quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Comunidades Virtuais eletrônicas

COMUNIDADES VIRTUAIS ELETRÔNICAS
Convergência da Técnica com o Social

José Carlos S. Ribeiro
jcsr@bahianet.com.br
Mestrando, Faculdade de Comunicação, UFBa


I. Introdução

As trocas de informações e de comunicações entre os usuários das redes eletrônicas constituíram, desde o princípio, os elementos centrais do nascimento e do crescimento desse tipo de agrupamento social. O grau de afinidades e os interesses comuns conduziram e facilitaram a aglutinação e o estabelecimento de vínculos sociais, por vezes bastante intensos, que produziram uma série de laços de identidade e partilha de objetivos entre os usuários de tais sistemas . Em linhas gerais, tais agrupamentos iniciais foram resultantes de duas posturas adotadas (na maioria das vezes compartilhadas) pelos participantes pioneiros. Uma dessas posturas era fruto da idéia visionária de construção de uma sociedade diferenciada, comprometida com ideais democráticos e comunitários, e buscava o estabelecimento de um novo tipo de relações sociais; enquanto a outra era oriunda da simples curiosidade intelectual, que tinha como objetivo principal a mera apropriação das técnicas disponíveis, sem atentar ou dar importância aos aspectos mais transcendentais de seus atos.

Entre alguns autores (Stone , Rheingold ), percebe-se uma certa tendência a enfatizar a posição da grande influência do espírito comunal verificado nestes primeiros exploradores, consequência do contexto sócio-cultural que envolvia o movimento da contracultura (variável social) presente na época, em detrimento da outra postura essencialmente movida pelo fascínio das possibilidades técnicas. Em decorrência, o desenvolvimento da técnica propiciadora de tais possibilidades interacionais (variável técnica) parece ter sido frequentemente colocado em segundo plano em grau de importância como fator constituinte dessas relações, tendo sido considerado, na maioria das vezes, apenas como um suporte para o laboratório de experiências sociais produzidas a partir da introdução das comunicações mediadas pelo computador (CMC). Embora esse ambiente de convivências tenha sido possível apenas através do contexto de inovações e desenvolvimentos tecnológicos da época, tal fato parece não ser o foco de atenção principal quando se busca o entendimento dos fatores que promoveram a dinâmica social estabelecida nas redes eletrônicas. Parece-nos ser de fundamental importância dirigirmos também nosso olhar para esse aspecto um pouco negligenciado nas pesquisas efetuadas. Desta forma, mostra-se adequado analisar a influência recíproca (entre as variáveis sociais e técnicas) na formatação da estrutura social e no dinamismo proveniente dessa combinação.

Para um olhar inicial sobre o processo resultante desta influência mútua na dinâmica social presente nas Comunidades Virtuais, faz-se necessário, entretanto, uma breve incursão na perspectiva histórica de sua formação, assim como uma análise pormenorizada dos elementos conceituais constitutivos de sua denominação.


II. Comunidade

O conceito de comunidade mostra-se como sendo de difícil aceitação consensual. Sua apresentação pode ser efetuada tomando como base vários critérios distintos. Mesmo na concepção mais conhecida, considerada em oposição ao conceito de sociedade, de acordo com a clássica proposição do teórico social alemão Ferdnand Tonnies, citado em Ferreira (1968), tal definição parece não contemplar todos os matizes relacionados ao objeto de estudo. Segundo ele, as associações de pessoas se dariam de acordo com dois modelos básicos ideais: a) a Gemeinschaft (equivalente à comunidade), aonde as relações seriam estabelecidas de uma forma íntima, próxima, privada, exclusiva. Nesse modelo, o que era ressaltado era uma espécie de vida real, orgânica, espontânea, tendo como metáfora a figura do organismo vivo; b) a Gesellschaft (equivalente à sociedade), aonde a associação se daria de uma forma artificial, mecânica, representando um modelo voluntário e teleológico de associação humana, sendo um produto da inteligência racional, promotora de relações estabelecidas na base das leis e dos contratos.

Os critérios utilizados para definir a comunidade podem, entretanto, ser outros. A limitação geográfica é frequentemente aludida para caracterizá-la, utilizando como referência a união de pessoas que vivem em determinada área. Outro critério utilizado é aquele em que privilegia a presença de interesses comuns, no qual o conceito de comunidade estaria relacionado ao conjunto de pessoas ligadas por algum objetivo comum relevante.

Ferreira (1968) atenta para um outro aspecto importante que é a relação das variáveis econômicas e sociais na formatação da comunidade. Segundo suas palavras:

"A comunidade é um grupo localizado. No entanto, os limites de sua área são tão amplos quanto à interdependência existente entre os que a compõem, sob o ponto de vista econômico e social, e não se confundem necessariamente com os limites administrativos ou políticos" (Ferreira, 1968, p.4)

O componente psíquico também aparece em algumas definições, ressaltando o aspecto inter-relacional entre os grupos. De acordo com Newstetter, a comunidade pode ser vista "como dois ou mais grupos numa relação de interação psíquica, cujas relações com um outro podem ser abstraídas e distinguidas de suas relações com todos os outros (grupos) de sorte que possam ser tidas como uma entidade" (Newstetter, apud Ferreira, 1968, p.2.). McIver, investigando o fenômeno, acrescenta os aspectos cooperativos observados nesse tipo de associação de pessoas: "Comunidade consiste em um círculo de pessoas que vivem juntas, que permanecem juntas, de sorte que buscam não este ou aquele interesse particular, mas um conjunto inteiro de interesses, suficientemente amplo e completo de modo a abranger suas vidas" (McIver, apud Ferreira, 1968, p.6)

Palacios (1995), efetuando um apanhado dos aspectos característicos da comunidade moderna, propõe os seguintes seis pontos básicos: "o sentimento de pertencimento; uma territorialidade (geográfica e/ou simbólica) definida; a permanência; a ligação entre sentimento de comunidade, caráter cooperativo e emergência de um projeto comum; a existência de formas próprias de comunicação; a tendência à institucionalização" (Palacios, 1995, p.101).

Segundo nosso ponto de vista, existem duas maneiras de se procurar entender e conceituar o fenômeno da comunidade: o estrutural e o funcional. A posição dos autores varia de acordo com a ênfase adotada para um desses dois aspectos. Percebe-se que há uma tendência para a consideração da importância dos aspectos relacionais entre os componentes dessa associação ou agrupamento em torno de objetivos, crenças e aspirações comuns.


III. Virtual

O uso do termo virtual traz, em seu âmago, alguns aspectos que se mostram relevantes para análise e reflexão. Em primeiro plano, constata-se com certa frequência a utilização do termo em franca oposição ou como contraponto a algo que fundamentalmente estaria centrado na realidade. Desta forma, o termo virtual estaria associado a algo que não se apresentaria com as características definidoras do conceito de realidade tal como foi estabelecido e sustentado na cultura ocidental. Esta realidade dos objetos estaria centrada na possibilidade de apreensão de suas características pelo sistema perceptivo humano. Segundo Manzini (1991), a constância de forma e a estabilidade no tempo (um tempo mínimo necessário para que a percepção pudesse se efetivar) constituiriam as duas condições necessárias para a formatação dos objetos nesta perspectiva apreensível. Dentro desta ótica, aquilo que não se apresentasse como sendo constituinte e participante do mundo da realidade, passaria a ter uma conotação negativa, associada ao mundo da simulação, da fantasia. Comentando sobre estes aspectos perceptivos na constituição da realidade, Jucá e Ribeiro (2001) apresentam a seguinte apreciação, a partir das idéias de Manzini:

"Manzini (1991) nos diz que uma das grandes dificuldades de lidar com a realidade virtual reside no fato de que esta realidade possui como suporte de sua existência elementos numéricos, ou seja, sua determinação é de ordem invisível, não palpável. A uma percepção habituada a considerar real apenas o que é possível discernir de modo macroscópico, a invisibilidade que, não obstante, tem efeitos reais, aponta como no mínimo desconcertante. Onde ancorar nossos critérios perceptivos? Sobre a organização da percepção ou, pelo menos, como ela foi disciplinada para ocorrer, o autor realiza uma ponderação. Estaria, antes da entrada do mundo virtual eletrônico, nossa percepção ancorada sobre bases tão sólidas como geralmente supomos?" (Jucá e Ribeiro, 2001)

Evidentemente que tais indagações não surgiram a partir da introdução do chamado "mundo virtual". Entretanto, com a apresentação de tal contexto, estas questões ficaram mais evidenciadas, uma vez que os efeitos provocados por e através desse "ambiente virtualizado" se fizeram mais presentes e marcantes na realidade sensível da vida cotidiana.

Lévy (1996) traz o conceito de virtual de uma forma um pouco diferente. Para ele, o virtual surge como sendo algo que se aproxima ao reino do possível e que se mostra em estado de potência, pronto para ser atualizado para a realidade concreta, visível. Para um melhor entendimento de sua argumentação, o autor traz os conceitos aristotélicos de potência e ato, onde a relação do que "é" e o do que "pode vir a ser" passam necessariamente por um processo de atualização das potencialidades. Chamando atenção para o fato de que o "virtual" não se apresenta como sendo uma oposição ao "real", e sim como oposto ao "atual", o autor procura evidenciar os aspectos presentes neste mundo de possibilidades, onde a passagem é promovida através do processo de atualização.

Ainda a propósito destas questões, Lévy (1999) nos conduz a um outro ponto de vista a respeito da constituição da chamada virtualidade. Segundo ele, o conceito de virtual poderia ser analisado sob três óticas distintas e complementares: a técnica, a filosófica e a corrente. A primeira estaria vinculada exclusivamente à área informática; a segunda refletiria a visão do virtual como sendo "aquilo que existe apenas em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atualização" (Lévy, 1999, p.47); e a terceira traria a concepção do virtual como sendo da ordem da "irrealidade", da não materialidade. Como foi ressaltado, as três perspectivas de análise mostram-se complementares, uma vez que possibilitam uma visão mais integrada do conjunto de fatores presentes nesta relação.

Adotando a reflexão proposta por Manzini (1991) , onde o virtual estaria aposto e concebido a partir de uma realidade microscópica, não apreensível pelo aparato perceptivo humano; ou a de Lévy (1999), onde teríamos o virtual como sendo "toda entidade ´desterritorializada´, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular" (Lévy, 1999, p.47); podemos destacar, segundo nosso entendimento, um aspecto bastante relevante e presente nas duas visões, que é a existência de algo que não se apresenta atrelado à visibilidade ou à materialidade.


IV. Comunidades Virtuais

Não existe um consenso quanto à definição mais precisa do que venha a ser esse fenômeno social, constituído a partir da introdução das comunicações mediadas pelo computador. Rheingold (1996), destacando um dos aspectos mais visíveis, comenta que ela seria formada por um ecossistema de sub-culturas, e que possuiria a característica semelhante a uma espécie de colônia de microorganismos em constante ebulição. Ainda segundo o autor, "as Comunidades Virtuais são os agregados sociais surgidos na Rede, quando os intervenientes de um debate o levam por diante em número e sentimento suficientes para formarem teias de relações pessoais no ciberespaço." (Rheingold,1996,p.18)

Deste conceito, podemos destacar alguns pontos que parecem refletir as características apontadas por Palacios (1995) na formação do conceito de comunidade. Evidencia-se o sentido de pertencimento e de permanência (mesmo que temporária) na formação de um espaço (territorialidade simbólica), onde se possam ser estabelecidas relações sociais.

Em sua caracterização, Lévy (1999) ressalta, além dos demais pontos citados, a construção de um projeto comum como elemento agregador e potencializador das dinâmicas sociais constituídas nestes espaços de convivialidade: "Uma Comunidade Virtual é construída sobre as afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca, tudo isso independentemente das proximidades geográficas e das filiações institucionais." (Lévy, 1999, p. 127)

A convivência dos participantes nestes contextos virtuais se faz através de trocas comunicacionais localizadas em um espaço desterritorializado, sem suportes físicos que sirvam de referências para suas interações. Formada por elementos construídos basicamente pelo trânsito contínuo de mensagens, tais configurações vão tomando corpo, criando sua especificidade (ainda não totalmente precisa ou demarcada), delineando os seus primeiros contornos (não físicos) através do inúmero fluxo de informações e mensagens compartilhadas. Fluxo este que se apresenta, ao mesmo tempo, como sendo fomentador de atividades e discussões sobre tópicos e assuntos diversos, e como suporte para o estabelecimento de vínculos sociais figurados por participantes não corpóreos. A sociabilidade promovida a partir destes componentes vai se configurando de uma forma inédita, uma vez que não há registros na história humana de formas de práticas sociais de convívio com estas características.

Provavelmente devido ao pouco tempo de existência deste fenômeno social, percebe-se, entre os autores, uma certa prudência na conceituação e na própria caracterização dos seus elementos formadores.

V. Histórico das Comunidades Virtuais

As chamadas comunidades virtuais surgiram a partir de iniciativas localizadas em diversos pontos e foram formadas de maneira não coordenada e não prevista enquanto movimento uniforme. Embora resultantes de um contexto sócio-cultural comum, proporcionado pelos efervescentes anos situados no final da década de 60 e início da década de 70, os primeiros construtores e arquitetos dessas aglomerações não tinham objetivos centrados no estabelecimento de ações conjuntas e orientadas para um resultado comum. Entretanto, algumas convergências podem ser detectadas e caracterizadas como sendo, para estes pioneiros, os elementos norteadores de suas ações. Em princípio, verifica-se a presença constante do desejo de experimentar novas possibilidades promovidas pela tecnologia disponível no momento. A improvisação e criação de novos programas (softwares) e consequentemente de novas utilidades para os componentes técnico-informáticos foi, provavelmente, uma das principais características deste primeiro momento do desenvolvimento das redes de comunicação mediada pelo computador.

Neste período inicial, o desenvolvimento tecnológico foi profundamente acelerado pelas pesquisas militares, subsidiadas pelo Departamento de Defesa do governo norte-americano, que visavam a construção de uma rede de comunicações desprovida de um controle centralizado, a fim de sobreviver a um possível ataque nuclear, temido durante o período da Guerra Fria. Foi criada então a ARPANET (Advanced Research Projects Agency Net), a rede inicial de computadores que resultou na atual Internet, a grande mãe das redes.

Com os avanços tecnológicos da telecomunicação e da informática foi possível a criação de um novo componente: a rede telemática. A possibilidade de ligação e de entrelaçamento de computadores situados em lugares geograficamente distantes e mais diversos possíveis, através da utilização das redes telemáticas, permitindo a transmissão de dados informacionais foi devidamente explorada e adotada pelos jovens entusiastas e apreciadores desse novo campo de exploração.

A convergência das possibilidades técnicas com os aspectos sociais presentes no contexto cultural da época foi inevitável, e como tal, os frutos dessa união resultaram em ações que buscavam, em última instância, o estabelecimento de um novo tipo de sociedade, promovidas por novos espaços de convivência e novas formas de relacionamento. Em linhas gerais, o "espírito comunitário" foi uma das principais causas para o estabelecimento de um ideal que perpassou todo esse momento de eclosão dos diversos agrupamentos sociais a partir da comunicação mediada pelo computador.

Através de modelos e arquiteturas diferentes foram surgindo espontaneamente e de forma quase simultânea uma série de agrupamentos que buscavam a utilização desses recursos. Desse contexto, surgem as chamadas BBS (bulletin board system), os sistemas de quadros de mensagens eletrônicas. Tais redes eletrônicas tinham como função principal permitir a troca de avisos e notas entre os participantes.

Como observamos anteriormente, alguns desses participantes traziam em seus estilos de vida uma concepção ideológica formatada pela contracultura - largamente adotada por jovens naquele período - e buscavam mudanças estruturais na sociedade vigente. Com uma posição visionária, eles iniciaram a utilização das BBS com propósitos muito mais amplos que a simples emissão e troca de avisos. Tendo como objetivo último a progressiva transformação da sociedade e a emergência de novas relações sociais baseadas na livre circulação de informações, esses visionários buscaram aprimorar os meios tecnológicos e estruturais utilizados pelas BBS, privilegiando mais a troca, a discussão, a interação entre os participantes, do que a simples exposição de boletins informativos.

Um pouco mais tarde, por volta do início da década de 80, e ainda dentro do espírito vigente marcado por ideais comunitários e de anseios por novas mudanças, surgem outras modalidades de comunidades virtuais, como a WELL (Whole Earth ´Lectronic Link), onde foram criados sistemas de conferência pública que permitiam aos usuários a participação em conversas públicas e troca de correspondências eletrônicas entre si. A partir desse momento percebe-se um aumento significativo de pessoas interessadas neste novo meio de comunicação. Nascem então experiências semelhantes no Japão (TWICS, COARA), na França (MINITEL), na Inglaterra (CIX), e no resto do mundo. É o momento do início da interligação das pequenas redes, através de um sistema de capilarização das conexões, criando cada vez mais o intercâmbio de informações e de possibilidades advindas desta crescente união, formatando a face atual da Rede.

Em paralelo a este momento (por volta da década de 80), aparecem também outras formas de comunicação mediada por computador, formatadas com objetivos e características diferentes das tradicionais reuniões baseadas em troca de correspondências através da sistemática das conferências virtuais. Aparecem então os MUDs, os CHATs, as listas de discussão, etc. Cada uma delas com uma tipicidade própria, mas todas imbuídas de usuários ávidos em obter informações on-line, e principalmente ansiosos por compartilhar particularidades de sua vida social.


VI. A Técnica e o Social: aspectos complementares na produção da dinâmica social nas Comunidades Virtuais

Para uma análise mais detalhada sobre este aspecto relevante da dinâmica social presente nas Comunidades Virtuais Eletrônicas, podemos utilizar como exemplo a refletida na BBS Communitree. Centralizada principalmente nas figuras de John James e Dean Gengle, a Communitree (nascida em São Francisco, EUA) trazia essencialmente em seus fóruns de debate algumas questões (espiritualidade, atos sociais, etc.) que evidenciavam a preocupação e interesses específicos dos participantes, principalmente àqueles relacionados à construção de um novo modelo de sociedade.

Entretanto, tais objetivos transcendentais presentes na Communitree foram gradativamente sendo minados pela presença de outras preocupações menos valorizadas socialmente pelos participantes originais. Trazidas principalmente por jovens adolescentes colegiais, que tiveram acesso ao número de conexão da Communitree através de computadores com modems acoplados presentes nas escolas, as discussões começaram a ser recheadas de questões mais relacionadas com as preocupações do cotidiano desses novos participantes (sexualidade, problemas escolares, relações familiares, drogas, e outros), espelhando ansiedades, experiências e vivências típicas da realidade adolescente.

Essa breve narrativa histórica, a respeito do nascimento e desenvolvimento da Communitree, traz para nossas reflexões um primeiro ponto instigante sobre a questão das dinâmicas sociais produzidas por e a partir da introdução do fenômeno das Comunidades Virtuais Eletrônicas: a questão do poder e controle dentro de um espaço de convivências não delimitado fisicamente e sua relação com os aspectos técnicos e sociais implicados no conjunto de circunstâncias presentes. Como pudemos perceber, foram direcionados esforços para o surgimento e desenvolvimento da Communitree, buscando a adaptação de um aparato tecnológico e infra-estrutura técnica disponíveis que permitia a troca comunicacional via computador (variável técnica), a fim de servir a um propósito considerado mais elevado e valorizado socialmente, através da utilização do meio para o fluxo de informações interativas por parte de seus participantes. Naturalmente que tal projeto só foi possível devido à presença de um espírito comum, ou pela "emergência de um projeto comum" (Palacios, 1995) que agregava os membros daquela comunidade. Com o aparecimento de outros usuários - que não compartilhavam das mesmas preocupações e se mostravam movidos pelo fascínio da curiosidade de vivenciar algo novo - a dinâmica de funcionamento interno foi profundamente alterada, uma vez que foi estabelecido um clima de hostilidade e de disputa de poder entre dois grupos distintos (os visionários e os bárbaros - Stone, 1995) que procuravam ocupar o mesmo espaço de discussão (variável social). Mas como essa disputa foi instituída sem a presença de um espaço físico a ser conquistado? Parece-nos que ela foi efetuada pelo desejo de ocupação desse território simbólico e teve lugar através da aquisição e apropriação de conhecimentos técnicos que pudessem estabelecer diversas formas de controle (de acesso, de performance, de funcionamento do sistema, etc.).

Parece-nos que a mudança da dinâmica social interna da Communitree, com a introdução de elementos e comportamentos sociais não previstos, propiciou, ou melhor, provocou um redirecionamento dos esforços de desenvolvimento de técnicas que tinham inicialmente o objetivo de ampliar a liberdade de expressão e comunicação (momento 1) para o desenvolvimento de técnicas restritivas e de controle social (momento 2) neste novo ambiente virtual. Isto parece evidenciar a inter-relação existente entre as formas em que são estabelecidas as interações sociais e seus desdobramentos (variável social) mediadas pela presença do computador e o desenvolvimento técnico dos meios para atendimento de tais demandas (variável técnica). Percebe-se que neste momento foi instituído um círculo de influência recíproca, uma vez que a necessidade do estabelecimento de mecanismo de controle (promovido a partir da mudança da dinâmica social), ao ter provocado um aprimoramento ou direcionamento do desenvolvimento da técnica, propiciou também mecanismos para que esta mesma técnica, ao ser aplicada, promovesse uma alteração efetiva nas relações sociais estabelecidas a partir de então.

Para uma melhor condução das nossas reflexões sobre o processo que permeou a dinâmica social da Communitree, propomos o seguinte esquema gráfico:










O exemplo da Communitree aponta também para outros pontos de reflexão sobre o tema. O simples aparecimento de uma variável social não prevista ("a invasão dos bárbaros") promoveu toda uma alteração na dinâmica estabelecida, resultando numa reestruturação na configuração social interna da comunidade. O que nos chama atenção neste episódio é, primeiramente, o caráter inédito desses desdobramentos, sua imprevisibilidade, característica esta presente tanto nas causas produtoras da situação (variáveis técnicas ou sociais), quanto nas consequências advindas e introduzidas por este conjunto de circunstâncias (resultados técnicos ou sociais). Um segundo ponto é a constatação de confluência de forças direcionadas para assimilar e suplantar o impacto da nova situação; provocando, desta forma, o estabelecimento de um processo de reconstituição contínua, seja por mecanismos sociais de adaptação (por exemplo, a construção de regras, mudanças de objetivos iniciais, formas de controle, etc.), seja por mecanismos de desenvolvimento técnico (por exemplo, a construção de novos programas de vigilância, de controle, e outros) ou por ambos.

Essa eterna reconstrução de percepções e de "esquemas" de convivência, desencadeados através da introdução constante de variáveis sociais e técnicas no processo, alimenta, por sua vez, a própria dinâmica que sustenta a configuração resultante da Comunidade Virtual. Entretanto, em algumas dessas agregações sociais eletrônicas, nem sempre a configuração social resultante consegue acompanhar o fluxo dos estímulos provenientes das alterações promovidas pelos componentes sócio-técnicos envolvidos. Há situações em que a própria comunidade não resiste à dinâmica acelerada das alterações, seja pela vontade de seus participantes de não desejarem abdicar de seus princípios norteadores e propósitos iniciais de constituição dos vínculos sociais (aspecto social), seja por não conseguir colocar em atividade um conjunto de procedimentos tecnológicos (aspecto técnico) que consiga dar conta das demandas suscitadas pela conjuntura do momento. No caso da Communitree, parece ter sido o conjunto dos dois fatores que promoveu o seu fim enquanto agrupamento social, uma vez que ficou bastante evidente o conflito das propostas e desejos dos "visionários" e o dos "bárbaros", além da ocorrência da impossibilidade técnica dos gerenciadores do sistema em conter os ataques não previstos ao ambiente sócio-informático da comunidade.

Como vimos, a técnica fornece um elemento essencial para o estabelecimento do dinamismo social dentro das comunidades virtuais. Na verdade, a técnica aparece como um fator altamente decisivo nas configurações da sociedade contemporânea, sejam elas virtuais eletrônicas ou não. Consoante com esta formulação e comentando sobre a transformação do processo de apropriação da técnica e do social, Lemos (2001) coloca que:

"A técnica, paradoxalmente, vai desempenhar um papel muito importante nesse processo. Ao invés de inibir as situações lúdicas, comunitárias e imaginárias da vida social, as novas tecnologias vão agir como vetores dessas situações. A forma técnica é obrigada a negociar com o social. Podemos falar numa espécie de transformação da apropriação técnica do social, típica da modernidade, para uma apropriação social da técnica, mesmo que de forma complexa e imprevisível." (Lemos, 2001)

Novamente percebemos o apontamento da característica da imprevisibilidade como um componente presente e resultante desta relação de influência recíproca entre os aspectos técnicos e os fatores sociais. Constatamos também, em paralelo, a presença de um certo "espírito" aventureiro, um desejo de percorrer novos caminhos inexplorados, imprevisíveis, sedutores. As explorações de tais caminhos virtuais, entretanto, se apresentam profundamente "amarradas" tanto às necessidades sociais geradas pelo contexto sócio - histórico da época, quanto às possibilidades técnicas disponíveis. Jones(1995), ao se reportar ao fato, comenta:

"Não obstante, há um senso que nós estamos embarcando em uma aventura criando novas comunidades e novas formas de comunidade, e aquele senso é abastecido através de dois motivos: primeiro, que nós precisamos de novas comunidades e, segundo, que nós podemos criá-las tecnologicamente" (Jones, 1995, p.14)

O reconhecimento da importância das ações promovidas pela emergência de variáveis técnicas e sociais na dinâmica e na evolução dos modelos de agregações sociais parece ter sido uma preocupação frequentemente presente na análise dos autores, estando as possíveis divergências situadas nos graus de influência ou na acentuação em um ou outro aspecto. Em linhas gerais, o que se revela de forma peculiar em tempos contemporâneos, e principalmente através da presença dos fenômenos sociais das Comunidades Virtuais Eletrônicas, é a aceleração dos efeitos de tais influências recíprocas, assim como uma certa mudança no processo de inter-relação e apropriação entre os dois aspectos componentes (Lemos, 2001), caracterizadas por uma convergência sinérgica e tendo como resultados configurações sociais imprevisíveis. Evidentemente que tais asserções ainda se mostram inconclusas, principalmente devido à presença do caráter recente do fenômeno, constituindo-se assim em um vasto campo de pesquisas a ser explorado.


Notas:

"Não se trata somente de fazer parte de comunidades virtuais; de tal modo recordo as conversas e começo a misturá-las com a vida real que as minhas comunidades virtuais fazem parte da minha vida. Fui colonizado; o meu sentido de família ao nível mais fundamental foi virtualizado" p.24 - Rheingold, H., A Comunidade Virtual. Editora Gradiva, Lisboa, 1996.

Stone, A.R., The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age, MIT Press, Londres, 1995.

Rheingold, op.cit.

Ferreira, F. P., Teoria Social da Comunidade, ed. Herder, São Paulo, 1968. p.4.

Ferreira, op.cit. p.4.

Newstetter, apud Ferreira, op.cit. p.2.

McIver, apud Ferreira, op.cit. p.6.

Palacios, M. "O Medo do Vazio: Comunicação, Sociabilidade e Novas Tribos"; in Rubim, A A., Idade Mídia, ed. Edufba, Salvador, 1995, p.101.

Jucá, V. J & Ribeiro, J.C., Hipertextualidade e Cultura Contemporânea - < http://www.facom.ufba.br/hipertexto/cultura.html.> (29/03/01)

Levy, P. O que é o Virtual?, ed. 34, São Paulo, 1996

Levy, P. Cibercultura, ed. 34, São Paulo, 1999

Manzini, E. "Interactivité" e "Virtualité" in Artefacts. Vers une nouvelle écologie de
l'environement artificiel. Paris: CGP, 1991, p.179 a 214

Levy, op.cit. (1999), p.47

Rheingold, op.cit., p.18

Palacios, op.cit.

Levy, op.cit. (1999), p.127

Palacios, op.cit.

Stone, op.cit.

Lemos, A. Ciber-Socialidade. Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea - .(29/03/01)

"Nevertheless, there is a sense that we are embarking on an adventure in creating new communities and new forms of community, and that sense is fueled by two motives: first, that we need new communities and, second, that we can create them technologically"p.14 - Jones, S.J.,"Understanding Community in the Information Age" in Jones, S.J., Cybersociety - Computer-Mediated Communication and Community, ed.Sage, California, 1995.

Lemos, op.cit.



VII. Bibliografia

1. Ferreira, F. P, Teoria Social da Comunidade, ed. Herder, São Paulo, 1968.

2. Jucá, V. J & Ribeiro, J.C., Hipertextualidade e Cultura Contemporânea -
< http://www.facom.ufba.br/hipertexto/cultura.html.> (19/03/00)

3. Jones, S.J., "Understanding Community in the Information Age" in Jones, S.J., Cybersociety - Computer-Mediated Communication and Community, ed.Sage, California, 1995.

4. Lemos, A. Ciber-Socialidade. Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea - .(19/03/00)

5. Levy, P. Cibercultura, ed. 34, São Paulo, 1999

6. _____O que é o Virtual ?, ed. 34, São Paulo, 1996

7. Manzini, E. "Interactivité" e "Virtualité" in Artefacts. Vers une nouvelle écologie de l'environement artificiel. Paris: CGP, 1991

8. Palacios, M. "O Medo do Vazio: Comunicação, Sociabilidade e Novas Tribos"; in Rubim, A A., Idade Mídia, ed. Edufba, Salvador, 1995.

9. Rheingold, H., A Comunidade Virtual. Editora Gradiva, Lisboa, 1996.

10. Stone, A.R., The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age, MIT Press, Londres, 1995.

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