
Imagens que sublinham tal relação podem ser recortadas de inúmeros filmes
do cinema brasileiro da Retomada. Exemplos: corpos mutilados antecedem a seqüência em que um cão policial caminha, cheirando o sangue derramado pelo chão do presídio, no filme Carandiru, de Hector Babenco; corpos mutilados e ensangüentados
proliferam na narrativa ágil e clipada de Cidade de Deus, de Fernando Meireles e Katia Lund.
A enumeração poderia ir ao infinito e levaria qualquer um a associar violência e crueldade, principalmente em imagens, como as citadas, em que aparecem corpos mutilados e muito sangue. A redundância e o paroxismo desse tipo de imagem permitem
evocar aquela pergunta do crítico francês se estamos condenados a reciclar a violência/crueldade sem conseguir sair dela, gerando mais e mais violência, ou mais imagens violentas, traços de uma brutalidade humana que se retroalimenta pelas doses servidas diariamente pela mídia. Tais aspectos remetem à banalização da violência, cujo caráter exibicionista pode despertar a fascinação pública da própria violência, que o senso comum identifica e reconhece como um dado da realidade imediata, quase uma prova de verdade de que aquelas representações coincidem com a própria realidade: haveria mesmo uma correspondência perfeita entre as duas instâncias.
Esse tipo de posicionamento “naturalista”, que hoje é lugar comum nos produtos
da cultura midiática, levou Antonin Artaud, quando formulava suas teorias do Teatro da Crueldade a perguntar ironicamente: “será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?” (“Le théâtre et la cruauté”, de maio de 1933). Ao constatar a decadência do teatro que perde sua eficácia, desprezado pela elite e
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abandonado pela multidão, que prefere o cinema, o music-hall ou o circo, Artaud propõe um teatro de ação extrema, que assedie a sensibilidade do espectador, para renovar o “espetáculo total”, um espaço bombardeado de imagens e sons. Requer para esse “novo” teatro uma linguagem que vá além da palavra fundante da cena tradicional, linguagem essa marcada ao mesmo tempo pelo excesso e pela precisão. No final desse texto, faz um apelo no sentido de obter recursos materiais e financeiros para a realização desse teatro (da crueldade), e oferece como cláusula ameaçadora justamente a frase citada. Deste modo, vemos que o que ela diz não caracteriza, na perspectiva de Artaud, a crueldade. Referia-se àquele tipo de teatro que dominava a cena burguesa, que carreava todos os recursos para proporcionar divertimento.
Artaud irá, então, reivindicar um teatro “novo” que rejeita a encenação tradicional,
verista ou ilusionista, o que equivale à rejeição da “representação” como mimetismo (era apenas esse teatro que merecia subsídios financeiros? – era esse o subtexto daquela frase). Ao apelar para uma renovação da vida através do teatro, aliava-se à preocupação metafísica, mística até; para ele, o Mal se reduz ao Mal único, ao sofrimento de existir.
Evoca-se, aqui, o Teatro da Crueldade, com o objetivo de circunscrever melhor o sentido de crueldade-violência na cultura midiática contemporânea. Para Artaud, não significa teatro de terror e de sangue, como o senso comum explorado pela mídia
concebe. Não se trata absolutamente de uma crueldade física ou mesmo moral, mas, antes de tudo, de uma crueldade ontológica, ligada ao sofrimento de existir e à miséria do corpo humano. Essa crueldade, entretanto, não exclui sistematicamente a primeira; pode eventualmente recorrer ao horror, ao sangue derramado, etc, mas não se detém nessa etapa provisória e limitada, porque é de essência metafísica. No teatro, segundo Artaud, pode haver sadismo, assassinatos, atrocidades, mas não necessariamente, e caso eles ocorram apenas abrem caminho a um mal muito mais necessário. Essa visão da condição humana em perspectiva de contínuo dilaceramento indica que a matéria e o corpo humano são essencialmente maus.
Nesta ótica, a crueldade significa a procura das contradições destruidoras através de recurso sistemático da dissonância. É, portanto, a expressão do conflito primordial e incessante que dilacera o homem e o mundo. O que a circunscreve na atualidade é o fato de que vivemos todos em contínuo mal-estar e, por conseguinte, precisamos de uma manifestação artística ou cultural que nos auxilie a superar nossa angústia, como as festas teatrais da Antigüidade ajudavam os homens a exorcizar seu medo dos deuses.
Tal procedimento relaciona-se ao paroxismo. Crise, delírio, furor, espasmo, dilaceramento, frénésie, exaltação violenta, transe: tudo isso leva a ver a crueldade como expressão de um paroxismo.
Evidentemente, não é este o sentido com que a crueldade/violência passa a elemento recorrente na cultura midiática contemporânea, embora, para expressar a
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crueldade, lance também mão do paroxismo (via redundância, repetição, via séries, via exagero – traços que se constatam facilmente em produtos televisivos e fílmicos, ou da imprensa escrita), para representar a “realidade” em seu caráter inelutável. A apresentação bruta da realidade brutal faz-se com a mediação de um discurso, sem metafísica, sem transcendência. A crueldade estaria então não só no tema, ou na realidade
a que remete, mas também na enunciação, expressa pelo explícito, não abrindo, quase sempre, espaço a comentários moralizantes, edificantes, ou religiosos.
Esse diapasão que certa cultura midiática explora aproxima-se, portanto, de um padrão que se quer cruel, aquele que pretende colar-se ao que é considerado “real”, atrelando-se a uma possível prova da “verdade”, que ultrapassa a linguagem, a serviço da ilusão extratextual. A linguagem busca reduplicar o observado, ou mesmo o vivido, negando, de certa forma, o caráter ficcional do relato. A ótica adotada parte de um a-priori, a “realidade” observada, que se impõe. A narrativa então é a representação documental desse “real”, em sua materialidade, cuja intenção reside em denunciar a miséria e o horror de um mundo fechado em si mesmo, que é violento e, conseqüentemente,
cruel. Exemplo típico do que falo é o filme Cidade de Deus, adaptação do romance homônimo de Paulo Lins, de 1997. Ambos relatam, com requinte de detalhes, a ação terrível que horroriza o leitor/espectador, mesmo aquele já acostumado
a esse tipo de relato, de longa tradição folhetinesca e melodramática, popularizada pela mídia. Em ambos dá-se a narrativa direta da crueldade, pelo paroxismo das imagens, pelo excesso, procedimento muito comum nos produtos midiáticos, que entendem a crueldade pelo explícito, pela repetição, que abdica, estrategicamente, da síntese. Busca-se um realismo atrelado ao efeito do real (para usar a expressão de Barthes), que privilegia a representação mimética da realidade referencializada e se encaminha para o documental (próximo do naturalismo tradicional), criando a ilusão da realidade. A brutalidade é tema e procedimento discursivo que põe em prática a sobre-exposição representativa, ligada ao paroxismo da realidade.
Algumas anotações tomadas ao filósofo Clément Rosset, lidas em O princípio da crueldade (2002), podem ajudar a complexificar a problemática da representação da crueldade-violência pela mídia. Propõe ele “o princípio da realidade suficiente”, que implica encontrar o segredo da própria realidade nela mesma, e não fora do real, que não é, portanto, insuficiente. A argumentação do filósofo francês considera a experiência imediata, desprezada, segundo ele, pela filosofia, que duvida da plena e inteira realidade do real. O caráter incompreensível do real vem corroborar com o pouco caso que a filosofia lhe dispensa. Se li corretamente, elege como ponto fundamental de seu raciocínio o “real”, enquanto um a-priori, um real que existiria enquanto dado empírico, exterior ao próprio sujeito.
A crueldade estaria relacionada ao registro do implacável e do desespero: “desespero
pelo qual não entendo uma disposição de espírito voltada para a melancolia, mas, longe disso, uma disposição absolutamente refratária a tudo o que se assemelha
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à esperança ou à expectativa” – assevera o filósofo (Rosset, 2002: 9). Deste modo, o caráter incompreensível da realidade reside, antes de tudo e principalmente, em seu caráter doloroso. O mais cruel da realidade não reside em seu caráter intrinsecamente cruel, mas em seu caráter inelutável, isto é, indiscutivelmente cruel (Rosset, 2002: 19). E acrescenta:
Por “crueldade” do real entendo, em primeiro lugar, a natureza intrinsecamente
dolorosa e trágica da realidade; (...) basta-me lembrar o caráter insignificante e efêmero de toda coisa do mundo. Mas entendo também por crueldade do real o caráter único, e conseqüentemente irremediável e inapelável, desta realidade – caráter que impossibilita ao mesmo tempo de conservá-la a distância e atenuar
seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela. Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e ensangüentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos ordinários (...). Assim, a realidade é cruel – e indigesta – a partir do momento em que a despojamos de tudo o que não é ela para considerá-la apenas em si-mesma. (...) o que é cruel no real é de certo modo duplo, por um lado ser cruel, por outro lado ser real. (...) Parece que o mais cruel da realidade não reside em seu caráter intrinsecamente cruel, mas em seu caráter inelutável, isto é, indiscutivelmente cruel (2002: 17-18).
Para o filósofo, o inelutável não designa o que seria necessário por toda a eternidade,
mas isto a que é impossível furtar-se no instante mesmo (a imediaticidade).
Diz o dicionário: Cruor, -oris: sentido próprio: carne crua, ainda em sangue; depois cruor especializou-se no sentido de sangue (derramado ou coagulado), charco de sangue (como em Cícero); sentido figurado: carnificina (como nas Metamorfoses, de Ovídio). Crudelis, -e (adj.): que gosta de fazer correr sangue, e daí: cruel, desumano, insensível. Crudus, -a, -um (adj.): 1. sangrento, ensangüentado, e daí: 2. cru, encruado,
não cozido; 3. que faz sangrar, correr sangue, daí: cruel, violento, desumano; 4. não digerido, que digere mal, que comeu demais.
Nesses sentidos que a lição filológica autoriza (estabelecida a partir da etimologia
evocada por Rosset), pode-se ressaltar a relação da “crueldade” com “sangue” (relembre-se a frase de Artaud, ou ainda a seqüência do cão cheirando o sangue ainda quente dos prisioneiros mortos no massacre do Carandiru, no filme homônimo de Babenco) e com a expressão clicherizada “verdade nua e crua”, aquela intrínseca à realidade nua e crua, em seu caráter inelutável, imediato, que se apresenta sem mediação, que a torne palatável, ou apaziguadora. O “real” apresenta-se de modo totalizante, impositivo, violento, sem consolos humanísticos, ou religiosos, sem transcendência, e que faz sangrar (vale aqui a metáfora).
Se no romance de Paulo Lins se constata a exposição midiática do aconteartigo
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cimento – o que sobredetermina o andamento veloz da ação, agregando-lhe um valor hiper-realista, como quer Wander Melo Miranda (2002: 185), por outro lado o olhar distanciado, mas de dentro do mundo fechado que é mimetizado, em sua imediaticidade, não é capaz de trabalhar a síntese, problemática de que também se ressente a versão cinematográfica de Fernando Meirelles e Kátia Lund. A ânsia de ser porta-voz da verdade que regula aquele mundo à parte faz proliferar, paroxisticamente,
as micro-narrativas que se sucedem quase num moto contínuo, a reproduzir séries de um mesmo modelo. Tanto no filme quanto no romance que lhe serviu de base, a linguagem está a serviço da ilusão extratextual e, em seu caráter tautológico, está presa à materialidade dos fatos. A redundância, presa ao objetivo de mostrar exaustivamente as imagens da violência, como a exigir “um pouco de sangue verdadeiro”, é procedimento discursivo recorrente e visa a denunciar a presença
ubíqua do crime organizado e a exclusão social, só possível de ser superada pela ação individual e exemplar do personagem “bom”, que, como prêmio, pode sair daquele círculo vicioso e determinista. Reafirma-se um sistema maniqueísta que estabelece e hierarquiza o bem e o mal, valores de um sistema centrado. O excesso de casos narrados é diretamente proporcional às manifestações da violência, que é essencializada, a indicar uma “verdade” que só comporta esse aspecto. A representação direta da realidade documentada barra o jogo ficcional. E nisto estaria a crueldade, a crueza dessa realidade, que é mostrada diretamente, brutalmente, com seus horrores e fealdades; por isso, pode ser “cruel”, ou seja, pode apresentar cruamente, com sangue
ainda, o que ele julga ser a verdade nua e crua. (A realidade mimetizada acaba sendo redutora desse mesmo real, como provam as reações em relação ao filme, de grande sucesso de público, que gerou, entretanto, mais preconceito e atitudes de exclusão, julgando que a Cidade de Deus fosse “apenas” o lado violento e bandido que a narrativa cinematográfica “cruelmente” revelou).
Essa superficialidade pitoresca de Cidade de Deus não é a opção de Contra todos, longa-metragem de estréia do cineasta Roberto Moreira, que chegou ao circuito comercial já coberto de prêmios, como o de melhor filme do Festival do Rio de 2004. O filme foi realizado com a associação à produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles. A unir os dois filmes, além da produção, que funcionou como marketing, o tratamento naturalista e a temática da violência da periferia urbana, dramatizada também com paroxismo, mas contraditoriamente com despojamento, opção estética que sublinha, em vez de aliviar, a ação cruel dos personagens. Essa ação articulada em “planos ágeis e cortes secos, tudo como se fosse flagrado por um documentário de observação bruta”, como observou Carlos Alberto Mattos, “se desenvolve numa montanha russa de surpresas, numa violenta espiral de enganos e vinganças” (Jornal do Brasil, 26/11/2004, Caderno B: 6).
O filme procura descrever como a violência se dissemina dentro de uma família
e acaba por levar à sua destruição. A ação se localiza em um bairro periférico
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de São Paulo porque ali há uma situação-limite: a presença do Estado é quase nula e a violência está completamente incorporada ao cotidiano. A narrativa atenua a idéia de pertencimento a uma sociedade; o Estado deixou de dar a esses cidadãos (os personagens) a segurança que, por definição, lhe toca garantir; debilitam-se os motivos de pertencimento que sustentam o contrato social, tendo por conseqüência a desconfiança extrema que origina a violência, provocando a guerra de todos contra todos. A violência urbana indica que o Estado não está em condições de garantir a paz entre os membros da sociedade (Sarlo, 2002: 208).
Neste sentido é que a ação dramática de Contra todos concentra-se praticamente ao microcosmo familiar, mas organicamente ligado à cidade. O filme tem a ambição de representar o processo que nega às personagens a oportunidade de transformação. São as conseqüências da segregação social: viver à margem embrutece e desumaniza. Essa situação de personagens sem saída, à mercê de um destino opaco e cruel, tem se revelado uma das vertentes atuais da ficção brasileira – declara Roberto Moreira numa entrevista. E completa: “Queria entender como as pessoas violentas vivem a violência. A violência individual leva à aniquilação de todos, de uma família inteira. O filme mostra a história de um matador, Teodoro, que destrói todas as suas relações com familiares e amigos por causa de sua ‘profissão’”.
O espaço não constitui um mero cenário, mas incorpora a barbárie desnorteada da periferia e do centro de São Paulo, como um meio orgânico em simbiose com os personagens (Coli, 21/11/2004, Mais!: 2). Ao partir de um foco bem concreto, ou seja, as relações familiares e de amizade tecidas por um grupo de baixíssima classe média numa região insegura da violenta São Paulo, como observa Coli, esse foco nunca sai do campo de visão; seu rigor evita mergulhos tangenciais na favela ou em ambientes de gente rica. Há mesmo um vírus abominável que corrói todas as relações. “Todas as relações estão rotas, podres, e os episódios da história surgem como as circunstâncias dessa decomposição”. A realidade inelutável impõe-se numa tensão permanente, feita de pulsões sem artifício, numa espécie de realismo, que, entretanto, o transcende. O tom realista e quase documental de Contra todos é a forma encontrada por Moreira para neutralizar os extremos emocionais dos personagens, sem que parecesse um “melodrama mexicano”, nas palavras do diretor. Outros pontos que contribuíram para o naturalismo da história são o uso da câmara digital nas filmagens, a ausência de gravações em estúdio e a construção de personagens e roteiro baseada na improvisação.
Daí vem a crueldade, pela representação da brutalidade crua, que é uma constante
sempre pressuposta. Cena exemplar, nesse sentido, é a que um açougueiro descreve como matar uma galinha para preparar um molho pardo. Mostra, em si mesmo, o modo de espichar pescoço e onde talhar para extrair o sangue. A frieza teórica da receita incorpora a violência num procedimento civilizado, mas não a elimina. A ferocidade não some com a civilização; dissimula-se apenas, metaboliartigo
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zada – ressalta Jorge Coli, em sua coluna “Ponto de fuga” (Folha de S. Paulo, Mais!, 21/11/2004: 2).
Na guerra de todos contra todos, nada pode ser injusto; força e fraude são duas virtudes cardeais. O filme abole regras, leis, justiça, para que melhor sobressaiam os desejos e os ímpetos humanos (lembra, com as devidas diferenças de contexto e propósitos, o filme A lei do desejo, chave na obra de Almodóvar: nada impede a lei do desejo, que comanda as ações humanas). As trajetórias de cada um tornam-se erráticas e seus cruzamentos desencadeiam catástrofes (Coli, idem, ibidem).
Ao naturalizar a violência e seu correlato a crueldade, com “um registro cru, direto, limpo, verdadeiro e defendendo um cinema menos teatral” (palavras do diretor no site de divulgação www.contratodos.com.br, acesso em 20/11/2004), Contra todos mostra a capacidade que a sociedade brasileira tem de reciclar a violência e como as imagens (tanto cinematográficas como televisivas, poderíamos acrescentar) contribuem para isto. “Quando a violência é reciclável, a sociedade pode sobreviver a ela, não cedendo sob seu peso acumulado à condição de que os heróis substituem os assassinos e os guerreiros” (Mongin, 1999: 121). Não se sai da violência exibindo as imagens ilusórias e efêmeras do êxito, como acontece em Cidade de Deus, com a imagem do bem encarnada pelo favelado negro e pobre que vira fotógrafo para documentar
aquela realidade terrível e cruel; o filme de Fernando Meirelles não resiste à cilada moralista (que será a tônica da série Cidade dos homens veiculada pela TV Globo e derivada do sucesso do filme, na tentativa de reciclar a violência, minimizada na vida dos adolescentes interpretados pelos mesmos atores de Cidade de Deus). Contra todos abdica dessa cilada, uma vez que o diretor se recusa a julgar moralmente os personagens, que podem ser contraditórios, não contaminados por bons sentimentos – o que reforça a crueldade. Numa narrativa que se funda num mal-estar crônico dos personagens, não há mesmo possibilidade de redenção para eles. A falta de cumplicidade
aliada ao registro cru da realidade implica também a negação ao público da empatia (o terror aqui não se alia à compaixão). Ao sublinhar tal aspecto associado ao sentido da descrença que alcança o sadismo, Marcelo Hessel observa: “Ao optar pela condenação de todos, Moreira nega ao público a empatia” (“Um bom filme enfrenta a realidade”, http://www.omelete.com.br, acesso em 18/11/2004). Esse aspecto anticatártico, estranho para uma história de traição e morte familiar, fratricida, em que a violência em seu paroxismo “não é apenas um dado social, mas um modo de vida” (como declarou o diretor do filme), contribui para a construção da crueldade, que advém da própria realidade inelutável, irremediável, em sua imediaticidade, a coisa mesma privada de seus ornamentos ordinários, como requer Clément Rosset (2002: 17). A opção pela câmera digital sem suporte aproxima o filme da linguagem do documentário, mais direta e menos teatral, e está a serviço da representação de uma realidade que é cruel e indigesta a partir do momento em que é despojada de tudo que não é ela, para considerá-la apenas em si mesma (Rosset, 2002: 18). “Sem
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nada de tese ou de demonstração, o filme não depende nem sequer de seu próprio enredo, concebido como uma espécie de ‘whodunit’ meio inútil”, segundo a assertiva de Jorge Coli (2004: 2).
A dramatização do princípio de crueldade como diretriz da organização formal pode ser entendido como violência sádica, agressividade, que as ações dos personagens
aliadas à contundência das imagens cruas, revelam, e, por outro lado, reside no caráter irremediável e inapelável da realidade que se procura representar, mas acaba pondo em questão os próprios limites da representação, ao mesmo tempo em que torna a realidade inelutável e impossível de ser atenuada ou afastada (Dias, 2004: 18). Essa realidade, em que se cruzam o espaço público e o espaço privado, apresenta-se como crua, indigesta, de que o filme de Roberto Moreira não pretende fugir. Se a violência pode ser assimilada como experiência, nada se assemelha à esperança e à expectativa de uma saída compensatória. As imagens não tornam a crua realidade palatável, apaziguadora (daí ser anticatártica).
O filme torna-se exemplar da crescente espetacularização midiática da crueldade,
ao explorar a violência e o excesso, que integram os processos de comunicação nos centros urbanos, marcados pela heterogeneidade que altera os modos de simbolização e ritualização dos laços sociais, cada vez mais afetados pelas redes comunicacionais e pelos fluxos informacionais e estreitamente ligados aos processos que corroem as identidades individuais e coletivas (Martín-Barbero, 2004: 258). Ao dramatizar a violência-crueldade na espessura do espaço, que é a cidade, produtos da cultura midiática contemporânea revelam o desordenamento da vida urbana, o desajuste entre comportamento e crenças, as novas formas de sentir, para além dos modelos racionais dos planejadores e dos poderes constituídos e seus controles sobre a vida nas cidades, que acabam possibilitando a existência de fissuras por onde eclode a desordem das experiências, impossíveis de administrar (Gomes, 1999: 210). Se a cidade foi, paradoxalmente, enquanto utopia e pesadelo, uma questão central da modernidade, continua a ser hoje o lugar das mutações para compreender a sociedade e o próprio homem. Como formula Martín-Barbero (2004: 278), nossas cidades são hoje o ambíguo, enigmático cenário de algo não representável nem a partir da diferença excludente e excluída do autóctone, nem da exclusão uniformizadora e dissolvente do moderno.
Renato Cordeiro Gomes
Professor da PUC-Rio
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artigo 2.indd 37 21/11/2006 14:10:45
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Filmografia
Carandiru, de Hector Babenco. 2003.
Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund. 2001.
Contra todos, de Roberto Moreira. 2004
Resumo
Toma-se como ponto de partida a naturalização da violência identificada à crueldade e alentada por sua desmesura nas mídias, afetando a ordem da representação, para indagar-se se não se está condenado a reciclar a violência quando não se logra sair dela. Busca-se apreender relações entre crueldade-violência e cultura midiática, sobretudo em produtos que dramatizam a espessura do espaço urbano, por sua vez afetado pelas redes comunicacionais e fluxos informacionais, como estuda Martín-Barbero. Considerando os sentidos de crueldade, do senso comum fixado pelas mídias, ao formulado por Clément Rosset, privilegia-se o filme Contra todos, de Roberto Moreira, e sua recepção mediada pela impressa escrita e pela internet. No limite, estão em pauta as relações entre mídia, crueldade-violência, cidade contemporânea e suas representações.
Palavras-chave
Crueldade; Violência urbana; Espetacularização midiática; Excesso; o filme Contra todos, de Roberto Moreira.
Abstract
Media hype and the order of representation: the film Contra todos
Taking as a starting point the banalization of violence vis-à-vis cruelty, fuelled by excessive media hype - which consequently affects the order of representation, this paper ask if we are not in danger of recycling violence, when we should be moving away from it altogether. It is worth capturing the relationship between cruelty-violence and mass media, particularly in products that aim to dramatize the urban space, which in turn is affected by communications networks and the flow of information, as studied by Martín-Barbero. Considering the meanings of cruelty, from those commonly understood and established by the media, against those defined by Clément Rosset, one should highlight the film “Contra Todos” directed by Roberto Moreira, and its reception by the written press and the Internet. Thus the main approach is focused on the relationship between cruelty-violence, contemporary city and its representations.
Key-words
Cruelty; Urban violence; Media hype; Excess; the film Contra Todos by Roberto Moreira.
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A tragédia de Beslan e a violência na televisão

A tragédia de Beslan e a violência na televisão

"E tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido." (Hannah Arendt)

Por Elson Rezende de Mello *

Beslan é o novo nome da tragédia. O massacre ocorrido na escola da cidadezinha russa da Ossétia do Norte, no começo de setembro, em que morreram em torno de 338 reféns (entre os quais 156 crianças, além de 31 dos seqüestradores, com mais de 700 feridos) é mais uma etapa na escalada da violência que vai construindo nossa insensibilidade. Os chechenos irromperam na escola com bombas e metralhadoras, empunhando sua antiga luta separatista, e novamente toparam com a fria determinação do presidente russo Vladimir Putin de não negociar. Como no episódio dos reféns no teatro em Moscou, há dois anos, Putin não quis negociar, com a mesma mortandade como resultado. Vontade e desespero assassinos de um lado, frieza e cálculo político do outro marcaram mais essa escaramuça que se projetou nas televisões do mundo.

Novamente, cenas violentas e de terror ganham as telas das televisões, com transmissão ao vivo e até com projeção de vídeo realizado pelos próprios seqüestradores, com imagens aterradoras. Imagens instrumentalizadas como parte da estratégia ideológica e política, não só pelo uso intencional feito dela pelos chechenos e pelo governo russo, mas também revestindo a cobertura jornalística.

As imagens da tragédia, ao percorrerem o mundo instantaneamente, se desgarravam de sua realidade, de sua referência mais imediata, e se projetavam simbolicamente no imaginário dos telespectadores, integrando-se ao que aí - principalmente depois do fatídico 11 de setembro de 2001 - se forja em torno do terrorismo. Perdiam seus significados mais diretos para se transformarem em significantes que dariam suporte às significações que o poder quer, que até os seqüestradores chechenos quiseram inicialmente, e que não conseguiram controlar.

Essa cadeia de significantes e significados que o grupo separatista buscou destapar, qual caixa de Pandora saiu de suas mãos, foi apropriada por outras forças de poder, identificadas no presidente Putin e contempladas nos interesses difusos de uma cruzada contra o terrorismo. Uma cruzada que prega o choque de civilizações, tendo à frente o presidente americano Bush. Essas forças estiveram sempre presentes nas transmissões das televisões e da cobertura da mídia em geral mundo afora, sinalizando o campo possível das interpretações.

A TELEVISÃO SERVE A DOR

A exposição da violência e do terror na televisão constrói o caminho ou a saída para a solução de força, ou até a justifica. Constrói a face política da violência ou a violência da política. E os telespectadores se acostumam, procurando sentidos atrás do que não tem sentido, no que é exposto para dar vazão ao irracional e que quer chegar até eles através do irracional, das emoções e sentimentos. Para isso a televisão é boa: esses são seus grandes momentos, a transmissão ao vivo e em tempo real de eventos grandiosos em suas conseqüências para muita gente (e, portanto, melhor audiência) ao redor do mundo. A televisão serve a dor, cutuca a emoção, flerta com o sensacionalismo. É quando ela exerce toda a sua potencialidade.

Mas o sentido, o pensamento não estão nestas imagens tremendas, nessa dor que vem da dor exposta. A significação maior é construída pelo poder e pela mídia, que moderna e indisfarçavelmente são inseparáveis.

Para tentar entender e até neutralizar os efeitos da violência e do terror expostos é imprescindível transcender as imagens da telinha, buscar contextualizar os acontecimentos. Não para justificá-los, mas para não embarcar nas interpretações construídas pelo poder e seus agentes. Essa violência sub-reptícia tem um poder de penetração ainda maior que as imagens que lhe servem de base.

As imagens de que a modernidade é pródiga caíram, há muito, nas malhas do poder. Em Beslan, essas imagens terríveis, principalmente por envolverem crianças, deram base para as ameaças do terror, ou foram diretamente instrumentalizadas para essas ameaças, e, citando reportagem da revista Carta Capital, "as potências inflam e distorcem a ameaça do terror para fazer dela um instrumento de poder".
Além do mais, essa mesma modernidade das imagens e dos recursos afins, de que os meios de comunicação se servem para se aproximarem da realidade, ou mesmo construí-la, conferem um caráter instantâneo à cobertura. Ele deixa os eventos ininteligíveis, e assim é necessário interpretá-los ao mesmo tempo em que são relatados.


As interpretações são dadas pelos jornalistas que estão no olho do furacão, e no caso da escola de Beslan, isso ficou patente. Os repórteres e fotógrafos entraram na escola junto com os soldados e as equipes de resgate, entrevistando crianças traumatizadas e parentes enlouquecidos pela dor. Antes, entre o evento e sua divulgação, havia algum tempo para pensar.

Na atualidade dessas imagens, inseridas nas redes de informação e nos fluxos de consumo, a busca da audiência a qualquer preço se impõe, e com isso se acelera o que é pertinente e é de bom senso transmitir. Há uma cultura que aparentemente vai se ampliando a cada transmissão mais ousada. Tragédias como as relatadas já tiveram seus antecedentes, que prepararam os telespectadores. Assim como cenas de Beslan, por sua vez, preparam para outras tragédias, ainda mais fortes. Já que os telespectadores vão se tornando insensíveis, para cativá-los como audiência serão necessárias mais cenas fortes - de violência e terror.

SOBRETUDO, É PRECISO PENSAR

Essa violência atual, que se transforma em tragédia pela magnitude que adquire, tem um ingrediente a mais que a amplifica: a cobertura dos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão. A presença da televisão inclusive distorce a compreensão do fenômeno que é narrado, e tem outra incidência na matriz da violência: muitos atos violentos são planejados nos mínimos detalhes para se refletirem na tela de televisão, onde adquirem sua plena realidade. Atos que existem pela e para a televisão.

Em Beslan, a ética jornalística também esteve em causa. Houve excessos na cobertura ao vivo e manipulação sobre o que era conveniente apresentar. A mídia perde seus limites, sob o pretexto da liberdade de informar, mesmo porque está difícil discutir os limites do que deve ou não ser transmitido. Pouco a pouco as fronteiras do permitido e do bom senso são forçadas, por variados interesses. Na sociedade do consumo e do espetáculo, o interesse maior reside na espetacularização de todos os temas ? e a violência se presta plasticamente a essa espetacularização.

Nisso, as imagens dos aviões atingindo as torres gêmeas em Nova Iorque, da guerra do Afeganistão, do Iraque, do conflito Israel-Palestina, e agora de Beslan, se transformam em símbolos a marcar nosso imaginário neste século e milênio que se iniciam. Assim como imagens da Segunda Guerra Mundial e do Vietnã, entre outras, forjaram o imaginário do século passado e fazem parte do álbum de figurinhas do que somos.

Por tudo isso, só a palavra é veículo de pensamento e nos permite fugir da unidirecionalidade do não-sentido das imagens, e principalmente das terríficas imagens de Beslan. Como escreve a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl em Videologias, livro que recolhe artigos seus e do jornalista Eugênio Bucci: "Ocorre que o tipo de produção de sentido que é próprio das imagens induz o sujeito a um modo de funcionamento psíquico que prescinde do pensamento. Brevemente, eu diria que isso ocorre porque o imaginário funciona segundo a lógica da realização dos desejos. Cada imagem apresentada proporciona ao espectador um microfragmento de gozo ? e a cada fragmento de gozo, o pensamento cessa".

Anti – Anti Evolucionismo

Anti – Anti Evolucionismo
Leif Grünewald 1


Resumo: Anti – Anti Evolucionismo, assim como no artigo de Clifford Geertz – Anti-anti
relativismo, reflete sobre posturas teóricas sem obrigatoriamente defendê-las. No mesmo
espírito, este artigo tem como objetivo refletir acerca das obras clássicas do evolucionismo
escritas por Morgan, Tylor e Frazer, sem obrigatoriamente defender a corrente evolucionista.

O título deste trabalho não é por acaso. Assim como no artigo do saudoso
professor Clifford Geertz intitulado “Anti – Anti Relativismo”, no qual Geertz
ataca as posições teóricas anti-relativistas sem obrigatoriamente defender o
relativismo, neste tentarei através de comentários rabugentos a propósito de
pontos que freqüentemente são mal-compreendidos quando a análise
acadêmica retorna aos preceitos de uma teoria evolucionista, re-iluminar o
horizonte deste movimento teórico. Devo confessar que não é a minha intenção
resgatar qualquer resquício de uma antropologia evolucionista, uma vez que
através de todos esses anos, já foi exposto pelos antropólogos de plantão à
impossibilidade e a parcial incoerência deste momento de produção intelectual.
Impregnado da certeza transmitida pelo comentário do professor Marshall
Sahlins, ao afirmar que ao que concerne a antropologia só existem duas
certezas, a longo prazo: a primeira é a de que estaremos todos mortos; mas a
outra é a de que estaremos todos errados. O objetivo deste é,
verdadeiramente, um pedido de desculpas, especialmente a James Frazer,
Lewis Morgan e Edward Tylor, por durante todo este tempo acusarmos
1 Leif Grunewald é discente de Ciências Sociais da UFES. É bolsista do NAV - Núcleo
Audiovisual para os cursos de Filosofia e Ciências Sociais. Também desenvolve – em conjunto
com a Profª Drª Mirela Berger – atividades de estudo e pesquisa em teoria antropológica,
antropologia visual, identidade, representação e fotografia.
GRÜNEWALD, Leif. Anti anti-evolucionismo. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências
Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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veemente as teorias destes autores de essencializantes, ou de
irremediavelmente incoerentes, sem estarmos imerso plenamente na chama do
contexto histórico na contribuição antropológica que elas forneceram. Assim, é
nesse espírito reconciliador que ofereço à seguinte pasticherie2 como um
sincero pedido de desculpas.
Um dos principais argumentos contra a coerência das culturas e a
impossibilidade de se implementar uma análise sistemática e integradora das
mesmas através da etnografia, é que, assim como em um certo rio filosófico, as
culturas estão sempre mudando.
O fluxo é de tamanha intensidade que é impossível mergulhar duas vezes na
mesma cultura, nem ao menos tentar traçar uma linha progressiva cujo
principal objetivo seria indicar a trajetória obrigatória deste rio cultural.
Entretanto, a não ser que alguma identidade e consistência sejam
simbolicamente impostas às práticas culturais, e ao próprio rio que estão
imersas, se torna inviável tanto a possibilidade de se falar em sociedade
quanto a capacidade dos antropólogos e das pessoas em geral de manterem a
sanidade. Dessa forma, a única alternativa para a descrição de qualquer “rio
cultural” consiste na sua comparação com a ordem significante de todos os
outros rios.
A mesma lógica rege a etnografia, já que nenhuma boa etnografia é
autocontida. Implícita ou explicitamente, ela é sempre um ato de comparação.
È justamente devido a esta comparação que a descrição etnográfica torna-se
objetiva. Não no sentido ingênuo de uma construção isolada - justo o contrário,
2 A palavra pastiche descreve um gênero artístico – e também literário. A ela compreendem 2
significados: o primeiro corresponde ao termo inglês hodge-podge , cunhado na Inglaterra no
fim do século XIX para designar a mistura de diversos ingredientes. Etimologicamente se refere
à versão francesa do termo greco-romano pasticcio - uma referência a certo tipo de torta feita
com diversos ingredientes; o segundo significado compreende a técnica literária utilizada para
imitar em tom jocoso – mas não desrespeitoso - um outro estilo. Emprega-se aqui o primeiro
significado.
GRÜNEWALD, Leif. Anti anti-evolucionismo. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências
Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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ela ascende a uma compreensão universal na medida em que faz incidir sobre
a percepção de qualquer sociedade as concepções de uma outra cultura
distinta.
Marcando o principio dessas tentativas analíticas integradoras, pelos fins do
séc. XVIII, uma série impressionante de informações razoavelmente fiéis sobre
os costumes dos povos “selvagens” ou “bárbaros”, isto é, povos mais ou menos
diferentes dos ocidentais “civilizados”, estava já acumulada. Os missionários
jesuítas, para citar um exemplo, deixaram um volumoso material sobre as
tribos indígenas da América do Norte oriental e central no século XVII.
Cientistas ocidentais começaram a sistematizar esse material e, assim, foram
levados a comparar os diferentes conjuntos de costumes e conjeturar sobre a
origem e a evolução da cultura e da sociedade em geral. A maior parte do
trabalho pioneiro neste campo foi feita por filósofos sociais, como Hobbes,
Locke, Voltaire e Rousseau. Logo no começo do século XIX, fundaram-se
sociedades científicas na Europa e nos Estados Unidos para o estudo da
“Etnologia”. Organizaram-se mostruários de museus e lançaram-se publicações
científicas. Grupos e indivíduos foram levados para países ultramarinos a fim
de serem exibidos nas cortes reais, nas feiras e exposições. O interesse pela
Antropologia propagou-se a quase todos os países do mundo por intermédio de
organizações oficiais, sociedades científicas, museus, cientistas e leigos
interessados.
Logo depois do meado do século, as publicações antropológicas traziam
seções separadas ou listas de livros sobre “Antropologia Física” (ou
simplesmente “Antropologia”), “Etnologia” (para os interessados em informes
sobre diferentes costumes), “Linguística” (para os interessados em linguagem)
e “Arqueologia”. A seção de Etnologia acabaria sendo subdividida em
“Religião”, “Artes”, “Vida Econômica” e “Organização Social”.
A grande era da Terra e do homem tornou-se reconhecida e cientificamente
aceita por volta de 1840. Até então os arqueólogos tinham que adaptar os
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Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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locais conhecidos, como as ruínas de Stonehenge, e vários utensílios toscos
de pedra, que iam sendo descobertos com a construção de estradas e outras
escavações, à teoria que atribuía a criação da Terra a uma época
relativamente recente. Uma datação amplamente aceita, calculada pelo Dr.
John Lightfoot, da Universidade de Cambridge, em 1654, situava esse
acontecimento no dia 23 de outubro do ano 4004 A.C. às 9 horas da manhã.
Também os geólogos, entre outros, reconheciam a vasta idade da Terra e
apresentavam em ordem cronométrica, inclusive a seqüência dos períodos
glaciais, abrangendo aproximadamente o período do desenvolvimento primitivo
do homem. Uma comissão científica do governo dinamarquês já havia
estabelecido (1836), através de pesquisas feitas em sambaquis, uma
seqüência de materiais das idades da Pedra, do Bronze e do Ferro. Uma seca
ocorrida entre 1853 – 1854 abaixou o nível dos lagos suíços e revelou os
esteios e outros restos de vilas lacustres da Era Neolítica (Idade da Pedra
Polida). Examinando utensílios da Era Paleolítica (Idade da Pedra Lascada) e
esqueletos fósseis, os antropólogos se arriscaram a recuar um milhão de anos,
ou mais.
Talvez fosse inevitável, em vista da profunda impressão da teoria da evolução
orgânica no mundo científico que o pensamento dos fins do século XIX
relativamente a cultura e a sociedade fosse monopolizado por teorias análogas
de evolução social e cultural. Essas teorias surgiram facilmente de idéias
anteriores, nas quais informações sobre povos não ocidentais eram utilizadas
para explicar o progresso desde o selvagem primitivo ao homem europeu
educado. Partia-se do pressuposto de que o comportamento dos intelectuais
do século XIX (os próprios autores da teoria) representava o grau mais alto da
escala evolutiva, de modo que os costumes dos outros povos que diferiam
desse comportamento representavam “sobrevivências“ de estágios primitivos
de “barbarismo” e, abaixo disso, de “selvageria”. Essa interpretação tentadora,
mas muito simplificada da história geral do desenvolvimento e diferenciação
cultural foi refutada pelos antropólogos no início do século XX. O trabalho
científico de campo tornou-se preocupação crescente do antropólogo
GRÜNEWALD, Leif. Anti anti-evolucionismo. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências
Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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profissional. Em 1879, o governo norte-americano criou um “Departamento de
Etnologia Americana”. A criação desse órgão é um dos marcos do
desenvolvimento de um grupo profissional de cientistas dedicados unicamente
à Antropologia, intitulando-se antropólogos e fazendo, na linguagem da ciência,
“trabalho de campo”. O registro antropológico não podia ficar mais na
dependência de observações causais de viajantes ou de trabalhos acidentais
de funcionários, missionários, mercadores e outros.
Quando tomou forma a primeira teoria antropológica referente à cultura, o seu
grande objetivo era estabelecer, se possível, grandes “leis” como as que
constituíam marcos em outras ciências, sobretudo nas ciências exatas: a lei de
empuxo do grego Arquimedes: as leis Newtonianas que haviam revolucionado
as bases da física clássica e a lei da hereditariedade de Mendel. Os
pensadores dos princípios do século XIX buscaram particularmente alguma
idéia ou seqüência que pudesse explicar de alguma forma, o panorama geral
do “progresso” humano, alicerçado sobre as concepções de indivíduo e
pessoa, que passavam aquém da complexidade significativa de categoria
nativa, em voga na época.
O norueguês Henrik Steffens, por exemplo, frequentemente tachado como o
mais excêntrico e o pioneiro do grupo formulou uma noção de raça fundada
sobre metáforas e abstrações a respeito da definição racial a partir de 4
elementos químicos essenciais e 4 sistemas corporais. Em decorrência dessa
combinação, estaria determinado 4 possíveis padrões de comportamento,
transformando o compasso da diversidade cultural em uma escada evolutiva,
porém sem nunca ter desassociado natureza de cultura. Pela lógica de
Steffens, quanto mais a raça humana pudesse produzir, mais a natureza
poderia produzir, uma vez que a acentuação desta produção é a recapitulação
do propósito da humanidade. A noção de raça serviu meramente como o
veículo de evolução cultural, o verdadeiro propósito de toda humanidade.
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Carl Gustav Carus, profundamente inspirado pelas idéias de Steffens, delimitou
um sistema racial cuja classificação se dava pelo humor específico de cada
grupo e no agrupamento racial segundo a luminosidade, criando a divisão
linear em grandes grupos: diurnos, crepúsculo oriental, crepúsculo ocidental e,
por ultimo, o noturno. O progresso marchava de leste para oeste, assim, o
comportamento do homem europeu, intelectual, recapitulava estágios de
desenvolvimento característicos de seus ancestrais mais primitivos. Somente
as pessoas do dia possuíam alguma habilidade real de conceber idéias
demasiadamente profundas relacionadas a temas como beleza, amor e
verdade. Com o passar do tempo, segundo Carus, a luz e o poder se
espalhariam sobre todas as partes da terra.
Razões similares dominaram o trabalho de Gustav Klemm em seu trabalho
dividido em 10 volumes chamado General Cultural History of Humanity (1843)
trabalho hoje prontamente reconhecido como a primeira exposição
antropológica do conceito de cultura. Invejado por seus contemporâneos H.L.F
Pitt Rivers e E. B. Tylor, Klemm possuía um vasto acervo etnológico que o
levou a formulação de um conceito de raça reduzido a polaridades. Segundo
ele, existem 2 tipos de pessoa – ativas, ou masculinizadas, e passivas, ou
feminilizadas. Assim como em um casamento. Cada parte necessita de seu
pólo opositor para se completar. O forte, entretanto, dominava plenamente o
fraco. Por esta fórmula, a civilização européia necessariamente tomaria todo o
mundo, por estar a frente de todos os estágios culturais. Da “selvageria”,
passando pela “domesticação”, até chegar a “liberdade”.
Pela década de 1860, essas teorias se canalizavam todas em uma
estruturação evolucionária. Os estudiosos aplicavam por analogia à cultura e à
sociedade a mesma linha geral que Darwin havia postulado em sua Origem
das Espécies (1859) para a evolução orgânica. Aqui, aparentemente estava
uma grande lei, que poderia explicar todo o desenvolvimento do costume. Temse
dito frequentemente que na atmosfera de meados do século XIX, quando a
evolução biológica obtinha aceitação como uma nova “grande idéia” crítica,
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Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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uma teoria referente a cultura e a sociedade não poderia ter tido nenhuma
outra ênfase exceto a evolucionária. Este período de intensificação do
processo colonizador localizado sobretudo no século XIX deu-se forjado sobre
a doutrina fundamental do racismo que consistia sobretudo na consciência da
identidade cultural própria de cada povo, a introdução de graus hierárquicos
nestas culturas e, conseqüentemente, o estabelecimento de relações de
domínio entre esses povos. À afirmação da superioridade de certas civilizações
sobre as outras se adicionou, nos séculos XIX e XX, as teorias que assimilam
esta hierarquia a um determinismo natural fundamentado no próprio conceito
de raça que recheava qualquer formulação antropológica construída na época.
Assim, o vocabulário característico dessa interpretação torna-se possível o
reconhecimento quase imediato. Além do termo chave evolução, há uma
preocupação com origens e estágios. Elementos de culturas modernas que
parecem persistir do passado distante são “sobrevivências”. Se bem possa
haver uma “degeneração”, na qual o processo “evolucionário” sofre recuos, a
tendência dos “organismos” culturais e sociais é ascendente do “simples” para
o “complexo”, A grande estruturação dos estágios é tríplice: selvageria,
barbarismo e civilização; os dois primeiros, representantes não apenas no
passado, mas também em culturas contemporâneas “primitivas” que ainda não
evoluíram além de um ou outro desses estágios.
Erroneamente classificados como meros compiladores cuja produção nunca
passou pelo crivo do trabalho de campo e herdeiros de Bachofen, Maine e
McLennan e seu Primitive Marriage (1865) . Morgan, Frazer e talvez, o mais
brilhante dentre todos eles, Tylor, consolidaram-se como os expoentes de uma
teoria antropológica evolucionista devido ao interesse que foram capazes de
despertar nos teóricos europeus. Morgan desenvolveu exaustivamente as
bases para o que viria a se tornar a escola antropológica americana,
profundamente arraigada sobre a formulação teórica de conceitos para as
abstrações relativas aos dados recolhidos durante o trabalho de campo que,
até então, continham todos os trabalhos antropológicos cujos objetivos eram
uma reconstituição objetiva do passado.
GRÜNEWALD, Leif. Anti anti-evolucionismo. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências
Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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A orientação evolucionária do século XIX é muitas vezes referida em
retrospecto como uma espécie de “super-história” (teoria do progresso) e o
“sistema cultural significativo” (Keessing, 1972:257). Este estudo tende sempre
a ser a totalidade da cultura a partir da origem – o que levou o evolucionismo a
duras críticas, já que esse ponto de vista quase não leva em conta os fatos
específicos referentes as culturas com sistemas específicos e locais, por insistir
no emprego de um método comparativo grosseiro para extrair supostas
“sobrevivências” dos modernos acervos de costumes em todo o mundo e em
seguida dispunha-os arbitrariamente em seqüência de estágios
regressivamente até às origens. A evolução, então, era um fio unilinear através
de toda historia cultural, já que teria raízes em uma vaga unidade psíquica pela
qual todos os grupos humanos teriam potencialmente a mesma capacidade de
desenvolvimento evolucionário, embora alguns estivessem adiantados devido a
fatores geográficos ou climáticos.
Cada linha descrita pelos teóricos evolucionistas apenas reflete o momento
político descrito em sua época. A criação de um outro, seja-o “Metafísico” como
Comte afirmava, ou “Selvagem”, expressa, essencialmente, a criação de um
Outro, que não está necessariamente localizado em uma categoria oposta a
categoria do “Eu” antropológico. Repousa, intacto ou não, na mesma categoria,
apenas em um lado diferente, para que do diálogo entre a “tese antropológica”
e a “antítese nativa”, mesmo buscando-se o entendimento a partir da autoreferência,
floresça o entendimento de algo novo, e de certa forma
independente a ambos, a alteridade.
O difícil acesso às obras destes antropólogos devido a erudição imensa e a
longa extensão e numerosos volumes, além do pesadelo lingüístico derivado
da carência de traduções das obras destes pensadores contribuí para o
surgimento de um império “logocêntrico”. Frazer no prefácio de The Golden
GRÜNEWALD, Leif. Anti anti-evolucionismo. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências
Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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Bough, se declara particularmente familiar com a “hidra do erro”3 residente que
poderia surgir em sua análise antropológica, ao esperar que cortando uma de
suas cabeças, se preveniria do ataque de uma outra cabeça, ou até mesmo do
ataque da mesma, que certamente renasceria, sendo a única coisa que
aguardava era o perdão de seus leitores. Frazer ainda contava com a candura
e a inteligência de seus críticos para corrigir as confusões que provavelmente
restariam ao longo de seu trabalho fruto da construção de suas declarações
fundadas sobre inúmeras comparações hipotéticas.
Frazer, posteriormente na mesma obra, reconhece nossa dívida com os
“selvagens” já que as únicas características atribuídas a eles eram denúncias
ridicularizando-os, quando a eles devemos toda nossa sapiência e nosso
conhecimento intuitivo. Todo o conhecimento tem sido passado de mãos em
mãos durante o passar dos anos, porém a memória dos que o construíram é
seletiva, sugerindo a espontaneidade do surgimento de todo o conhecimento
no mundo.
Na figura do antropólogo Americano Lewis Morgan repousa o direito de ser
considerado o precursor do trabalho de campo. Ainda que Bronislaw
Malinowski tenha sido o primeiro a, de fato, sistematizar o método etnográfico e
nos atentar para a importância do trabalho de campo, além da interpretação
dos dados recolhidos a partir de uma observação compreensiva, Morgan foi o
primeiro a, em 1859, estudar várias “tribos” nos estados americanos de
Nebraska e no Kansas e a publicar o resultado de sua “etnografia” no Indians
Journal 1859-1862. Mesmo que as conclusões a respeito dos iroqueses em A
sociedade antiga sejam equivocadas (como Boas demonstrou), não há como
negar tal fato ao antropólogo Americano.
3 Alusão a Hidra de Lerna, animal mitológico grego que possuía corpo de dragão e diversas
(7,8,9, e até 10) cabeças que se regeneravam toda vez que uma delas era cortada.
GRÜNEWALD, Leif. Anti anti-evolucionismo. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências
Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
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Lewis Morgan, na década de 1840 desenvolve e estabelece um grupo
chamado “Grande Ordem dos Iroqueses” incentivando um melhor
conhecimento desta tribo e a garantia de sua permanência, incentivo este que
culminaria na campanha contra a Ogden Land Company, na qual acreditava-se
estar privando os Índios Seneca de suas terras, Da briga com a Ogden Land
Company floresceria uma intensa amizade com Ely S. Parker, um dos índios
Seneca.
Esses pontos parecem ter escapado da análise dos críticos mais ferrenhos a
tese evolucionista quando colocaram a produção do trabalho sistemático de
campo como rito de passagem para o ofício antropológico. Esqueceram de ver
que, apesar das insistentes críticas, a manutenção de uma antropologia
organizada lingüisticamente em termos como “eu” e “você”, “aqui” e “ali”,
“agora” e “então” transmite o mesmo sentimento opressor atribuído ao
evolucionismo, uma vez que aquele que usa o pronome “eu” constitui dessa
maneira o espaço, o tempo e os objetos de seu ponto de vista – egotismo e
vontade de poder, afirmando sua autoridade constitutiva do mundo.
Agradecimentos à turma de Biblioteconomia e aos calouros 2007/1 do curso de Ciências
Sociais da UFES, Mãe, Pai e Buio. Ao Tuchinho, pois é a lembrança carinhosa que sempre a
me ancora neste mundo, Ao grupo Etnocidades e sobretudo aos professores Sandro José da
Silva e Mirela Berger, pois sem a ajuda, debates, carinho e a orientação deles em todos os
momentos em que cada um desses pés queria sair do chão, nenhuma dessas linhas teria sido
escrita. Ao professor Claudio Marcio, sempre pelas preciosas indicações e - imensamente - a
Isadora, dádiva de Ísis, pela eterna cumplicidade.
GRÜNEWALD, Leif. Anti anti-evolucionismo. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências
Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.02, v.1, Outubro. 2007. pp.243-53.
253
Referências
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HERSKOVITS, M J. Antropologia cultural: man and his works. São Paulo:
Mestre, 1963-69.
KESSING, F. M. Antropologia cultural. A ciência dos costumes. Rio de Janeiro:
Fundo de Cultura, 1972.
LINTON, Ralph. Cultura e personalidade. São Paulo: Mestre Jou, 1979.
MORGAN, L. M. Ancient Society. Arizona: University of Arizona Press, 1985.
SAHLINS, M. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
MORGAN, Lewis. Spartacus educational. Disponível em: http://www.spartacus.
schoolnet.co.uk/wwmorganL.htm . Acesso em: 11/07/2007.

Ciberantropologia.

Ciberantropologia. O estudo das
comunidades virtuais
Adelina Maria Pereira da Silva
Universidade Aberta

Índice
1 Introdução 2
2 Ciberespaço / Cibercultura 3
3 Ciberantropologia 4
4 Comunidades Virtuais – as salas de Chat 9
5 Conclusão 18
6 Bibliografia 20
Mestre em Relações Interculturais pela Universidade Aberta.
2 Adelina Maria Pereira da Silva


1 Introdução
Cada vez mais se verifica a informatização da sociedade. Basta
observar com atenção a publicidade exterior para constatar, que a
maioria, apresenta um endereço relacionado com sites, na Internet.
Esta informatização envolve transformações culturais, que, a
pouco e pouco, se vão manifestando no comportamento dos indivíduos.
A cultura, normalmente, é tida como um padrão de desenvolvimento,
que se reflecte nos sistemas sociais de conhecimento,
ideologia, valores, leis e rituais quotidianos.
A Antropologia serve de base para o estudo da cultura de
uma organização ou comunidade. O antropólogo deve ter um elevado
grau de relativismo cultural, de modo a conseguir neutralizar
eventuais distorções provocadas pelo seu contexto cultural de origem.
A experiência da alteridade leva a perceber a própria cultura
e a cultura do outro, através do reconhecimento de que ela nada
tem de natural, é sim essencialmente formada de construções sociais.
A cultura pode ser entendida como um sistema simbólico, tal
como a arte, o mito, a linguagem, na sua qualidade de instrumento
de comunicação entre pessoas e grupos sociais, que permite a elaboração
de um conhecimento consensual sobre o significado do
mundo.
Segundo Levy (1998), o ciberespaço representa um estágio
avançado de auto-organização social, ainda que em desenvolvimento
- a inteligência colectiva - . O Ciberespaço aparece como
um Espaço do Saber, em que o conhecimento é o factor determinante
e a produção contínua de subjectividade é a principal actividade
económica. O ciberespaço surge, assim, como o quarto
espaço antropológico: o primeiro, a terra; o segundo, o território;
o terceiro, o mercado; o ciberespaço, o último.
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Ciberantropologia 3
2 Ciberespaço / Cibercultura
Levy define ciberespaço e cibercultura da seguinte maneira: por
ciberespaço entende que é um novo meio de comunicação que
surgiu da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica
não apenas a infra-estrutura mundial da comunicação digital,
mas também o universo oceânico de informações que ela
abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam
esse universo. Quanto ao neologismo "cibercultura", especifica o
conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, atitudes,
de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem
juntamente com o crescimento do ciberespaço. É precisamente
neste ciberespaço que se criam comunidades virtuais, componentes
da cibercultura. Formam-se a partir de interesses comuns entre
pessoas e organizações e têm várias formas de expressão, dentre
as quais se vulgarizaram as salas de chat.
As redes telemáticas, nas quais se inclui a Internet, mais do
que um meio de comunicação, afiguram-se um espaço de sociabilidade,
no interior do qual se desenvolvem práticas sociais, culturalmente
determinadas e relativamente autónomas.
A virtualidade, via de regra, é associada a uma "não-realidade",
concepção que não é das mais adequadas para se pensar o Ciberespaço.
Vários pensadores argumentam que o virtual não se opõe
ao real, mas sim que o complementa e transforma, ao subverter as
limitações espaço-temporais que este apresenta. Desta forma, o
virtual não é o oposto do real, mas sim uma esfera singular da
própria realidade, onde as categorias de espaço e tempo estam
submetidas a um regime diferenciado. Esta forma de conceber
o virtual ( o “real virtual”) é fundamental para se tratar de uma
das dicotomias problemáticas dentro do campo da Cibercultura -
a oposição entre o on-line e o off-line.
A partir destas considerações, o termo "Ciberespaço"pode ser
definido como o locus virtual criado pela conjunção das diferentes
tecnologias de telecomunicação e telemática, em especial, mas
não exclusivamente, as suportadas por computador. Contudo, a
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4 Adelina Maria Pereira da Silva
Internet, não é a única instância de Comunicação Mediada por
Computador (CMC), e por extensão, de suporte ao Ciberespaço.
O Ciberespaço, assim definido, configura-se como um locus
de extrema complexidade e difícil compreensão. A sua heterogeneidade
é notória quando se percebe o grande número de ambientes
de sociabilidade existentes, no interior dos quais se estabelecem
as mais diversas e variadas formas de interacção, tanto entre
Homens, quanto entre Homens e máquinas e, inclusive, entre máquinas.
Assim, o conceito de Cibercultura abarca o conjunto de fenómenos
sócio-culturais que ocorrem no interior deste espaço ou
que estão a ele relacionados. Escobar (1994), percorrendo um
caminho inverso chega ao Ciberespaço através da noção de Cibercultura.
Segundo afirma, engloba uma série de manifestações
contemporâneas, não apenas as relacionadas com as CMC’s, mas
também as referentes ao relacionamento do homem com a tecnologia
e, em especial, a biotecnologia acrescentando a noção de
tecno-socialidade.
Em qualquer caso, a compreensão do Ciberespaço pressupõe
que este não seja observado como um objecto no sentido estrito
do termo, mas sim como um espaço frequentado por personas que
constituem localidades e territorialidades. MacKinnon (1995) utiliza
o conceito de persona, para designar as identidades construídas
pelas pessoas no interior do ciberespaço.
3 Ciberantropologia
Considerado um espaço frequentado por personas, a observação
antropo- analítica volta-se para a compreensão das peculiaridades
dos grupos que se constituem no seu interior. A análise poderá ser
conduzida a dois níveis: interno e externo.
O interno considera o Ciberespaço como um "nível"de realidade
substancialmente específico e diverso dos restantes, dentro
do qual se desenvolvem fenómenos peculiares, que devem ser
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Ciberantropologia 5
abordados com um referencial teórico adequadamente desenvolvido
ou adaptado.
O externo considera-o como mais um aspecto da cultura contemporânea
estando nela inserido e confrontando a reflexão antropológica
com o mesmo tipo de problemas.
Assim, a abordagem externa efectua a Antropologia do Ciberespaço
considerando-a como mais um aspecto de outras realidades,
enquanto que a abordagem interna tenta estabelecer uma
Antropo-logia no Ciberespaço, uma Ciberantropologia.
De qualquer modo, a pesquisa etnográfica em ambientes de
sociabilidade virtual poderá contribuir para o enriquecimento da
reflexão sobre as sociedades complexas, visto que o Ciberespaço
pode ser compreendido como uma das esferas constituintes da
mesma. O Ciberespaço oferece um cenário, se não equivalente,
pelo menos bastante semelhante ao das sociedades complexas, de
cuja reflexão, no campo da Antropologia, já resultou um referencial
teórico bastante desenvolvido. Ao debruçar-se sobre as cidades
e sobre o mundo ocidental, a Antropologia apercebeu-se de
um impasse: como estranhar um "outro"que está aparentemente
tão próximo?
Para Levy (1994), o espaço da rede suporta uma realidade social,
constituída por um conjunto de actividades coordenadas e
construída por diversos interlocutores dispersos pelo espaço físico.
Ou seja, caracteriza-se pela multiplicidade dos sujeitos envolvidos,
pela coordenação que existe entre eles e, sobretudo, pela
convergência de actividades no sentido de alcançar um sentido comum.
Para que um sistema possa ser usado como ferramenta de comunicação,
no ciberespaço, deve:
• ser de fácil acesso;
• ser fácil de utilizar;
• ser capaz de filtrar e seleccionar informação relevante;
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6 Adelina Maria Pereira da Silva
• permitir o processamento de informação em tempo real (online).
Vive-se a Era Digital, marcada pela revolução tecnológica que
está a mudar as formas de pensamento, os costumes e os hábitos.
A evolução das redes e a utilização cada vez maior da Comunicação
Mediada por Computador (CMC), no dia-a-dia, está a fazer
com que a sociedade readeque os hábitos dos indivíduos tendo em
conta, por um lado, a expansão quantitativa da informação, e por
outro, a distribuição da mesma. Caminha-se para o que hoje se
chama de sociedade de informação ou auto-estradas da informação.
A está em vias de se tornar um fenómeno de massas, uma
vez que toda a economia, cultura, saber, etc. passam por um processo
de negociação, distorção, apropriação do ciberespaço - nova
dimensão espaço-temporal – (Lemos, s/d).
Na perspectiva da Antropologia, a dimensão simbólica da cultura
é concebida como capaz de integrar todos os aspectos da
prática social. Os antropólogos tenderam sempre a conceber os
padrões culturais não como um molde que produziria condutas
estritamente idênticas, mas antes como regras de um jogo, isto
é, uma estrutura que permite atribuir significado a certas acções
e em função da qual se jogam infinitas partidas (Durhan, cit. in
Fleury, 1987).
No estudo de um cultura, existem três perspectivas a ter um
atenção:
• Cognitivista – a cultura é definida como um sistema de conhecimento
e crenças compartilhados; é importante determinar
quais as regras existentes numa determinada cultura
e como os seus membros vêem o mundo;
• Estruturalista – a cultura constitui-se de signos e símbolos.
É convencional, arbitrária e estruturada, constitutiva da acção
social sendo, portanto, indissociável desta;
• Simbólica – define cultura como um sistema de símbolos
e significados partilhados que necessita de ser decifrado e
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Ciberantropologia 7
interpretado; as pessoas procuram decifrar a organização,
tendo em vista adequar o próprio comportamento.
Para além da perspectiva de análise, a cultura de uma comunidade
pode ser apreendida a vários níveis:
• A nível dos artefactos visíveis - ambiente, arquitectura, padrões
de comportamento visíveis, por exemplo -;
• A nível dos valores que ditam o comportamento das pessoas
- valores que regem o comportamento das pessoas, por
vezes, idealizações ou racionalizações -;
• A nível dos pressupostos inconscientes - aquilo que os membros
do grupo percebem, pensam e sentem -.
Para criar e manter a cultura, a rede de concepções, normas e
valores têm de ser afirmados e comunicados aos membros da comunidade
de uma forma tangível, tal como são as formas culturais,
ou seja, os ritos, rituais, mitos, histórias, gestos e artefactos.
O rito, em especial, configura-se como uma categoria analítica
privilegiada para desvendar a cultura de uma comunidade.
As pessoas expressam os símbolos rituais através de diversos fenómenos
- gestos, linguagem, comportamentos ritualizados, que
podem ser classificados em diversas taxonomias, por exemplo:
• Ritos de passagem;
• Ritos de degradação;
• Ritos de confirmação;
• Ritos de reprodução;
• Ritos para redução de conflitos;
• Ritos de integração.
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8 Adelina Maria Pereira da Silva
Assim, os ritos são facilmente identificáveis, porém de difícil
interpretação.
As comunidades virtuais são agregações sociais que emergem
da Rede quando existe um número suficiente de pessoas, em discussões
suficientemente longas, com suficientes emoções humanas,
para formar teias de relações pessoais em ambientes virtuais,
alterando de algum modo o EU dos que nele participam (Rheingold,
1994)
A existência de uma comunidade virtual depende de três factores:
computador, linha telefónica (ou cabo) e software.
A tradicional comunicação em suporte papel e fala natural, há
muito foi mediada pela electrónica: primeiro através do telex, telefone
e fax; mais recentemente através do e-mail ou mesmo através
do chat, que permitem a comunicação simultânea e dialogante
on-line.
O termo comunidade virtual sugere aparentemente uma comunidade
que só existe no ciberespaço. De qualquer modo, implica
uma nova forma de ligação que passa a existir no meio
de, ou entre, comunidades no espaço geossocial real, ligandoas
e estendendo-as, trazendo mesmo comunidades reais para o
seu contacto. Nesse sentido, a Net representa uma analogia do
mundo, ou seja, é um lugar onde se constrói um espaço topográfico
(interface), com lugares (sites) e os caminhos (path) que irão
ser percorridos, até se chegar ao destino.
Ribeiro (s/d) defende que na internet os utilizadores quando
interagem, criam um mundo paralelo, on-line, transportando-se
para outros locais.
Real ou virtual, não há dúvida queos utilizadores interagem
no ciberespaço. Mais do que informações e mensagens, circulam
na Net actos de linguagem que colocam em jogo a interacção, a
negociação entre actores sociais (Aranha, s/d).
Os discursos no ciberespaço sugerem que se pode caminhar
para fora do EU numa extensão tal que pode mesmo recriar-se do
EU, conferindo-lhe uma identidade virtual, em que o ciberespaço
constitui a metáfora da pessoa – o utilizador é levado a reinscrever
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Ciberantropologia 9
a sua identidade, que pouco tem a ver com a sua voz, aparência
física ou mesmo personalidade.
É a essa construção de identidade do EU que antes se deu
o nome de persona. A persona que aparece no ciberespaço é,
potencialmente, muito mais do que um mero reflexo do EU real.
O conceito de sociabilidade ampliou-se ao permitir que os
mais tímidos, que mal ousam sair de casa, se relacionem com desconhecidos,
quantas vezes através de personalidades fictícias criadas
para o efeito, através de uma ciberexistência. Ao constituir-se
como espaço de sociabilidade, o ciberespaço gera novas formas
de relações sociais, com códigos por vezes conhecidos, mas adaptados
ao espaço e tempo virtuais e às possibilidades de construção
de novas identidades. Cabe à Antropologia o estudo desses
códigos, no sentido de identificar as representações sociais que
transmitem.
Para além disso, há também a questão da oralidade. Verificase
um retorno à oralidade, uma vez que o modo como a comunicação
se processa na Internet (ex. nas salas de Chat), escrevendo
como se fala, está muito próximo dessa mesma oralidade, embora
pertencente ao domínio da escrita. Contudo, a Internet vai muito
mais além da mera oralidade, combinando texto, sons e imagens.
Por essa razão, a internet está a mudar a comunicação humana.
Nela encontramos verdadeiros pontos de encontro on-line, que
têm contribuido para a formação de comunidades virtuais.
4 Comunidades Virtuais – as salas de Chat
Mas o que é comunidade?
Comunidade é um conjunto de pessoas numa determinada área,
normalmente geográfica, com uma estrutura social (existe algum
tipo de relacionamente entre os indivíduos), podendo existir um
espírito compartilhado entre os seus membrose um sentimento de
pertença ao grupo.
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10 Adelina Maria Pereira da Silva
Uma comunidadeterá de apresentar as seguintes características
(Ávila, 1975):
• uma certa continuidade espacial, que permita contactos directos
entre os seus membros;
• a consciência da existência de interesses comuns, que permitem
aos seus membros atingirem objectivos que não seriam
alcançados individualmente;
• a participação numa obra, que sendo a realização desses
objectivos é também uma força de coesão interna da comunidade.
O conjunto de pessoas que se reune e interage através de uma
sala de chat experimenta circunstâncias idênticas às acima descritas,
com uma diferença: o local é o ciberespaço.
Fernback e Thompson (s/d) definem comunidades virtuais como
sendo aquelas em que as relações sociais que se estabelecem
ocorrem no ciberespaço através de um contacto repetido num local
específico, simbolicamente limitado por um tópico de interesse
(por exemplo, uma sala de chat).
Rheingold (1994), por seu lado, define-as como agregações
sociais que emergem na Internet quando um número de pessoas
conduz discussões públicas por um tempo determinado, com suficiente
emoção, e que forma teias de relações pessoais no ciberespaço.
Lemos (s/d), defende que o ciberespaço não é uma entidade
puramente cibernética, e o interesse antropológico do ciberespaço
reside justamente no vitalismo social, nomeadamente dos chats.
Afirma que o ciberespaço não está desligado da realidade. É um
espaço intermédio. Nele todos são actores, autores e agentes de
interacção.
Uma vez que as salas de chat, estão dividas por temas (#portugal;
#porto;#30-40; etc), as comunidades virtuais, construidas
à volta de interesses e não de proximidades físicas, sugerem a
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Ciberantropologia 11
formação de “subúrbios virtuais”. Os utilizados destes serviços
ligam-se às salas de Chat, pelos títulos (assuntos) que lhes dizem
alguma coisa. É nesse convívio que desenvolvem as suas personas,
que desenvolvem um senso comunitário e que fazem ou
desfazem amizades. Criam-se laços estruturais que unem os participantes.
As comunidades virtuais respondem às necessidades sociais
das pessoas. E baseiam-se na proximidade intelectual e emocional
(Rheingold, cit. in FernBack e Thompson, 1995).
Um problema que se coloca é o da natureza das relações online.
Uma comunidade não é apenas constituida de interesses
compartilhados e interacções cívicas humanas. Há também conflito
e contradição.
Ao contrário das comunidades geográficas, as ciber-comunidades
podem ser efêmeras. Um participante num canal de chat só
faz parte da comunidade quando se ligar a ela. Assim, que deixa
o canal, deixa também de pertencer àquela comunidade virtual.
Há também a questão do nome (nick): numa comunidade virtual
um indivíduo pode simular que deixou de fazer parte da comunidade
simplesmente mudando de nick, sem o comunicar a
mudança. Virtualmente transformou-se noutro indivíduo, mas
continua a fazer parte da mesma comunidade. Numa comunidade
geográfica isto não seria possível de acontecer.
O Chat é um serviço síncrono através do qual dezenas de pessoas
comunicam ao mesmo tempo, num ou em diversos canais,
devidamente identificados. Através dele o indivíduo pode conversar
simultaneamente com diversas pessoas e acompanhar a conversa
de outros. Cada frase da conversa vem antecedida do nome
do utilizador. Ao mesmo tempo vai-se recebendo informação sobre
quem entra ou sai do canal. Existe também a possibilidade de
conversar em privado com determinado utilizador.
Ao entrar uma sala de chat o utilizador é obrigado a escolher
um nick (um apelido), pelo qual será identificado em todas as suas
mensagens. A escolha do nick é fundamental, pois será como
o seu “cartão de visita”, a sua máscara. Através do nick, outro
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12 Adelina Maria Pereira da Silva
qualquer utilizador poderá identificar os interesses da pessoa com
quem poderá manter uma conversa.
Na Internet existe sempre um grande número de salas de chat,
cujos nomes e assuntos são muito diversos. Cada pessoa pode
escolher a sala ou o assunto sobre que quer falar ou, então, criar a
sua própria sala.
Fig 1.: janela principal do Mirc (comunicação pública)
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Ciberantropologia 13
Fig 2.: exemplo de janela de comunicação privada
Os indivíduos que utilizam os canais IRC (Internet Relay Chat)
apresentam determinados traços comuns: são normalmente pessoas
com interesse pelo mesmo tema e com um nível sócio-económico
equivalente. Porém, outros traços são bastantes heterogéneos,
nomeadamente ao nível de culturas (diferentes países) quer
ao nível cognitivo, pelo que existe um elevado grau de interajuda
na superação de algumas dificuldades: língua, linguagem utilizada
(acrónimos e “emoticons”), registo de nick, etc.
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14 Adelina Maria Pereira da Silva
Acrónimo
A Tradução em
português
Acrónimo
A Tradução em
português
AFAICT É o máximo que
eu posso falar
GIGO Lixo vem...lixo vai
AFAIK Tanto quanto sei ILY Amo-te
AIUI Como eu percebi IME Pela minha experiência
BBL Voltarei mais tarde OIC Ah! Percebo
BRB Volto em breve OMG Oh, meu Deus!
F2F Cara a cara SITD Continuo sem resposta
FAQ Perguntas frequentes
MORF Homem ou mulher?
B4 Antes IR Na realidade
AFK Afastado do
teclado
JAM Espere um minuto
BTW A propósito TIF Beijo na face
BSF Falo sério pessoal FYI Para tua informação
RUOK Estás bem? FOC Gratuito
Figura 3.: Exemplos de acrónimos
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Ciberantropologia 15
Emoticons Significado Emoticons Significado
#-) deslumbramento ,-) feliz e a piscar
o olho
$-) acertou no totoloto :-# de boca fechada
%-\ ressaca :-{ de bigode
%-) com muito tempo a
olhar para o ecrã
:-) de felicidade
(8-0 quem paga a conta :——} de um mentiroso
(:-) careca :)U copo cheio
+:-) padre :-> com sarcasmo
,-} de ironia a piscar o
olho
:-] de cabeça
dura
:,( de choro :-) constipado
:- de homem :-7 sorriso charmoso
(:-( muito triste :-C muito infeliz
:-e de desapontamento :-O de tagarela
:-Q de fumador >- feminino
@:| de um génio <:-| de burrice
:-X beijo babado O:-) de anjo
P-( de pirata B-) à batman
Fig 4.: Exemplos de emoticons
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16 Adelina Maria Pereira da Silva
Constata-se, contudo, que existem diferenças importantes entre
a comunicação mediada por computador (CMC) e a convencional:
• falta de feedback regulador - os indivíduos comportam-se
de maneira mais espontânea, mesmo com estranhos, já que
não existem limitações contextuais como o aspecto físico
ou o status social -;
• apresentação anónima - qualquer indivíduo apresenta-se como
quiser, criando uma nova identidade -;
• fraqueza dramatúrgica – quase inexistência de informações
não-verbais -;
• desconhecimento do status social - completo desconhecimento
de quem é o OUTRO, até que este o divulgue -.
Quer a fraqueza dramatúrgica quer o desconhecimento do status
social motivam a construção de um novo universo simbólico
que, no caso dos canais de Chat, impulsiona a criação de novas
culturas e comunidades.
É possível definir três pilares psicossociais da comunicação
pessoa-pessoa através do ciberespaço (Riva & Galimberti, cit. in
Cunha, s/d):
1) a realidade construída na rede;
2) a conversação virtual;
3) a construção da identidade.
O espaço das interacções sociais não pode ser descrito apenas
em termos físicos. Os espaços construídos com base na realidade
virtual caracterizam-se por níveis de simulação cada vez maiores:
é a co-presença de discursos, mais do que a co-presença física de
interlocutores que determina a construção das capacidades cognitivas
e a performance.
Além disso, a realidade virtual é um espaço em que:
• cada interlocutor continua a poder influenciar a acção do(s)
outro(s);
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Ciberantropologia 17
• os interlocutores continuam a poder regular a comunicação
através de feedback de informação.
Por tudo isto, a Internet oferece um campo de liberdade para o
indivíduo exprimir a sua identidade. No contexto do ciberespaço,
o indivíduo pode decidir:
• interagir com os outros tal como é;
• seleccionar apenas aspectos particulares da sua identidade,
e eventualmente acrescentar outros aspectos “inventados”;
• adoptar uma identidade completamente diferente da sua identidade
real;
• optar por manter-se anónimo, como observador passivo e
invisível.
A rede surge, então, como um espaço verdadeiramente democrático,
em que todos têm igualdade de oportunidades, independentemente
de questões de género, saúde, estatuto, etnia, etc.
A influência de uns sobre os outros está apenas limitada pela
capacidade de comunicação, que depende não só da habilidade
verbal, como também dos conhecimentos técnicos obtidos.
A própria metáfora espacial que se usa para caracterizar a Internet
como um ciberespaço, remete para o facto de o próprio
conceito de espacialidade ser modificado por este meio: as pessoas
podem interagir durante dias, semanas ou anos (através do
chat, por exemplo), independentemente das mudanças geográficas
que tenham lugar. A comunidade está onde a pessoa estiver.
É um excelente suporte, dentro daqueles que estão actualmente
disponíveis, para manter o contacto social com pessoas distantes.
Em qualquer comunidade há regras de conduta, que variam de
cultura para cultura. Também nas comunidades virtuais há regras
de conduta, que surgiram de uma maneira espontanea, que deverão
ser respeitadas. É o que vulgarmente de chama de Netiqueta.
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18 Adelina Maria Pereira da Silva
Netiqueta é a forma aportuguesada do termo inglês "netiquette",
que significa "etiqueta (bons modos) na Internet". A Netiqueta é
um conjunto de regras não-oficiais, passadas de boca em boca e
site em site que tenta estabelecer um padrão de comportamento
considerável "desejável"pelos utilizadores e para os utilizadores.
As regras da netiqueta visam tornar a Internet um lugar menos
caótico e mais sadio, ensinando as pessoas que certas atitudes
aparentemente inofensivas podem aborrecer, atrapalhar ou agredir
outros usuários, devendo ser evitadas. O usuário que desrespeita
a netiqueta, propositalmente ou não, prejudica também a si
mesmo, porque é "deixado de lado"pelos outros utilizadores. A
Netiqueta pode variar ligeiramente de acordo com o tipo de comunicação
que está a ser utilizado (por exemplo: canais chat, grupos
de discussão, e-mail). Alguns dos exemplos de netiqueta são: não
falar palavrões, não fazer flood1, não gritar, não fazer propaganda
de qualquer espécie, entre outras coisas. Se alguém quebrar uma
dessas regras, a pessoa é kickada2 do canal, ou então pode ser
banida3.
5 Conclusão
Em suma, ao criar um meio de circulação de informações, a rede
possibilitou um multiplicidade de formas de comunicação e de
criação de sociabilidades através do CMC. Criou-se um novo espaço,
virtual, a que se deu o nome de ciberespaço. Nele materializam-
se relações sociais e valores, que vulgarmente se chama de
cibercultura.
A cibercultura tem possibilitado mudanças nas relações do homem
com a tecnologia e entre si, gerando novas formas de socia-
1 Repetição seguida de mensagens em pouco espaço de tempo. O Flood
atrapalha o andamento do canal. Repetir 3 vezes a mesma linha é considerado
flood em alguns canais.
2 Quando um dos operadores disconecta uma pessoa do canal.
3 Ser disconectado do canal e ser impedido de entrar nele por alguns minutos.
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Ciberantropologia 19
bilidade. Estas novas formas de sociabilidade estão condicionadas
pelo aparecimento de novas identidades sociais.
Os utilizadores do chat mantém um senso de comunidade e
linguagem partilhada. Reconhecem o seu universo simbólico particular
que os caracteriza e os une, apresentam um senso de respeito
pelas convenções do grupo, de responsabilidade pelo chat, e
os que não o respeitam são marginalizados.
A Internet desenvolve novas possibilidades de comunicação,
expressão cultural e de sociabilidade.
Estas novas formas de sociabilidade podem ser enquadradas
no quadro de uma Ciberantropologia.
O objectivo da Ciberantropologia será o estudo das novas formas
de sociabilidade que são estabelecidas na Internet através de
outros elementos de identidade que não a voz, a aparência física
ou a escrita, destacando outros códigos e relações sociais experimentados
pelos utilizadores desse espaço e a sua relação com os
interfaces.
A Internet é simultaneamente real e virtual (representacional),
informação e contexto de interacção, espaço (site) e tempo, mas
que altera as próprias coordenadas espacio-temporais a que estamos
habituados, compactando-as, ou seja, o espaço e o tempo na
rede existem na medida em que são construção social partilhada.
Esta construção é estruturada pelos laços e valores socio-políticos,
estéticos e éticos que tipificam este novo espaço antropológico.
Este novo espaço com áreas de privacidade - um novo mundo
virtual ou mundo mediatizado - é um suporte aos processos cognitivos,
sociais e afectivos, os quais efectuam a transmutação da
rede de tecnologia electrónica e telecomunicações em espaço social
povoado por seres que (re)constroem as suas identidades e os
seus laços sociais nesse novo contexto comunicacional. Geram
uma teia de novas sociabilidades que suscitam novos valores. Estes
novos valores, por sua vez, reforçam as novas sociabilidades.
Esta dialéctica é geradora de novas práticas culturais.
Trata-se de um novo tipo de organização socio-técnica que facilita
a mobilidade no e do conhecimento, as trocas de saberes, a
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construção colectiva do sentido, em que a identidade sofre uma
expansão do eu baseada na diluição da corporeidade, ou seja, o
que se perde em corpo ganha-se em rapidez e capacidade de disseminar
o eu no espaço-tempo. Assiste-se, assim, a uma aceleração
do metabolismo social. Geram-se as chamadas comunidades
virtuais.
As redes e serviços telemáticos geram novos espaços de encontro,
novos espaços antropológicos, há que questionar em que
medida esses novos espaços representacionais (re)criam as identidades
e as práticas culturais.
Gera-se um espaço antropológico alternativo.
Diz Rheingold (1996:43): “Talvez o ciberespaço seja um dos
lugares públicos informais onde possamos reconstruir os aspectos
comunitários perdidos quando a mercearia da esquina se transforma
em hipermercado. Ou talvez o ciberespaço seja precisamente
o lugar errado onde procurar o renascimento da comunicação,
oferecendo, não um instrumento para o convívio, mas
um simulacro sem vida das emoções reais e do verdadeiro compromisso
perante os outros. Seja qual for o caso, precisamos de
descobri-lo o mais rapidamente possível”.
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