sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Tatuagem, gênero e lógica da diferença
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006 251
Tatuagem, Gênero e Lógica da Diferença*
CÉSAR SABINO 
MADEL T. LUZ 
RESUMO
Este artigo analisa a lógica das tatuagens dos fisiculturistas e freqüentadores
assíduos das academias cariocas de musculação e fitness, destacando o aspecto
identitário de tal lógica e sua relação com a questão da diferença e das
hierarquias sociais associadas, no estudo, à concepção cosmológica presente
no pensamento metafísico ocidental. Tal concepção é confrontada com o
perspectivismo ameríndio, no qual a diferença e o devir se apresentam como
cerne do cosmos.
Palavras-chave: Tatuagem; gênero; fisiculturismo; identidade; diferença.
Recebido em: 03/07/06.
Aprovado em: 26/07/06.
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César Sabino e Madel T. Luz
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):251-272, 2006
Introdução
Em diversas culturas de distintas complexidades, a tatuagem mobiliza
olhares, reflete sentimentos, classifica e ordena subjetivamente o fluxo
intermitente de indivíduos que lhe servem de tela e que nela buscam distinções
simbólicas. Formando uma espécie de linguagem, os desenhos da epiderme
apresentam uma “gramática” que possibilita organizar nas academias de
musculação o regime da visibilidade institucional. Portanto, a tatuagem, do ponto
de vista sociológico, é uma linguagem que “está intimamente ligada à organização
social: [apresentando] motivos e temas [que] servem para exprimir diferenças
de posição, privilégios de nobreza e graus de prestígio” (LÉVI-STRAUSS,
1975, p. 292).
A “gramática” epidérmica parece manifestar-se por intermédio de uma
contradição: a maioria dos(as) tatuados(as) das academias pesquisadas escolhe
seus desenhos após uma decisão pessoal que expressa a vontade de distinção.
Tatuando-se, buscam singularizar suas figuras, sempre lhes conferindo uma
característica diferencial, um detalhe específico; alguns até mesmo “inventam”
seus desenhos ou “carregam” no estilo do mesmo ao se dirigirem ao tatuador.
Toda essa atitude é engendrada na busca de uma individualidade relacionada à
concepção de livre arbítrio e da distinção daquele que faz suas escolhas, pelas
quais se vê como plenamente responsável.
De fato, segundo Sanders (1989), a tatuagem é um meio de individuação
que tem a tarefa de demarcar a diferença em relação ao outro, tatuado ou não.
Também constitui uma demarcação de inconformismo que pode expressar a
incorporação de uma estética pessoal. Por outro lado, a grafia epidérmica
permite reivindicar o pertencimento a uma categoria social, servindo como
uma espécie de “etiqueta coletiva” (DURKHEIM, 1972, p. 113), simbolizando
a filiação privilegiada a um grupo social específico que busca demarcar sua
identidade coletiva em um processo de emblematismo.
Embora os fisiculturistas que participam freqüentemente de competições
não as exibam em profusão (pois se os desenhos forem grandes poderão
atrapalhar a visão de seus músculos ou desviar deles a atenção), as tatuagens
estão presentes em inúmeros corpos nas academias de bodybuilders e
“marombeiros”.1 Numa pequena amostra da sociedade da performance e da
aparência que constitui tais instituições, a superfície da pele realça o que ela
reveste, aquilo que constitui objeto e propósito de todo o trabalho nesses locais:
o músculo. O desenho gravado na epiderme surge como espécie de acabamento
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artístico num contínuo processo de busca por um ideal estético que envolve a
encenação pública e a encarnação de papéis inerentes à dinâmica social. Se
corpos musculosos “pavoneiam” (FOUCAULT, 1990, p. 9) pelos cenários
repletos de espelhos, halteres e máquinas de exercícios, as tatuagens conferem
a esses corpos o paroxismo da visibilidade que lhes é inerente.
Associadas, no Ocidente, à marginalidade até a década de 60 do século
XX - quando estigmatizados como presidiários, motoqueiros dos Hell’s Angels
e marinheiros sem nenhuma patente desenhavam, por vezes de forma canhestra,
imagens, palavras ou frases em seus corpos -, as tatuagens se tornaram
atualmente parte do cotidiano das classes superiores. Decoram o corpo de
indivíduos de idades variadas e demonstram a existência de um processo de
circularidade cultural, no qual o poder de um item estigmatizado se torna emblema
de status e domínio, invertendo o jogo social pela disputa de hegemonia simbólica
das classes (GINZBURG, 1986; BAKTHIN, 1987).
Como os costumes de um povo, grupo social ou classe se organizam
em sistema que apresenta um estilo, ocorre, por vezes, uma transposição cultural,
uma reinterpretação de significados que fazem parte da própria dinâmica
coletiva. Tal movimento é possível porque, dentre outros aspectos, os sistemas
não se organizam em número ilimitado, sugerindo, de acordo com um clássico,
que “as sociedades humanas, assim como os indivíduos - em seus jogos, sonhos
e delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher certas
combinações num repertório ideal” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 167).
Nas academias de musculação é possível perceber a produção coletiva
- e inconsciente - de uma gramática imagética composta por inúmeros itens
retirados e reinterpretados de outras culturas e/ou classes sociais. Tatuagens
inspiradas em figuras mitológicas pertencentes às culturas da Polinésia Francesa
e celta (denominadas tribais), japonesa, chinesa, hindu, balinesas, medieval, além
de ideogramas e personagens de quadrinhos e de desenhos animados, que vão
de super-heróis a anti-heróis, sem contar toda uma classificação “totêmica”
inspirada em animais e fenômenos naturais, como cães, tigres, panteras, beijaflores,
raios e estrelas, decoram os corpos dos freqüentadores, nem sempre
fisiculturistas. Há também toda uma formação simbólica organizada em torno
de objetos pertencentes à atual cultura de mercado e cyberculture, como marcas
famosas de roupas e tênis (Nike, Adidas, Mizuno) e símbolos da computação,
tais como @, além de códigos de barra, em geral estampados em locais
estratégicos do corpo, como nuca, pulso ou região lombar.
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Canevacci (1993) ressalta que nas grandes megalópoles a linguagem
visual assume papel efetivo, por sua instantaneidade. Propõe que o antropólogo
das sociedades complexas preste detida atenção à linguagem dos signos visuais,
pois essa linguagem ressalta o hibridismo, ou sincretismo cultural, que vem
imperando nos centros urbanos. Tal hibridismo consolida o corpo como mapa
social, expressando narrativas individuais e coletivas simultaneamente. Essas
narrativas - da mesma forma que a bricolagem - são construídas por diversos
itens, ou termos, pertencentes a culturas diversas tanto no tempo quanto no espaço.
Desta maneira, por exemplo, uma mulher com ascendência alemã pode estampar
em seu cóccix uma tatuagem “tribal”, marca ancestral de homens taitianos, ou
um entrelaçado celta, recriando a partir da mitologia germânica a concepção de
“forças do infinito”. Tudo isto com o objetivo - consciente - de não apenas tornarse
singular, mas de se identificar - muitas vezes inconscientemente - com
determinado grupo que freqüenta locais (os chamados points) e que consome
produtos específicos, escuta determinado tipo de música e assim por diante.
Essa construção identitária, ao mesmo tempo concêntrica e excêntrica,
está diretamente relacionada à dimensão visual das interações sociais. Quanto a
esse aspecto, há a necessidade de expor signos, sejam eles músculos ou desenhos,
corte e cor de cabelo, roupas ou ideogramas inscritos na pele. Esse apelo visual
das sociedades complexas se faz presente delimitando espaços, demarcando
diferenças e fazendo com que - no caso específico - os componentes das academias
entrem no cenário iluminado da vida urbana com sua mise-en-scène singular
inerente aos fluxos culturais preponderantes na cultura globalizada (HANNERZ,
1997; LUZ, 2003; LE BRETON, 2004), superexpondo-se num jogo que pode ser
exemplificado pela produção do corpo-imagem nos campeonatos de fisiculturismo,
nos quais cada fibra muscular deve ser mostrada e demonstrada em uma espécie
de dissecação em vida do competidor.2 Mostrar, expor as entranhas musculares,
exibir, alardear, ser notado, não apenas ostentando os adereços que compõem a
sociedade de consumo, mas sendo dela o próprio adereço: “o corpo humano se
torna um corpo panoramático que reflete, retroage e projeta infinitas combinações
de sinais ventríloquos” (CANEVACCI, 1993, p. 23).
Pele de homem. Pele de mulher
As tatuagens nas academias de musculação dividem-se em femininas,
masculinas e unissex. Mulheres tendem a tatuar determinadas figuras, como
rosas e flores em geral, estrelas, borboletas, lua, sol, personagens femininas de
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histórias em quadrinhos, beija-flores, gatos e fadas. Ideogramas, desenhos tribais,
palavras e frases em letra gótica, símbolos da computação, códigos de barra,
corações, duendes, deuses ou deusas mitológicos são símbolos inscritos tanto
na pele de homens quanto de mulheres. Águias, cruzes, panteras, tigres, dragões,
demônios, caveiras, armas, arame farpado, sereias, mulheres nuas, tubarões,
esqueletos com foice e capuz e, principalmente, cães da raça pitbull, são
tatuagens masculinas. Os locais do corpo também definem o gênero: mulheres
costumam tatuar a nuca, a região lombar (principalmente as chamadas tribais),
os seios, as nádegas e virilhas, às vezes omoplatas, pés e calcanhares. Já entre
os homens os desenhos situam-se principalmente no bíceps (em geral na parte
exterior, mas também há desenhos na parte interior), costas, deltóide, antebraço
e mais raramente abdômen, panturrilhas e peito.
As divisões estabelecidas pelos desenhos configuram a manutenção,
reprodução mesmo, da gramática das diferenças inerentes às relações de gênero.
Quando pensa escolher seu desenho (seja ele qual for), o indivíduo é “escolhido”
por todo um conjunto de representações e práticas, estruturas subjetivas e
objetivas reproduzidas pelo estilo de vida que articula e imita (EDMONDS,
2002). Tal sistema (inconsciente) aparta, organiza, distingue e constitui as
(dis)posições sociais, alocando o indivíduo em uma, e exprimindo a sua condição
de gênero e classe.3
A tatuagem - surgida, como dito acima, entre pessoas antes consideradas
escória social - tornou-se o emblema, ao menos nos casos das academias
cariocas de musculação e fitness, o ethos de uma fração da classe média que
hipervaloriza a exposição estética. Ela se apresenta como adorno e acabamento
distintivo daqueles que buscam, no cultivo do corpo, dos músculos e da ausência
de adiposidade, o sinal de destaque e superioridade sensitiva característicos
dessa camada social. Tais estruturas subjetivas e objetivas são inscritas nos
corpos em um duplo processo de “interiorização da exterioridade e exteriorização
da interioridade” (BOURDIEU, 1983, p. 47). O aspecto “volátil” dessa ética
estética característica de parcelas da sociedade urbana atual é reiterado pelo
fato de que, tendo em princípio sido inscrições feitas na pele para toda a vida
(ou seja, supostamente inalteráveis), hoje os grupos de tatuados adotam, por
vezes, a estratégia de realizar outro desenho por cima da figura que já não mais
satisfaz seus objetivos, cobrindo uma tatuagem com outra.
Mas o que significam essas tatuagens? Qual é sua função no contexto
cultural estudado? Qual é o sentido do ato de tatuar-se para os que se tatuam?
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Adiantando uma via interpretativa, podemos repetir, a respeito das tatuagens,
que elas, de uma forma ou outra,
conferem ao indivíduo sua dignidade de ser humano; operam a passagem da
natureza à cultura, do animal “estúpido” ao homem civilizado. Em seguida,
diferentes quanto ao estilo e à composição [...] expressam, numa sociedade
complexa, a hierarquia dos status. Possuem, assim, uma função sociológica
(LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 183).
O desenho pode significar, para aquele que o tem em seu corpo, uma
iniciação, o pertencimento, a identificação e a aceitação em determinado grupo:
[...] “mandei” esse dragão porque todo o pessoal que conheço tem tatuagem
na academia, e no tatame, os caras mais “feras” têm as mais “iradas”, as mais
“maneiras” [...] aí mandei esse dragão no braço... Agora quero fazer um
pitbull aqui nas costas (Carlos. 23 anos. Estudante, fisiculturista amador e
lutador de jiu-jitsu).
Ou:
Ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... A galera toda lá do curso tinha,
aqui na academia as garotas todas têm tatoo e piercing, cê sabe, né? É moda,
sei lá [...] aí eu mandei essa aí na nuca e depois botei o piercing no umbigo
[...] minha mãe reclamou muito, não me deu o dinheiro p’ra fazer, aí eu
comecei a vender uns colares e pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro
e fiz (Tatiana. 18 anos. Estudante).
O “sofrimento de ser escrito pela lei do grupo [a dor] vem acompanhado
de um prazer, o de ser reconhecido, de se tornar uma espécie de palavra
identificável e legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de um
texto anônimo, de ser inscrito em uma simbólica sem dono e sem autor” (DE
CERTEAU, 2002, p. 232). Essas mensagens, não raro, estão relacionadas a
uma suposta rebeldia presente nos movimentos estético-musicais de massa:
eu tenho o Bob Marley nas costas, ainda não acabei de fazer, vai demorar um
tempo porque tem que colorir toda e é grande, pega toda as costas como ‘cê
tá vendo, né? [...] mandei essa tatoo por que gosto de reggae, me identifico com
a mensagem do Bob, desde moleque eu gosto [...] de vez em quando aperto um,
claro, né?, P’ra acalmar [...] então a tatoo tem tudo a ver [...]. É um lance cabeça
e pele, sei lá (Filipe. 24 anos. Estudante, fisiculturista e skatista amador).
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Representações e práticas podem ser sugeridas pelos símbolos que os
integrantes desse grupo urbano inscrevem na pele. As tatuagens mais comuns
entre os fisiculturistas e freqüentadores assíduos das academias são aquelas
que expressam força, autoridade e poder, relacionando-se este diretamente à
virilidade. Junto a esses símbolos aparecem os ligados ao uso das drogas: ratos
com corpo de fisiculturista e duendes musculosos fumando maconha, além de
cogumelos de todos os tamanhos, alusão a um dito chá de cogumelo alucinógeno,
e o próprio desenho da planta cannabis sativa.
Essas alusões às drogas merecem uma hipótese: o rito de iniciação de
um marombeiro - aquele que se torna um freqüentador assíduo das academias,
futuro fisiculturista - está relacionado ao uso coletivo dos esteróides anabolizantes.
A maioria desses freqüentadores utiliza tais substâncias para melhorar
desempenho no treinamento, aumentando a força, diminuindo o percentual de
gordura e ampliando a massa muscular. A convivência com esta realidade repleta
de substâncias químicas é, portanto, fato inevitável para os atuais freqüentadores
assíduos de academias. Para construir sua identidade e ser aceito no grupo
(salvo raras exceções), o agente necessita passar pelo uso de tais substâncias.
O processo ainda é reiterado pela concepção da boa forma física, a aparência,
como sinônimo de saúde.
A droga faz parte do processo ritual de iniciação, rito de instituição,
estando presente, de forma duradoura, no cotidiano dessas pessoas. Durante
nosso trabalho de campo foi possível perceber que muitos utilizam drogas, além
das “bombas”, em festas ou momentos de lazer fora das academias. Tatuar
sobre os músculos os símbolos relacionados ao consumo de drogas reitera e
afirma o pertencimento do tatuado às estruturas objetivas e subjetivas que
perpassam e constituem as práticas de cultivo da forma. Quando a tatuagem
alude à iniciação às drogas, ela articula um processo que permite ao tatuado se
fazer e se perceber como parte de um grupo.
A tatuagem também pode representar uma extensão e complemento
do significado dos músculos e de tudo aquilo que está envolvido no seu cultivo.
Figuras de cães ferozes, caveiras e cruzes, morte, símbolos de super-heróis,
tigres, panteras e dragões, enfim animais e objetos considerados perigosos servem
como advertência: “Cuidado, sou perigoso!” (DIÓGENES, 1998). A imagem
do cão da raça pitbull, por exemplo, considerado feroz e de temperamento
explosivo, surge na fala dos marombeiros como símbolo de força e daquilo que
consideram qualidades: agressividade, destemor, ferocidade e potência: “[...]
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esse pitbull aqui [aponta para a imagem tatuada na panturrilha] é o meu
mascote... Ele me dá força” (Pedro. 25 anos. Estudante). Ou:
A tatoo dessa fera aqui, no braço [...] nesse braço aqui, é do meu pitbull [...]
eu me identifico com essa raça de cachorro, tem um movimento aí que quer
acabar com eles, já ouviu falar, né? Dizem que o bicho é violento e coisa e
tal [...] mas não vão conseguir, a gente que luta, que malha que gosta de
esporte radical, a gente se amarra nesse bicho [...]. Vamos continuar criando
[...] ele é nosso símbolo [...] forte. A mordida dele tem mais de uma tonelada
de pressão, é isso aí, quero que meu soco também fique com uma tonelada
de pressão... (João. 28 anos. Comerciante).
No que concerne às mulheres das academias, as figuras remetem à
delicadeza, sensualidade e submissão. Tais desenhos acentuam esteticamente
aquilo que tradicionalmente é considerado feminilidade em nossa cultura - ou os
encantos, particularmente para os olhos masculinos, dessa feminilidade (FREYRE,
1986). Essas figuras são inscritas, geralmente, em regiões específicas do corpo
da mulher: quadris, ventre, seios, virilhas, nuca. Se, no registro masculino, os
desenhos ressaltam a musculosidade e a masculinidade de regiões do corpo que
representam a virilidade e a força - e, portanto, a honra de ser homem - no
registro feminino tais desenhos destacam o inverso, ligando a força feminina
diretamente à sedução e à sexualidade. A tatuagem torna-se um adorno para as
qualidades físicas diretamente ligadas ao gênero e às hierarquias de poder e
relações de força a ele inerentes (LE BRETON, 2004). Mesmo aquelas figuras
unissex, que poderiam dar a impressão de mudança de condição disfarçada pela
mudança de posição, são inscritas nas regiões específicas do corpo nas quais
ficam demarcadas as peculiaridades do contrapoder feminino radicado na
dependência da dominação masculina. O desenho aí surge como adorno das
qualidades sensuais e sedutoras da mulher - mesmo quando suposto sinal de
“liberação” - sugerindo que o uso do corpo e da estética feminina continua
subordinado e radicado no ponto de vista masculino, já que tais qualidades sensuais
o são justamente por reiterarem a condição subordinada daquela que as apresenta:
o corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado [nos jogos de
sedução] manifesta a disponibilidade simbólica que [...] convém à mulher, e
que combina um poder de atração e de sedução [...] adequado a honrar os
homens de quem ela depende ou aos quais está ligada, com um dever de
recusa seletiva que acrescenta ao efeito de “consumo ostentatório” o preço
da exclusividade (BOURDIEU, 1999, p. 40-1).
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Demarcar regiões corporais que são alvo da cobiça sexual masculina -
por significarem a condição tradicional de mulher - parece funcionar como uma
potencialização da sedução:
[...] a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do bumbum... É claro,
né, são lugares de mulher fazer tatoo [...] Por quê? Porque dá um tchan, um
destaque naquela parte que você acha que você tem de legal, que atrai os
caras, que te dá aquele charme [...] entende? Se a mulher tem uma cintura
bonita, fininha, um quadril largo, ela manda logo uma tribal aqui [aponta para
a região abaixo dos rins], se ela tem um peitão bacana manda uma no peito,
e aí vai... Tá ligado? Muita mina diz que faz na nuca, na bunda que é p’ra
não enjoar da tatoo, porque ali ela não fica vendo o desenho o tempo todo,
tudo bem, pode até ser, mas é muito mais p’ra dar um destaque naquela parte
do corpo que ela acha que tem legal (Juliana. 20 anos. Estudante).
Entretanto, nem todas demonstram essa reflexividade a respeito da
função da tatuagem: “Fiz tatoo porque gosto, não tem porquê... Achei legal e
mandei no tornozelo, depois esse ideograma na nuca que quer dizer vida e
amor; é isso fiz porque fiz e pronto” (Mariana. 25 anos. Jornalista).
Deste modo, ao se servir do seu próprio corpo, a mulher tatuada, ao
menos neste caso específico, naturaliza uma ética estruturada culturalmente
que a constrói como ser-para-o-outro. A tatuagem parece então surgir como
uma espécie de adorno que realça e sensualiza determinados dotes físicos,
conferindo e reiterando à portadora o poder (ou o contrapoder) e o quantum da
sua feminilidade, construída como complemento e contraposição à masculinidade
que a define em oposição a determinada sensualidade masculina que reside na
musculosidade diretamente ligada à figura do homem senhor de sua força e de
forças alheias. A dureza muscular, a grandeza e, por vezes, a rusticidade tornamse
sinônimos para as mulheres dessas instituições, de excelência:
gosto de homem com cara de homem, corpo de homem, jeito de homem, não
precisa ser um monstro de músculos, mas tem que ser malhado, tem que ser
grande, espaçoso, tem que ter pegada [risos], jeito de macho, presença [...]
que impõe respeito, autoridade [...] (Fabiana. 28 anos. Advogada).
O quadro a seguir sugere alguns aspectos classificatórios representados
pelas figuras tatuadas nos corpos dos fisiculturistas e freqüentadores assíduos
das academias de musculação e fitness. A classificação está diretamente
relacionada à divisão de gênero, com suas relações de poder inscritas no corpo.
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A existência da classificação triádica sugerida acima (tatuagem de
homem, tatuagem de mulher e unissex), representada pelas figuras desenhadas
na pele tanto de homens quanto de mulheres, talvez se refira a uma maleabilidade
classificatória relacionada à conquista feminina da igualdade entre os sexos. É
possível interpretar que tal ambigüidade apenas reitera que a mulher mudou de
posição, mas, na maioria das vezes, não mudou de condição social, pois a disciplina
que tradicionalmente se impõe ao seu corpo, delimitando sua situação em
contraposição à condição masculina, conforme é possível perceber nas academias
de musculação, ilustra a significação moral inscrita não apenas na sua aparência,
mas em seus atos: costas a serem mantidas retas, andar requebrado e
malemolente, quadril empinado, ausência de barriga, pernas fechadas ao sentar,
seios propositadamente enfatuados, olhares de soslaio, etc., como se a
feminilidade se medisse pela arte de se fazer delicada ou pequena (BOURDIEU,
1999; SIMMEL, 1993). As técnicas corporais femininas presentes nas
sociedades complexas têm por efeito paradoxal - através da demonstração de
disciplina e contenção, da oferta e da negação da oferta, de suposta dissimulação
- concretizar e reiterar a ordem da sedução e da beleza femininas, socialmente
construídas, mostrando e demonstrando, mesmo que circunstancial e
sorrateiramente, os atrativos do corpo relacionados diretamente a sua
sexualidade.
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Tanto a Sociologia como a Antropologia urbana têm elaborado
abordagens teóricas que universalizam a dominação masculina. Assim, grosso
modo, procedem as abordagens, por exemplo, de Lévi-Strauss e Bourdieu.4
Porém, novos estudos direcionados às sociedades tribais não-estratificadas da
Amazônia e Nova Guiné não compartilham a universalidade dessa dominação,
reiterando que em tais sociedades, em geral, as relações entre os gêneros são
permeáveis e equilibradas (OVERING, 1984; CASTRO, 2002; GONÇALVES,
2001; LAGROU, 1998). Esse aspecto pode ser percebido, por exemplo, nas
práticas da couvade, quando após o parto o homem também fica de resguardo.
Essa prática seria inerente às sociedades nas quais as tarefas sexuais são
relativamente flexíveis e o poder e o status feminino são altos. A couvade
talvez sirva para estabelecer as tarefas do pai na vida da criança e para equilibrar
as funções masculinas e femininas na criação destas.
Outro comportamento ritual que demonstra a imitação masculina do poder
reprodutivo feminino é o “saignade”, ritual de sangramento que imita a
menstruação. Embora o sangue menstrual seja universalmente temido, em muitas
culturas acredita-se também que ele carregue grande poder, sendo fonte e causa
da saúde superior das mulheres e também causa do seu rápido crescimento.
Assim, entre os Menihaku da Amazônia existem inúmeras ocasiões nas quais os
homens menstruam simbolicamente, sendo a mais significante o ritual de perfuração
das orelhas. Entre os Sambia das terras altas da Nova Guiné, o sangue menstrual
também é identificado com a vitalidade, longevidade e feminilidade das mulheres.
Para garantir saúde similar e longevidade, os homens Sambia produzem um ritual
doloroso e brutal de imitação da menstruação, no qual se provoca o sangramento
do nariz nos jovens durante cerimônias de iniciação (COUNIHAN, 1996).
Sacralidade similar em relação ao sangue menstrual e exaltação do poder feminino
foram percebidas por Osório (2000) em relação ao grupo de praticantes da bruxaria
moderna no Rio de Janeiro, denominado Wicca.
Se em muitas culturas existe equivalência entre os gêneros, este não é
o caso entre fisiculturistas e marombeiros. A classificação triádica existente no
sistema simbólico da tatuagem provoca apenas uma ilusão igualitária, radicada
na suposta maleabilidade simbólica da tatuagem unissex. As classificações dos
desenhos da epiderme remetem às classificações ternárias destacadas no
pensamento selvagem estudado por Lévi-Strauss (1975a e 1975). O autor sugeriu
o caráter contínuo (ou de continuidade dinâmica do mundo) presente no raciocínio
selvagem: “as sociedades que denominamos primitivas não concebem que possa
existir uma fossa entre os diversos níveis de classificação [...] representam
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[tais níveis] como as etapas ou os momentos de uma transição contínua” (1975a
p. 202). De acordo com Lévi-Strauss, na classificação primitiva não há a
concepção estática da realidade, mas esta é percebida como processo dinâmico,
com ausência de formais escaninhos estanques, como poderia sugerir uma análise
apressada do binarismo presente nas temáticas estruturalistas.
A binaridade lógica (ou as partições ontológicas) apresentaria uma
solução original no pensamento selvagem: sendo relação entre contínuo e
descontínuo, o universo estaria “representado em forma de um continuum
composto de oposições sucessivas” (LÉVI-STRAUSS, 1975a, p. 205). Conforme
assinala Viveiros de Castro, as oposições binárias estáticas não estariam
presentes nessa ontológica, pois, nesta, a identidade não seria nada mais do que
um caso ou manifestação da diferença.
Apontando para um erro comum na Antropologia urbana, o autor
assinala que uma antropologia das sociedades complexas não deveria se
preocupar apenas em encontrar nas culturas e sociedades nacionais de tradição
cultural européia ou eurasiáticas, a mesma lógica ou sentido constatada entre
os “primitivos”, mas, ao contrário, buscar as diferenças entre tais sociedades.
O autor ainda afirma que uma concepção nublada do estruturalismo levou
inúmeros pesquisadores de sociedades complexas, de modelos europeus ou
asiáticos, a fazerem projeções de termos de uma cultura para outra. Tal equívoco
apenas demonstra que uma projeção efetiva deveria ser a do tipo geométrico,
em que as relações fossem preservadas e não os termos, por exemplo:
o “‘equivalente” do xamanismo ameríndio não é o neoxamanismo californiano,
ou mesmo o candomblé baiano. O equivalente funcional do xamanismo
indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias,
é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o acelerador de partículas
de lá (CASTRO, 2002, p. 489).
Esse erro de projeção tem impedido muitos pesquisadores de
perceberem as singularidades estruturais entre tipos de pensamento muito
distintos e, portanto, também impedido de perceberem a singularidade das
práticas socioculturais que apresentam conseqüências opostas em culturas
diferentes. Ao transporem os termos e não analisarem comparativamente as
relações, os pesquisadores mantêm um universalismo incapaz de perceber as
implicações críticas que tais relações colocam para a base cosmológica, a
racionalidade, do pensamento ocidental e suas práticas.
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Talvez a busca pelo imutável, pela identidade - entendida como essência
metafísica -, característica da cultura ocidental (SCHÖPKE, 2004; DELEUZE,
1981), possa ser expressa, dentre outros aspectos, pelas tatuagens circunstanciais
- em forma de frases. Tais tatuagens buscam eternizar um instante da vida
(circunstâncias), um momento, uma data, uma relação através da fixação na pele
de um nome ou mesmo um texto com supostos poderes mágico-protetores (LE
BRETON, 2004). Apresentam-se sempre em forma de frases que formam ou
não textos, ao contrário dos outros modelos de inscrição epidérmica. Um
fisiculturista e instrutor de musculação de uma academia no bairro do Grajaú
exibe, além de outras tatuagens espalhadas pelo corpo, uma tatuagem com esse
tipo com letras góticas, com a inscrição “CULTURISMO” no antebraço:
Mandei escrever “CULTURISMO” no antebraço para todas as pessoas
verem que a musculação e o fisiculturismo são a minha vida, a razão do meu
viver; tudo que tenho consegui por intermédio do que faço... Então mandei
escrever isso aí, p’ra todo mundo ver [...] ainda quero mandar escrever [a
categoria] liberdade nas costas... (Pedro, 30 anos. Instrutor de musculação).
Ainda uma freqüentadora assídua das salas de musculação da mesma
academia:
Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha mente: palavra Deus em inglês
[...] tatuei porque acho que tenho que lembrar a todo instante dele, agradecer o
que tenho, saúde p’ra correr atrás do que preciso, por isso tatuei no pulso [...]
também p’ra todo mundo ver que me protejo, sei lá é meio mágico [...] também
[...] poder superior que você carrega no seu corpo (Carol. 18 anos. Estudante).
Se, a respeito das tatuagens entre tribos “primitivas” e neotribos urbanas,
uma projeção apressada fosse feita, provavelmente se concluiria que a
classificação triádica acima citada, presente nas academias de musculação,
remeteria a uma concepção dinâmica de universo, na qual a diferença se
apresentaria como constitutiva da realidade em ambos os pensamentos: o
ocidental e o ameríndio. Mas não é isso que ocorre. Se os termos forem deixados
de lado e as relações transpostas, perceberemos que, apesar das aparentes
semelhanças nas classificações entre fisiculturistas e ameríndios, as lógicas de
um e de outro são simetricamente invertidas. O aspecto triádico ameríndio está
relacionado ao continuum da realidade compreendida como processo ou devir.
O aspecto triádico manifesta-se, por sua vez, tanto em um grupo quanto
em outro (tribos ameríndias e neotribos urbanas), pela ampla variedade de
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desenhos que, se algumas vezes possuem os mesmos conteúdos (tema), variam
amplamente na forma (estilo). O exemplo dos índios do grupo Pano na Amazônia
remete ao aspecto nômade do pensamento ameríndio, em contraposição à
característica sedentária do pensamento ocidental. Para esse grupo, as
tatuagens permitem a identificação imediata do grupo ao qual pertence o
indivíduo: “particularmente elaboradas são as tatuagens dos diversos grupos da
área Juruá-Purus, caracterizadas por motivos angulares [...] cuja composição
varia de grupo para grupo, tornando possível a imediata identificação”
(SIGNORINI, 1968, p. 179 apud ERIKSON, 1986, p. 192).
De forma similar, as tatuagens entre os freqüentadores assíduos das
academias cariocas de musculação e fisiculturismo classificam indivíduos
pertencentes a subgrupos específicos numa lógica de “assimilação do mais
longínquo conjuntamente a uma diferenciação máxima vis-à-vis do próximo”
(ERIKSON, 1986, p. 192). Os mesmos desenhos, com suas variantes, podem
ser encontrados entre subgrupos diferentes, da mesma forma que no seio de
um mesmo subgrupo podem coexistir motivos bastante diferentes. Uma águia
pode ser representada de inúmeras maneiras, aludindo a significados distintos
para seções distintas, ou ter o mesmo significado para um grupo específico,
porém sendo representada por estilos diferentes; formas que tendem a demarcar
a singularidade daquele que porta o desenho (OSÓRIO, 2006). Essa diversidade
faz alusão à lógica da diferença presente entre os ameríndios, em que o mundo
é visto e compreendido como movimento incessante, “um todo interconectado
de seres [...] com intencionalidade e agência semelhantes à nossa, capazes de
adotar um ponto de vista” (LAGROU, 1998, p. 164).
Philippe Descola sugere a existência de modelos diversos de “ecologia
simbólica”: a naturalista (ocidental), onde vigora uma relação metonímica e
natural entre natureza e sociedade, sendo a realidade, em última análise, radicada
na natureza: os seres humanos teriam sua “essência” biológica como animais,
diferenciando-se destes apenas pela cultura. A abordagem “totêmica”, na qual
a relação é puramente diferencial e metafórica, sendo uma série comparada
por analogia a outra série; e, por último, o modo “anímico” (vigente nas
cosmologias amazônicas), em que a relação natureza/cultura é metonímica e
social, ou seja, inversamente às cosmologias ocidentais, estas últimas
compreendem o cosmos como sendo todo cultura e não natureza. Objetos e
animais teriam sociedades e se veriam como coletividade social; o animismo
seria, portanto, um sociocentrismo (DESCOLA, 1992, 1996; CASTRO, 2002).
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Mas se em alguns momentos o processo lógico parece ser o mesmo da
metafísica, tal fato não resiste a uma análise mais aprofundada. Entre os
praticantes de fisiculturismo e freqüentadores das academias de musculação,
no caso, a estrutura lógica do pensamento remete a uma classificação que
tende a buscar a identidade, entendida (de forma avessa à dos ameríndios)
enquanto negação da diferença, essência imutável do cosmos. Se para o grupo
ameríndio o movimento expresso pela variação infinita de formas das tatuagens
com o mesmo tema significa a “identidade” da diferença, para outro, o mesmo
movimento busca demarcar a identidade compreendida como manifestação do
imutável, cópia imperfeita deste. A tatuagem, no caso dos marombeiros e
fisiculturistas, expressaria a concepção inconsciente de que o cosmos não é um
devir, um tornar-se imanente, e sim parte volátil de uma realidade metafísica
superior essencialmente imutável, à moda platônica. Se no pensamento
domesticado, ou dito ocidental (LÉVI-STRAUSS, 1975; LUZ, 2004;
BOURDIEU, 2005), a identidade é ausência de diferença (e esta uma carência,
uma falha) - o que leva à busca da essência estática do cosmos na filosofia
metafísica -, no pensamento selvagem, ou dito nômade, o contrário ocorre: a
identidade é um caso particular, circunstancial e delimitado da diferença
(CASTRO, 2000; MARQUES, 2003; DELEUZE, 2006).
Tal processo lógico está diretamente relacionado ao perspectivismo
ameríndio.5 A mesma variabilidade das figuras tatuadas, existente entre
ameríndios e fisiculturistas e marombeiros, expressa, em última análise, sentidos
opostos. No caso dos marombeiros, essa variabilidade é representada pelo fato
de o mesmo desenho ser realizado no que eles mesmos denominam estilos.
Esses estilos apresentam diversidade (tradicional, oriental, new school, tribal,
etc.). Por exemplo, há o estilo tribal, que pode ser visto em variações como a
celta, o estilo samoano ou taitiano; há o estilo mecânico, que representa figuras
com formas cibernéticas; há o estilo oriental, com desenhos inspirados na arte
chinesa e japonesa, mormente da Yakusa (no caso japonês), e assim por diante.
Esse movimento - de variação da forma e do estilo - é compreendido pelo
fisiculturista como busca pela demarcação identitária que delimita a singularidade
da sua pessoa enquanto marca que deseja a imutabilidade e não como
demonstração da diferença e do devir imanente ao cosmos, processo que ocorre
no caso ameríndio, em que “a distância intensiva e extrínseca entre as partes
converte-se em diferença intensiva, imanente a uma singularidade dividida”
(CASTRO, 2002, p. 293). Enquanto a variabilidade e a continuidade para um
significam o próprio movimento cosmológico (o devir), para outro constituem
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busca pela singularidade identitária, marca de uma “essência” imutável (a
identidade). Se a singularidade é, e afirma o processo, em um aspecto, em
outro o processo deve ser negado pela própria busca da singularidade. Nesta
interpretação, enquanto o pensamento domesticado dos bodybuilders e
marombeiros afirmaria o transcendente, o pensamento selvagem ameríndio,
por sua vez, se apresentaria como a pura manifestação da imanência.
Conclusão
Se as tatuagens remetem a um tipo de sistema simbólico ou gramática
social, tal gramática nas academias de musculação e fisiculturismo remete às
relações hierárquicas de gênero e status, relações que produzem e são produzidas
pelas práticas cotidianas dos atores. Essa mesma lógica apresenta uma
singularidade triádica simetricamente invertida em relação ao pensamento
ameríndio. Este concebe o mundo - visto sem a cisão natureza/sociedade, posto
que tudo é sociedade e “humanidade” - como devir e diferença, enquanto a
lógica dos marombeiros e fisiculturistas (pequena amostra da lógica metafísica)
concebe a diferença, o devir como defeito, parte desequilibrada e tortuosa de
uma realidade superior imutável, pura, esta sim, máxima identidade e simetria.
Se, para uma forma de pensamento, o respeito à diferença e à assimetria
é a base de todo o processo de pensamento e de organização prática da vida,
para outra, a diferença e a assimetria surgem como males a serem combatidos
em nome de uma identidade suprema e imutável, manifestação pura da
perfeição e positividade. Se a lógica ou racionalidade ameríndia, ao contrário,
aceita a diferença e o movimento como positivos, absorvendo e respeitando
seu acontecimento, a lógica ou racionalidade ocidental vê na diferença a ameaça
à sua integridade, fato que remete, na prática, à dificuldade de tais pensamentos
(presentes nas sociedades complexas capitalistas) lidarem com as manifestações
do outro e da alteridade.
Enquanto uma lógica absorve positivamente essa alteridade
compreendendo-a com cerne de todo devir cósmico, a outra combate a mesma
alteridade - até mesmo quando fala em dialética - fazendo-a desaparecer no
seio de uma identidade imutável que deve, por fim, dominar, ordenar, administrar
e subjugar a diferença ao império do “igual” e do “mesmo”.
O que se deve, em termos práticos, destacar neste processo é que, em
um tipo específico de pensamento, o respeito à diferença e à assimetria produz
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relações sociais marcadamente igualitárias e simétricas (como se pode notar
nas relações de gênero entre os ameríndios); enquanto o outro tipo (o pensamento
racionalista ocidental), que se pretende defensor da igualdade e da simetria
sociais, produz regras na prática assimétricas, instituindo relações sociais,
inclusive as de gênero, marcadas por desigualdades.
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NOTAS
* Este artigo é fruto parcial do trabalho de campo (observação participante e etnográfica, com
realização de entrevistas gravadas e escritas, formais e informais), realizado em 12 academias de
musculação e ginástica das zonas Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro, durante os anos de
1998 a 2004, visando à elaboração de tese de doutorado em Antropologia Cultural (SABINO,
2004). Relata também algumas análises do grupo Racionalidades Médicas, do Instituto de
Medicina Social da UERJ. Foram entrevistados 310 freqüentadores assíduos dessas instituições
(200 homens e 110 mulheres, com idade entre 16 e 55 anos), sendo que, destes, 101 possuíam
tatuagens (63 mulheres e 38 homens).
 Pesquisador associado (FAPERJ) no grupo de pesquisa CNPq Racionalidades Médicas e
Práticas Corporais, do Instituto de Medicina Social da UERJ. Endereço eletrônico:
cesarsabino@hotmail.com.
 Professora titular no Departamento de Políticas e Instituições de Saúde do Instituto de
Medicina Social da UERJ; coordenadora do grupo de pesquisa CNPq Racionalidades Médicas
e Práticas Corporais. Endereço eletrônico: madelluz@superig.com.br.
1 Em linguagem “nativa” marombeiro significa todo(a) aquele(a) que freqüenta com assiduidade
academias de musculação e ginástica, apresentando corpo moldado (“sarado”, como é dito)
pelos exercícios. A palavra deriva de maromba, vara usada pelo funâmbulo para se equilibrar na
maroma, corda na qual caminha. Também pode significar o peso com o qual o funâmbulo
mantém seu equilíbrio (SABINO, 2002).
2 Talvez o fisiculturismo seja uma manifestação de um possível movimento de estetização das
entranhas. Essa estetização tem seu maior expoente artístico no médico alemão Gunther Von
Haggens, criador da escola chamada body work. O médico-artista inventou um processo de
plastificar cadáveres, denominado plastination. Essa técnica conserva os corpos mortos,
transformando-os numa espécie de bonecos hiper-realistas expostos em galerias de arte. Em
2002 Von Haggens realizou uma exposição de vários cadáveres na Atlantis Gallery. Havia entre
eles uma mulher grávida de oito meses, com útero aberto mostrando o feto. O trabalho do
médico tem alcançado notoriedade, pois o mesmo tem apresentado programas nas televisões
européias nos quais ele disseca cadáveres ao vivo (cf. O Globo. Sábado, 12/Abril/2003. Caderno
Prosa e Verso, p. 2).
3 Sobre a tatuagem - assim como sobre o músculo hiper-inflado do fisiculturista, parafraseando
Lévi-Strauss (1975), podemos dizer que é feita para o corpo, mas num outro sentido, o corpo,
neste caso específico, é predestinado à decoração por figuras e músculos, posto que é somente
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por, e através da decoração, que ele recebe sua dignidade social e significação. A decoração é
concebida para o corpo, mas o próprio corpo não existe senão por ela. A dualidade é, em
definitivo, a do ator e de seu papel, e é a noção de máscara que nos traz sua chave. Essa alusão
à máscara é significativa, posto que persona em latim tem o mesmo sentido: “é clássica a noção
de persona latina: máscara, máscara trágica, máscara ritual, máscara de antepassados” (MAUSS,
1974, p. 225). A etimologia evoca o quanto o agente é composto em suas ações por forças
sociais inscritas em seu corpo, conferindo-lhe identidade. A persona, enquanto produção social,
vive e repete - embora na diferença - as forças criadoras coletivas. Enquanto máscara, a persona
coloca em cena ou participa da encenação dos tipos sociais. Le Breton (2004) ressalta que
atualmente as tatuagens não são apenas uma forma de singularizar, mas de tocar as jovens
gerações em seu conjunto, confundindo todas as condições sociais e os gêneros - elas não são
exclusivamente apenas de homens.
4 Bourdieu (1999, p. 43), por exemplo, escreve: “simbolicamente votadas à resignação e à
discrição, as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força,
ou aceitando se apagar, ou pelo menos negar um poder que elas só podem exercer por procuração
(como eminências pardas)”.
5 O perspectivismo ameríndio é descrito da seguinte forma por Eduardo Viveiros de Castro
(2002, p. 350-1): “o estímulo inicial para esta reflexão foram as numerosas referencias, na
etnografia amazônica, a uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos
vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo - deuses, espíritos, mortos,
habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos,
objetos e artefatos - é profundamente diferente do modo como esses seres vêem os humanos e
a si mesmos. Tipicamente, os humanos em condições normais vêem os humanos como humanos
e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver esses seres usualmente invisíveis é um
signo seguro de que as ‘condições’ não são normais. Os animais predadores e os espíritos,
entretanto, vêem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa vêem os
humanos como espíritos ou como animais predadores: ‘o ser humano vê a si mesmo como tal.
A lua, a serpente , o jaguar e a mãe da varíola o vêem, contudo, como um tapir ou um pecari que
eles matam’, anota Baer sobre os Machiguenga. Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmo
que os animais e espíritos se vêem com humanos. Eles se apreendem como ou se tornam
antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios
hábitos e características sob a espécie da cultura: vêem seu alimento como alimento humano (os
jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os
vermes de carne podre como peixe assado, etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas,
garras, bicos, etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado
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identicamente às instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras de casamento, etc.).
Esse ver ‘como’ refere-se literalmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que,
em alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que sensorial do fenômeno; de qualquer
modo, os xamãs, mestres do esquematismo cósmico dedicados a comunicar e administrar as
perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou inteligíveis as
intuições. Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase
sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma roupa) a
esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou
de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Quando estão reunidos em suas aldeias na mata,
por exemplo, os animais despem as roupas e assumem a figura sua figura humana. Em outros
casos a roupa seria como que transparente aos olhos da própria espécie e dos xamãs humanos.”
ABSTRACT
Tatoo, Gender and the Logic of Difference
This article analyzes the tatoos logic of the bodybuilders and gyms frequenters
in Rio de Janeiro city, detaching the identity aspect of such logic and its
relation with the question of difference and the social hierarchies associated,
in the study, to the cosmological conception present in Western metaphysical
thought. Such conception is collated with the Amerindian perspectivism, in
which the difference and the becoming are presented as the cosmos essence.
Key words: Tattoo; gender; bodybuiding; identity; difference.

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