quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A tragédia de Beslan e a violência na televisão

A tragédia de Beslan e a violência na televisão

"E tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido." (Hannah Arendt)

Por Elson Rezende de Mello *

Beslan é o novo nome da tragédia. O massacre ocorrido na escola da cidadezinha russa da Ossétia do Norte, no começo de setembro, em que morreram em torno de 338 reféns (entre os quais 156 crianças, além de 31 dos seqüestradores, com mais de 700 feridos) é mais uma etapa na escalada da violência que vai construindo nossa insensibilidade. Os chechenos irromperam na escola com bombas e metralhadoras, empunhando sua antiga luta separatista, e novamente toparam com a fria determinação do presidente russo Vladimir Putin de não negociar. Como no episódio dos reféns no teatro em Moscou, há dois anos, Putin não quis negociar, com a mesma mortandade como resultado. Vontade e desespero assassinos de um lado, frieza e cálculo político do outro marcaram mais essa escaramuça que se projetou nas televisões do mundo.

Novamente, cenas violentas e de terror ganham as telas das televisões, com transmissão ao vivo e até com projeção de vídeo realizado pelos próprios seqüestradores, com imagens aterradoras. Imagens instrumentalizadas como parte da estratégia ideológica e política, não só pelo uso intencional feito dela pelos chechenos e pelo governo russo, mas também revestindo a cobertura jornalística.

As imagens da tragédia, ao percorrerem o mundo instantaneamente, se desgarravam de sua realidade, de sua referência mais imediata, e se projetavam simbolicamente no imaginário dos telespectadores, integrando-se ao que aí - principalmente depois do fatídico 11 de setembro de 2001 - se forja em torno do terrorismo. Perdiam seus significados mais diretos para se transformarem em significantes que dariam suporte às significações que o poder quer, que até os seqüestradores chechenos quiseram inicialmente, e que não conseguiram controlar.

Essa cadeia de significantes e significados que o grupo separatista buscou destapar, qual caixa de Pandora saiu de suas mãos, foi apropriada por outras forças de poder, identificadas no presidente Putin e contempladas nos interesses difusos de uma cruzada contra o terrorismo. Uma cruzada que prega o choque de civilizações, tendo à frente o presidente americano Bush. Essas forças estiveram sempre presentes nas transmissões das televisões e da cobertura da mídia em geral mundo afora, sinalizando o campo possível das interpretações.

A TELEVISÃO SERVE A DOR

A exposição da violência e do terror na televisão constrói o caminho ou a saída para a solução de força, ou até a justifica. Constrói a face política da violência ou a violência da política. E os telespectadores se acostumam, procurando sentidos atrás do que não tem sentido, no que é exposto para dar vazão ao irracional e que quer chegar até eles através do irracional, das emoções e sentimentos. Para isso a televisão é boa: esses são seus grandes momentos, a transmissão ao vivo e em tempo real de eventos grandiosos em suas conseqüências para muita gente (e, portanto, melhor audiência) ao redor do mundo. A televisão serve a dor, cutuca a emoção, flerta com o sensacionalismo. É quando ela exerce toda a sua potencialidade.

Mas o sentido, o pensamento não estão nestas imagens tremendas, nessa dor que vem da dor exposta. A significação maior é construída pelo poder e pela mídia, que moderna e indisfarçavelmente são inseparáveis.

Para tentar entender e até neutralizar os efeitos da violência e do terror expostos é imprescindível transcender as imagens da telinha, buscar contextualizar os acontecimentos. Não para justificá-los, mas para não embarcar nas interpretações construídas pelo poder e seus agentes. Essa violência sub-reptícia tem um poder de penetração ainda maior que as imagens que lhe servem de base.

As imagens de que a modernidade é pródiga caíram, há muito, nas malhas do poder. Em Beslan, essas imagens terríveis, principalmente por envolverem crianças, deram base para as ameaças do terror, ou foram diretamente instrumentalizadas para essas ameaças, e, citando reportagem da revista Carta Capital, "as potências inflam e distorcem a ameaça do terror para fazer dela um instrumento de poder".
Além do mais, essa mesma modernidade das imagens e dos recursos afins, de que os meios de comunicação se servem para se aproximarem da realidade, ou mesmo construí-la, conferem um caráter instantâneo à cobertura. Ele deixa os eventos ininteligíveis, e assim é necessário interpretá-los ao mesmo tempo em que são relatados.


As interpretações são dadas pelos jornalistas que estão no olho do furacão, e no caso da escola de Beslan, isso ficou patente. Os repórteres e fotógrafos entraram na escola junto com os soldados e as equipes de resgate, entrevistando crianças traumatizadas e parentes enlouquecidos pela dor. Antes, entre o evento e sua divulgação, havia algum tempo para pensar.

Na atualidade dessas imagens, inseridas nas redes de informação e nos fluxos de consumo, a busca da audiência a qualquer preço se impõe, e com isso se acelera o que é pertinente e é de bom senso transmitir. Há uma cultura que aparentemente vai se ampliando a cada transmissão mais ousada. Tragédias como as relatadas já tiveram seus antecedentes, que prepararam os telespectadores. Assim como cenas de Beslan, por sua vez, preparam para outras tragédias, ainda mais fortes. Já que os telespectadores vão se tornando insensíveis, para cativá-los como audiência serão necessárias mais cenas fortes - de violência e terror.

SOBRETUDO, É PRECISO PENSAR

Essa violência atual, que se transforma em tragédia pela magnitude que adquire, tem um ingrediente a mais que a amplifica: a cobertura dos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão. A presença da televisão inclusive distorce a compreensão do fenômeno que é narrado, e tem outra incidência na matriz da violência: muitos atos violentos são planejados nos mínimos detalhes para se refletirem na tela de televisão, onde adquirem sua plena realidade. Atos que existem pela e para a televisão.

Em Beslan, a ética jornalística também esteve em causa. Houve excessos na cobertura ao vivo e manipulação sobre o que era conveniente apresentar. A mídia perde seus limites, sob o pretexto da liberdade de informar, mesmo porque está difícil discutir os limites do que deve ou não ser transmitido. Pouco a pouco as fronteiras do permitido e do bom senso são forçadas, por variados interesses. Na sociedade do consumo e do espetáculo, o interesse maior reside na espetacularização de todos os temas ? e a violência se presta plasticamente a essa espetacularização.

Nisso, as imagens dos aviões atingindo as torres gêmeas em Nova Iorque, da guerra do Afeganistão, do Iraque, do conflito Israel-Palestina, e agora de Beslan, se transformam em símbolos a marcar nosso imaginário neste século e milênio que se iniciam. Assim como imagens da Segunda Guerra Mundial e do Vietnã, entre outras, forjaram o imaginário do século passado e fazem parte do álbum de figurinhas do que somos.

Por tudo isso, só a palavra é veículo de pensamento e nos permite fugir da unidirecionalidade do não-sentido das imagens, e principalmente das terríficas imagens de Beslan. Como escreve a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl em Videologias, livro que recolhe artigos seus e do jornalista Eugênio Bucci: "Ocorre que o tipo de produção de sentido que é próprio das imagens induz o sujeito a um modo de funcionamento psíquico que prescinde do pensamento. Brevemente, eu diria que isso ocorre porque o imaginário funciona segundo a lógica da realização dos desejos. Cada imagem apresentada proporciona ao espectador um microfragmento de gozo ? e a cada fragmento de gozo, o pensamento cessa".

Nenhum comentário: