sábado, 23 de fevereiro de 2008

Consumo,logo existo

Maria Luisa Célia E. de Dias

A obra Antropologia & Consumo, organizada por três antropólogas que realizam trabalhos na área do consumo, é o resultado do simpósio Consumo e Construção de Sujeitos e Bens no Mundo Contemporâneo, realizado no Primeiro Congresso Latino-Americano de Antropologia, em Rosário, Argentina, em 2005. A seleção dos textos e os assuntos abordados apresentam o consumo sob vários aspectos, mostrando como o tema é abrangente e como ele permeia a vida dos sujeitos inseridos numa sociedade urbana contemporânea. Os trabalhos aqui reunidos nos mostram como a questão do consumo se entranha na cultura brasileira, na cidadania, na saúde, nos diferentes estratos sociais, e como mobiliza a formação, transformação e consolidação de identidades. As diferentes origens teórico-conceituais e experiências de campo dos 15 autores, brasileiros e argentinos, resultam em uma obra rica, de temáticas diversificadas e surpreendentes. Os artigos denotam amadurecimento teórico, densidade etnográfica, características as quais fazem com que o leitor conheça, através dos textos, como discussões acadêmicas de ponta sobre consumo e práticas investigadas se imbricam.

O livro está dividido em cinco capítulos. No Capítulo I, "Consumo e Cultura Brasileira", traz dois artigos interessantes que abordam o assunto de maneira inusitada. Com o sugestivo título de O Luxo do Povo e o Povo do Luxo: Consumo e Valor em Diferentes Esferas Sociais no Brasil, as autoras Krische Leitão e Pinheiro Machado, tendo como origem duas etnografias aparentemente opostas, investigam qual o significado da pirataria de marcas ou grifes de luxo – símbolos de status e poder –, e em contrapartida a apropriação de itens da cultura popular por profissionais da moda, questionando a democratização das práticas de consumo num país que segundo as autoras se pensa híbrido, cordial e aberto à fluidez e à permeabilidade. No segundo artigo, Mais Feijoada e Samba: Notas sobre a Cultura Negra Brasileira, Rezende Gonçalves e Alves Ribeiro discorrem com ineditismo a questão, tão debatida e polêmica, entre a cultura negra e cultura brasileira, os limites tênues e inconstantes de ambas, problematizando o assunto através da feijoada e do samba trazendo a tona e pondo em xeque algumas certezas sobre como o local e o global se engendram mútua e continuamente através das suas historicidades.

Já, no Capítulo II, "Consumo e Cidadania na Argentina", Ana Wortman nos brinda com uma excelente análise, trazendo à tona as complexas e invisíveis conexões sobre a nova conformação cultural que emerge na Argentina, denominada pela autora de esfera pública paralela, por meio de determinadas práticas e campos culturais – cinema, música e teatro, em seu artigo Sociedade Civil na Argentina Pós-Crise: a Conformação de uma Esfera Pública Paralela. De maneira diversa Pina e Arribas, atentas ao atual momento argentino, refletem sobre o significado e as perspectivas de uma categoria emergente: o cidadão consumidor. No texto O Cidadão Consumidor: o Nascimento de uma Nova Categoria, versam sobre a intersecção das categorias consumidor e cidadão, e como elas propiciarão um consumo mais cidadão, através da abertura de novos espaços reivindicatórios, conseqüência da implementação da lei do consumidor.

O tema "Consumo e Saúde", Capítulo III, prima pela maneira singular com que é tratado pelos autores. O primeiro artigo aborda o assunto por meio de uma etnografia sobre o consumo de imagens fetais, numa clínica de ultrasonografia, descrita e analisada brilhantemente pela antropóloga Lílian Chazan. No segundo artigo o autor Rogério Lopez Azize instaura uma discussão sobre os medicamentos do bem-estar e da auto-estima, como são designados o Prozac, Viagra e Xenical, trabalhando com reportagens, discursos de usuários e dos médicos que conceberam a ingestão desses medicamentos com estilo de vida, ressemantizando a dualidade saúde-doença.

Dando continuidade ao tema, o Capítulo IV, "Consumo e Classe Social", propõe-se a retratar o significado do consumo em esferas sócias opostas. O artigo de Sergio Castilho pondera como é o consumo em classes ditas populares, mostrando que, antes de ser excludente, o consumo, age como fator de inclusão e pertencimento dos indivíduos estudados na sociedade envolvente, definindo identidades e dando a conhecer a sua visão de mundo. O artigo aponta dados e conclusões interessantes, ainda que por vezes exagere no uso dados estatísticos. Ao ler o artigo de Patrícia Gomensoro somos arremessados para o outro lado da dimensão social. Etnografando um grupo de degustadores de vinho, Gomensoro, nos dá a conhecer até que ponto o exercício da degustação torna-se um sinal emblemático que separa os connaisseurs, com percepção esclarecida, das pessoas comuns: é Bourdieu na prática.

Completando a obra, o Capítulo V, "Consumo e Identidades Jovens", como o próprio título faz referência, discute dimensões simbólicas das práticas dos jovens relacionadas com o consumo musical, em Buenos Aires, e o vestuário, na cidade do Rio de Janeiro. A antropóloga argentina Cecília Benedeti traz à baila uma detalhada discussão sobre como o rock contemporâneo argentino pode ser (re)pensado como bem de consumo cultural e como espaço de sociabilidade. Ela também trata da ressignificação de valores nesse campo, mostrando como alguns sinais delimitam uma identidade dita roqueira em certos grupos de jovens urbanos da cidade de Buenos Aires.

Abordando o tema dos estilos de vida, a autora Marcela Pias Andrade percorre centros culturais em determinados bairros da capital portenha, onde investiga e caracteriza as práticas de consumo cultural desenvolvidas por grupos de jovens de estratos sociais médios. Ela analisa como estas práticas delimitam contornos de gosto, hábitos e estilos de vida.

Cidade maravilhosa, morros cariocas, música funk e seus figurinos são as temáticas escolhidas por Mylene Mizrahi, ao etnografar um grupo de jovens participantes de bailes funk dos morros do Rio de Janeiro. A autora mostra como esses itens se imbricam para construir uma identidade jovem urbana por ela denominada de "identidade funqueira". A novidade introduzida pela autora no seu artigo reside em sublinhar a importância da análise das características materiais dos objetos, algumas vezes deixadas de lado quando empreendemos estudos sobre os significados simbólicos.

Eis a questão: por que ler o livro? Porque através de um trabalho teóricoprático muito bem fundamentado os autores resgatam, através de inusitadas e ao mesmo tempo, poderíamos dizer, até triviais práticas de consumo, a alteridade, a diversidade, a produção de significado demarcando a perspectiva cultural da construção dos grupos e dos indivíduos investigados, ligando-os ao aspecto relacional dessa construção. Enfim, é dessa maneira que a obra captura os modelos alternativos, as possibilidades de inclusão, negociação entre os sujeitos, ressemantização, cidadania que o consumo adquire atualmente na sociedade contemporânea.





*Mestranda em Antropologia Social.

Um comentário:

Thiago D'angelo disse...

Olha, Sebah, uma notícia pra ilustrar a questão do consumo como uma necessidade pessoal no que diz respeito à satisfação, a um tipo de vício alimentado pelo ato de comprar e que chega a se tornar uma compulsão:

Consumistas de carteirinha

Pesquisa comprova: muitas mulheres só compram por fatores emocionais

Por Mônica Vitória • 08/10/2008


Suas armas são os cartões de créditos. Seu paraíso, as lojas. Alguns chegam a atingir o nirvana quando vêem as palavras "sale" e "promoção" em destaque naquela roupa de grife ou naquele tênis importado. São os consumistas compulsivos. Provavelmente você deve conhecer um - enrustido ou assumido. Entre as mulheres, o comportamento é ainda mais comum. Segundo a pesquisa "O Consumidor do Século XXI", divulgada nesta terça-feira pelo Ibope Mídia, 21% das brasileiras vão às compras para se sentirem mais calmas e felizes. O levantamento ouviu 3.400 pessoas em 11 regiões metropolitanas do Brasil e concluiu que a população gasta, em média, 15% da renda familiar com compras pessoais - principalmente roupas, no caso das mulheres.


São pessoas que não conseguem controlar seus impulsos diante de uma vitrine, como a estudante de publicidade Mariana Figueira, de 21 anos: "Ir às compras é meu hobby preferido. Como chocolate engorda, controlo a minha ansiedade passeando nos shoppings. Alguns me chamam de patricinha, mas não concordo. Aproveito quando as lojas estão com descontos e gosto de presentear minhas amigas também", confessa ela, que já chegou a gastar R$ 800 no shopping em um fim-de-semana. "Sou viciada em bolsas e sapatos. Se não compro um por semana, não fico feliz. Acho que herdei isso da minha mãe, que sempre foi meio perua", brinca a estudante. Mas a alegria que muitas sentem ao sair do shopping cheias de sacolas pode ser apenas uma ilusão...

A compulsão por comprar tem um nome: oneomania. Segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de 1% da humanidade sofre desta doença. No Brasil, pesquisas da Universidade de São Paulo (USP) mostram que os oneomaníacos chegam a 3% da população e quem mais tende a manifestar a compulsão são as mulheres, os jovens e, recentemente, os internautas. Um traço comum aos oneomaníacos é o impulso desenfreado de obter determinado item, independentemente da sua utilidade ou necessidade real. "É como uma droga. A adrenalina, a ansiedade... Você vê uma coisa na loja e pensa 'tenho que ter aquilo, tenho que ter aquilo'. E com a mesma rapidez que essa vontade de comprar vem, ela se vai. Depois de comprado, o objeto perde totalmente o valor", explica Erika*, onemaníaca em recuperação.

Para Neda Matos, psicanalista da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro, aqueles que consomem por impulso o fazem para "tamponar um vazio": "Pode ser a falta de algo que foi perdido, da perda de alguém, e até de uma dificuldade por não saber que caminho tomar. Em outras palavras, a impossibilidade de não se permitir sofrer", esclarece. "Na sociedade contemporânea, o que se verifica é uma ânsia em ter para ser. Ter uma roupa de grife significa, por exemplo, ser rico, ter status. É como se a pessoa só existisse a partir de um objeto; objeto este ditado pela mídia", completa a psicanalista, que lembra, ainda, que transtornos deste tipo geralmente levam as pessoas a sentimentos de frustração, tédio, solidão e depressão.