sábado, 29 de março de 2008

O símbolo como ideologia

O simbólico como ideologia
a perspectiva marxista
Jairo Ferreira



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1. A produção social de bens simbólicos

1.1. Antecedentes da perspectiva marxista: os escritos de hegelianos de Jena

Os escritos de hegelianos de Jena partem de três categorias básicas de atividade social - a família, a linguagem e os instrumentos de trabalho - como formadoras do "espírito" autoconsciente. Há, entre elas, uma mútua determinação (dialética).

Hegel vale-se da convivência no contexto familiar como um espaço onde se desenvolvem as relações dialéticas entre lógica e ética, em que as particularidades do espaço individual se dissolvem nas formas recíprocas de comportamento, em que a universalidade é uma resultante da intersubjetividade dos sujeitos interagentes, rompendo assim com a visão kantiana de uma ética fundada na lógica do sujeito solitário e autosuficiente.

A linguagem é mediação através da qual o indivíduo solitário se confronta com as coisas e com a natureza. É a forma especificamente social, em que as imagens caóticas do espírito animal são organizadas através do distanciamento operado pelo indivíduo em relação aos objetos em si, os quais, simbolizados, são integrados à singularidade da espécie humana. A função representativa do signo, no sentido de identificação do objeto, é indissociável de sua dimensão sintetizadora da diversidade das formas. Rompe-se assim o ciclo da intuição imediata característica do reino animal.

O trabalho rompe com outro ciclo do comportamento animal: a busca da satisfação imediata das necessidades é adiada -suspendida - na produção dos instrumentos. Nos instrumentos, conforme Hegel,


"a subjetividade do trabalho eleva-se no instrumento como algo universal; todos podem imitá-lo e trabalhar da mesma forma; se converte, neste sentido, em uma regra constante do trabalho" 1

Enquanto que a linguagem é o processo em que as relações sujeito-objeto são convertidas numa sujeição da natureza aos símbolos autogerados, o trabalho, pelo contrário, é o momento de sujeição do sujeito ao poder da natureza. Somente através desta submissão à causalidade da natureza, pode a espécie fazer com que a natureza trabalhe para a satisfação de suas necessidades (astúcia), na medida em que acumula os instrumentos.
Linguagem e trabalho são duas formas através das quais a espécie desenvolve o espírito. Mas a primeira se refere ao poder da espécie sobre a subjetidade; a segunda, sobre a natureza, que dominada, permite a emergência de novas necessidades, ampliando a liberdade subjetiva. A linguagem aparece em Hegel como "primeira determinação do espírito abstrato".

A família e o trabalho como formas primárias de constituição do espírito dependem da linguagem. A linguagem


"só existe como linguagem de um povo... é um universal, reconhecido em si, que impregna a consciência de todos; cada consciência falante se converte imediatamente em outra consciência. E também pelo que se refere a seu conteudo, só em um povo se converte a linguagem em verdadeira linguagem, isto é, no dizer daquilo que cada um pensa" 2.


A reciprocidade das interações comunicativas pressupõe a linguagem e suas dimensões universais, embora extrapole as suas fronteiras. Da mesma forma, o trabalho depende da linguagem, como trabalho social, na medida em que a cooperação carece de interações comunicativas. Como trabalho individual (solitário), a linguagem se impõe como necessidade na configuração dos procedimentos e dos instrumentos, e identificação dos objetos.
1.2 Consciência, linguagem e comunicação como formas da produção social

Rompendo com a visão hegeliana, Marx vai definir a linguagem, a comunicação (interações) e a consciência ética e cognitiva como formas da produção social. A experiência coletiva da produção, neste sentido, é uma praxis (síntese de consciência e ação) social determinante do conjunto da vida social. O trabalho humano é irredutível às práticas manuais. Esta interpretação de Marx está clara na Ideologia Alemã, onde a consciência é apresentada como contemporânea da linguagem, mas ao mesmo tempo dela se diferenciando:


"Desde que o início que uma maldição pesa sobre o "espírito", a de se encontrar "manchado"por uma matéria que se apresenta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência - a linguagem é a consciência real, prática, existente também para outros homens, o que quer dizer que, portanto, existe também apenas para mim próprio e, tal como a consciência, a linguagem só aparece com a necessidade do comércio..." 3.

Portanto, a consciência e a linguagem surgem aqui como uma capacidade da espécie desenvolvida nos termos do processo de circulação (troca) de mercadorias. Considerando que o conceito de produção abrange as trocas, pode-se afirmar que a consciência social emerge deste processo, entendido em sua totalidade.
Entretanto, tal formulação é posteriormente modificada. A formulação de Marx no Capital estabelece uma divisória entre as formas de trabalho do conjunto das espécies animais e o indivíduo humano: a representação do que fazer. É no ato de representar, de prefigurar, que se estabelece a distinção entre o trabalho do indivíduo humano e dos animais em geral, na busca da satisfação de suas necessidades.


"Pressupomos o trabalho sob a forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele fixará na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No final do processo do trabalho, aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera: ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade" 4.

Esta segunda posição de Marx inverte as relações entre consciência e ação apresentadas na Ideologia Alemã, na qual as esferas da produção social antecedem (como relações "históricas originais") os níveis de consciência, linguagem e comunicação. No Capital, a consciência antecede e se transforma com as formas de produção social. O ponto máximo desta concepção é o fetiche da mercadoria (falsa consciência da realidade social), como instância que articula e é articulada pelo modo de produção capitalista.
Esta dialética entre consciência e ação é captada por Adam Schaff:


"A consciência ... é produto do trabalho...(que) está baseado na cooperação e esta é impossível sem pensamento conceitual e sem compreensão. Esta é a dialética da mútua influência, que permite explicar o processo de comunicacão sem ter de recorrer aos milagres ou à metafísica" 5.

O marxismo, porém, vacilou entre os dois pólos desta dialética. Para Engels, por exemplo, a linguagem e a consciência são frutos do trabalho cooperativo, que aproxima os indivíduos da espécie, e os leva a necessidade de se comunicar:

"O aperfeiçoamento do trabalho contribui para aproximar cada vez mais entre si os membros da sociedade, multiplicando os casos de auxílio mútuo, de ação comum, esclarecendo em cada um, a consciência da utilidade dessa colaboração. Em suma: os homens em formação chegaram enfim ao ponto em que tinham alguma coisa para conversar" 6.

Ou seja, a consciência é um desdobramento do trabalho humano cooperativo. Mesmo Schaff reduz a dialética - produção e consciência - aos processos de interação emergentes da produção social, embora em outras obras faça referência explícita a dialética das relações sujeito-objeto 7, contrapondo-se às leituras idealista (verdade determinada pelas representações do sujeito) e mecanicistas (verdade intrínseca ao objeto) do marxismo.
1.3 Finalidade e Trabalho: a abordagem de Lukács

No âmbito do marxismo, Lukács também estabalece relações entre conhecimento e trabalho, tomando por base os escritos filosóficos hegelianos de Jena 8 , em sua Ontologia do Ser Social. Para Lukács, o conhecimento tem sua gênese na esfera do trabalho. Trata-se da forma pela qual o intercâmbio indivíduo-natureza pode ser realizado conforme as finalidades socialmente estabelecidas.

Para Lukács, a questão das finalidades também está ancorada na esfera do trabalho. Este é o caminho de sua crítica a Kant, que transforma a construção das finalidades numa questão abstrata. Ao mesmo tempo, procura assim explicar a gênese - no trabalho - do surgimento das várias formas de concepções de mundo nas quais se discute o destino da espécie (o mito, a religião e a filosofia).

As finalidades naturais e sociais (comer, beber, vestir, etc..) são interiorizadas nos materiais de trabalho (meios de produção), criando-se uma nova objetividade. O conhecimento tem sua gênese, para Lukács, na investigação sobre a natureza indispensável à elaboração dos meios de


"Toda a experiência cognoscitiva e todo o emprego de relações causais, isto é, toda a colocação de causalidade real, figura sempre no trabalho como meio para uma finalidade singular, ainda que essa colocação tenha a propriedade de aplicar-se a outra finalidade que se apresente, do ponto de vista imediato, como inteiramente heterogênea...E é precisamente aqui que se revela a inseparável unidade de causalidade e teleologia, ou seja, daquelas categorias que, consideradas abstratamente, parecem se opor e excluir umas as outras. A investigação sobre os meios para a realização de finalidades sempre recolocadas deve, por conseguinte, conter um conhecimento objetivo da causa daqueles processos materiais que, postos em movimento, são capazes de tornar reais as finalidades colocadas" 9.

A causualidade específica da natureza surge assim como ponto de apoio para uma nova objetidade, diversa da primeira, que contém incorporada as finalidades da espécie. Lukács, entretanto, faz apenas poucas referências empíricas de como estas relações entre conhecimento e trabalho se desenvolvem na história: a geometria como abstração da experiência do trabalho na Antigüidade; a roda estimulando a visão de uma terra redonda, girando em torno de um eixo; ou, mais primitivamente, a descoberta das características dos materiais em sua manipulação visando finalidade (madeira-em-si e casa; pedra-sem-si e machado); e, finalmente, a sugestiva idéia de que a finalidade de voar permaneceu irrealizável até o momento em que a investigação sobre os meios e causalidade atingiu um determinado ponto.
Estes meios concretizam a fixação dos resultados do processo de trabalho, a continuidade e o aperfeiçoamento das formas de trabalho. Nos marcos de uma reflexão hegeliana, Lukács situa a preferencialidade histórica e universal pelos meios exatamente em sua realização (que se conserva) como finalidade social e racionalidade. A abordagem de Lukács, entretanto, abstrai o conjunto dos processos pelos quais a preferencialidade pelos meios de produção é parte das relações sociais de produção.

1.4 O processo produtivo ampliado à produção ideológica

Partindo do referencial teórico marxista, Gramsci 10 estabelece duas categorias superestruturais: a sociedade civil e a sociedade política. A noção de sociedade civil emerge no contexto da revolução burguesa. Marx relaciona tal conceito à sociedade atomizada, constituída, em sua "anatomia", na esfera da produção econômica. Gramsci utilizará o termo para referir os elementos ideológicos de uma determinada sociedade.

A sociedade civil, na concepção gramsciana, pode ser considerada sob três aspectos. Primeiro, como ideologia da classe dirigente incorporada à arte, à ciência e ao direito). Segundo, como concepção de mundo (isto é, sistemas simbólicos que resumem concepções de mundo: a filosofia, a religião, senso comum e o folclore). Terceiro, como ideologia propriamente dita, isto é, como instituições - que abrangem sistemas simbólicos e instrumentos técnicos - especializadas na difusão de valores (neste aspecto estariam incluídos os processos de produção classificados como meios de comunicação de massa).

Este autor estabelece ainda uma diferenciação qualitativa entre os vários graus de estruturação ideológica. A filosofia seria o grau mais elaborado de concepção do mundo. No lado oposto, em termos de simplicidade estrutural, o folclore. Entre os dois, o senso comum. A filosofia exerce sua força social na medida em que está, permanentemente, em diálogo com o senso comum. Ao contrário da pureza dos sistemas filosóficos, o senso comum se apresenta como uma amálgama de concepções, as vezes contraditórias entre si, que demarcam a conflitualidade social na esfera da subjetividade popular.

Gramsci classifica a "organização material destinada a manter, defender e desenvolver a "frente teórica" 11 de "estrutura ideológica da sociedade". Estas estruturas abrangem tanto as diretamente vinculadas à ideologia dominante como as instituições culturais. Na sociedade civil burguesa, a escola e os meios de comunicação de massa ganham um novo peso na correlação das instituições ideológicas. O teatro, o cinema e o rádio são vistos como meios capazes de criar um impacto emotivo mais vasto do que o livro e o jornal. Por isso, passam a se constituir num elo fundamental da articulação entre os sistemas simbólicos estruturados e o senso comum, visando as estratégias de domínio ideológico da sociedade.

A outra categoria da superestrutura é a sociedade política. Na esfera da sociedade política, se situam os instrumentos legais-coercitivos (aparato jurídico-normativo, polícia, exército). Sua ação ocorre sempre que os instrumentos de consenso e legitimidade falham. Entre a sociedade civil e a sociedade política, há vínculos orgânicos. O principal destes vínculos é a "opinião pública". A construção permanente da opinião pública é essencial no exercício do consenso e da hegemonia. Trata-se de dispersar, diluir e fragmentar os discordantes. Para isto, é fundamental articular ação político-parlamentar e "meios de comunicação de massa".

Para Gramsci, há um amplo leque de possibilidades ideológicas em determinada sociedade. Mas só são essenciais, do ponto de vista da sociedade, aquelas opções ideológicas orgânicas, isto é que se vinculam a determinadas classes sociais. Neste sentido, a relação com as classes sociais é o ponto de convergência entre as determinações infra-estruturais (da produção econômica) e superestruturais, concretizado socialmente pelos "intelectuais orgânicos":


"Cada grupo social, surgido num terreno originário de uma função essencial do mundo da produção econômica, cria, ao mesmo tempo que a si próprio, uma ou várias camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência de sua própria função, não somente no plano econômico, mas também no plano social e político" 12.

Os intelectuais, como "funcionários da superestrutura", dão forma às classes sociais, viabilizando sua passagem do discurso restritivamente "econômico (ou egoísta passional) ao momento ético político, isto é, à elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isso significa também a passagem do "objetivo" ao "subjetivo", ou da "necessidade" à "liberdade"". Assim como os "comunicadores", os cientistas e técnicos são classificados nesta categoria.
Gramsci, neste sentido, dá uma importância a superestrutura idêntica a dos processos infra-estruturais de determinada formação histórico-social. As formulações simbólicas têm uma importância social essencial no sentido de movimentar as classes sociais, dinamizando a base material da sociedade, que, ao mesmo tempo, condiciona as possibilidades de determinadas construções ideológicas ganharem força sócio-material. A idéia de "bloco histórico", em Gramsci, se refere a esta síntese, entre as atividades desenvolvidas pelos intelectuais na superestrutura e o movimento das classes sociais. Uma classe é hegemônica (ou só pode pretender a hegemonia) na medida em que se constitua num "bloco histórico" 13.



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jaiferre@vortex.ufrgs.br
Editado em 15.set.97.

1 Hegel apud HABERMAS, Jürgen. Ciência e técnica como ideologia. Madrid, Editorial Tecno, 1992.,ibidem, p. 29.
2 Hegel abud Habermas. idem, ibidem, p. 35.

3 Marx, Karl. Feuerbach. A oposição entre as concepções materialista e idealista (Capítulo I da Ideologia Alemã.). Portugal, Estampa, 1975, p. 40.

4 idem, ibidem, V. I., p. 149.

5 Schaff apud Rüdiger, Francisco. Comunicação e teoria social moderna. Porto Alegre, Fênix, 1995, p. 67.

6 Engels, Frederic. O papel do trabalho na humanização do macaco. São Paulo, Paz e Terra, 1977, p. 180.

7 SCHAF. Adam (1971). História e verdade. São Paulo. Martins Fontes, 1971.

8 Lukács, G. "Trabalho e teleologia". Revista Novos Rumos, São Paulo, Editora Novos Rumos, Ano 4, n. 123, p. 17-23.

9 Idem, ibidem, p. 23.

10 PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. São Paulo. Paz e Terra., 1987

11 PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. São Paulo. Paz e Terra., 1987, p. 27)

12 idem, ibidem, p. 49.

13 Além de Gramsci, outros marxistas analisaram os "meios de comunicação de massa" sob ponto de vista da conflitualidade de classe e ideológica. No sentido de definir uma oposição teórica, é importante salientar a contribuição de Enzenberg que transpõe o modelo marxista de análise do modo de produção capitalista aos "meios de comunicação de massa". Estes meios "possibilitaram, pela primeira vez na história, a participação massiva das pessoas num processo produtivo social e socializado"13 de informações e conhecimento sobre o mundo. As relações sociais capitalistas, entretanto, condicionam a utilização destes meios aos limites ideológicos do capital. A concentração e monopolização dos "meios de produção" inviabilizam os processos de feed-back, através dos quais a sociedade poderia recompor sua subjetividade conforme sua experiência de interação. Conclusivamente, o seu potencial social só será liberado com a subversão destas relações sociais. In: Enzenberg, H.M. Elementos para una teoria de los medios de comunicación. Barcelona, Anagrana, 1972. A referência a Enzenberg tem um sentido: sua concepção expressa uma determinada análise "marxista" com profundas lacunas. Isto já foi observado por Jean Baudrillard, em sua Para a Crítica da Economia Política do Signo. Ao reduzir a problemática da socialização dos "meios de comunicação" à propriedade social destes meios, Enzenberg descuida o estatuto lingüístico que norteia as relações comunicacionais mediadas por tecnologias. Para Baudrillard, os "meios de comunicação" correspondem às formas de trocas lingüísticas que objetivam o sentido (objeto-signos) do real, se opondo às trocas simbólicas propriamente ditas, onde a presença da ambivalência mobiliza os sujeitos interagentes. O signo é o instrumento da redução da polissemia dos significados a determinados sentidos unívocos, que são fetichizados. Baudrillard se refere a uma leitura freudiana da ambivalência do sentido, em que o fetiche corresponde à afirmação totêmica do sentido como fuga às ambigüidades - tanto da mercadoria como da estrutura psicológica do indivíduo. A codificação-decodificação das mensagens pelos "meios de comunicação de massa" é parte deste processo de fetichização do sentido. In: BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica na economia política do signo. São Paulo. Livraria Martins Fontes. 1972.Entretanto, consideramos que a análise de Baudrillard se refere à esfera do consumo