quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Espetacularização midiática da crueldade e a ordem da representação: o filme Contra todos

Espetacularização midiática da crueldade e a ordem da representação: o filme Contra todos
Renato Cordeiro Gomes




Há uma conhecida declaração de Martin Scorsese – “Me pergunto por que se vêem hoje cada vez mais efeitos especiais que mostram corpos mutilados ou em decomposição”. Referia-se o cineasta a um suposto movimento de naturalização da violência alentada pela guerra das imagens e pelo recrudescimento das polêmicas sobre a violência na televisão e no cinema. Houve mesmo nos anos 1990 uma quantidade de produções cinematográficas que explorava a violência tomando
o espectador de assalto (Quentin Tarantino, Oliver Stone, David Fincher, para citar alguns diretores), além de uma obsessão pelo serial killer.
Essa onda atinge também a televisão e o cinema brasileiros, gerando, de modo semelhante a outros países, o debate sobre a influência das imagens de violência nos espectadores, principalmente em jovens e crianças, enquanto recrudescia também a violência urbana, que se dava no cotidiano do cidadão, a quem eram oferecidas doses maciças de imagens violentas nos noticiários televisivos e na própria ficção veiculadas pelos meios de comunicação massiva. Estariam esses meios pondo em imagens atos de crueldade até o limite do suportável? Poderíamos colocar no mesmo plano todo tipo de imagem agressiva, sem levar em conta a intenção, o contexto e o sentido da ação mostrada nas telas? (Lembre-se, entre parênteses, a campanha veiculada nas TVs que pretende pressionar os grandes anunciantes para “não financiarem baixaria” na telinha. Tal campanha é parte de uma discussão mais ampla sobre a ética dos/nos meios de comunicação).
Tal tipo de debate que considera a manifestação de uma desmesura inédita da violência nas telas, muitas vezes encara esse fenômeno como se afetasse unicamente
a ordem da representação e da ficção, como se as transformações históricas e
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a representação da violência não tivessem a ver estritamente com a violência efetiva de nossas sociedades, como adverte o crítico francês Olivier Mongin em relação à discussão em seu país (Mongin, 1999: 15).
Frente ao paroxismo das imagens violentas e ao nosso desejo de contemplar o mundo e de habitá-lo, o crítico francês pergunta se estamos condenados a dar voltas ao redor de uma violência que se pretende cada vez mais natural e que já não se apresenta como experiência. “Não se está condenado a reciclar a violência quando
não se logra sair dela?”. Ou: “como reciclar a violência se o excesso e a irrisão fracassam, incapazes de interromper o fluxo das imagens e da violência? (Mongin, 1999: 115).
Essas indagações servem aqui de mote para buscar apreender relações entre
crueldade e violência e sua mediação e/ou construção pela cultura midiática, sobretudo naqueles produtos que tematizam e dramatizam a espessura do espaço urbano, o que permite evocar o binômio comunicação e crueldade-violência, ou seja, as formas de violência que se manifestam nas cidades e as modalidades com que o fenômeno é representado pelos meios de comunicação de massa. Tais representações
espraiam-se também pela cultura popular, pela arte, pela literatura e outras formas do discurso letrado, mas interessam, particularmente, aquelas representações veiculadas pela mídia, ao mesmo tempo em que se sabe que real, ou representada pela mídia ou pela arte, a violência (restringe-se aqui ao caso do Brasil) faz parte dos imaginários urbanos contemporâneos, pondo em causa o sonho ilustrado e utópico de uma cartografia primeira de uma comunidade imaginada (Anderson) entre nós. No sentido do contexto deste início do século XXI, fala Martín-Barbero (2002: 21) da fascinação pública com a violência e como esta tem passado a integrar os processos
de comunicação nos centros urbanos, corroendo profundamente as identidades individuais e coletivas. Os meios e os medos tocam-se como mobilizadores sociais, transfigurando as formas em que se vive o espaço público e privado, e as narrativas que dão conta deles (Moraña, 2002: 11). No ensaio “La ciudad que median los miedos”,
Martín-Barbero, falando de Bogotá, adverte que os meios de comunicação, ao tratar da violência generalizada vivida como um processo banal com normas e regulações, vivem dos medos, do terror, e os exploram de forma doentia, agravando a desinstitucionalização da violência e colaborando na expansão do sentimento de impotência em relação a uma ação coletiva e no constrangimento do indivíduo ao território doméstico e a si mesmo (2002: 21). Para Barbero, a reiterada presença do ato violento nos discursos sociais remete, por um lado, à sua banalização, e por outro à necessidade psicológica de sobrepujar o trauma permitindo sua assimilação como experiência (2002: 23).
Com as devidas proporções, essas observações cabem à realidade de grandes centros urbanos brasileiros e nossos modos de veiculação da violência pela mídia, que confirmam o espaço urbano como palco da violência e “educam” o indivíduo
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na sua naturalização, ao mesmo tempo em que camuflam o conflito social – adverte Teixeira Coelho em A imaginação e o capital cultural da violência no Brasil (2002).
Ao fiarmos no senso comum (segundo Deleuze, em A lógica do sentido, o senso comum supõe uma função, uma faculdade de identificação, que relaciona qualquer diversidade com a forma do Mesmo; o senso comum identifica, reconhece, assim como o bom senso prevê) que acaba sendo veiculado pela imprensa, pela televisão, e é apreendida pela cultura midiática de um modo geral, a crueldade é quase sempre associada à violência, ou mais ainda, tomada como seu sinônimo. Há mesmo uma equivalência intercambiável entre os dois termos, que ganham conotações associadas a fazer mal, atormentar ou prejudicar; ou ainda a terror e, como adjetivo (cruel, violento),
aponta para insensível, desumano, tirano. Estão aí concretizando tais acepções a personagem Nazaré, da telenovela Senhora do destino, que a TV Globo exibiu com altos índices de audiência, contribuindo para aumentar toda uma tradição de vilões de folhetim, que encarnam o mal absoluto (ver neste sentido a matéria “As flores do mal”, de Luiz Caversen, na Folha de S. Paulo, Ilustrada, 03/04/2004, que trata dos vilões Laura e Renato, da telenovela Celebridade). O cinema vem explorando também tais personagens. As imagens a eles associadas na telinha e na tela grande contribuem para reforçar essa relação entre crueldade e violência.
Imagens que sublinham tal relação podem ser recortadas de inúmeros filmes
do cinema brasileiro da Retomada. Exemplos: corpos mutilados antecedem a seqüência em que um cão policial caminha, cheirando o sangue derramado pelo chão do presídio, no filme Carandiru, de Hector Babenco; corpos mutilados e ensangüentados
proliferam na narrativa ágil e clipada de Cidade de Deus, de Fernando Meireles e Katia Lund.
A enumeração poderia ir ao infinito e levaria qualquer um a associar violência e crueldade, principalmente em imagens, como as citadas, em que aparecem corpos mutilados e muito sangue. A redundância e o paroxismo desse tipo de imagem permitem
evocar aquela pergunta do crítico francês se estamos condenados a reciclar a violência/crueldade sem conseguir sair dela, gerando mais e mais violência, ou mais imagens violentas, traços de uma brutalidade humana que se retroalimenta pelas doses servidas diariamente pela mídia. Tais aspectos remetem à banalização da violência, cujo caráter exibicionista pode despertar a fascinação pública da própria violência, que o senso comum identifica e reconhece como um dado da realidade imediata, quase uma prova de verdade de que aquelas representações coincidem com a própria realidade: haveria mesmo uma correspondência perfeita entre as duas instâncias.
Esse tipo de posicionamento “naturalista”, que hoje é lugar comum nos produtos
da cultura midiática, levou Antonin Artaud, quando formulava suas teorias do Teatro da Crueldade a perguntar ironicamente: “será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?” (“Le théâtre et la cruauté”, de maio de 1933). Ao constatar a decadência do teatro que perde sua eficácia, desprezado pela elite e
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abandonado pela multidão, que prefere o cinema, o music-hall ou o circo, Artaud propõe um teatro de ação extrema, que assedie a sensibilidade do espectador, para renovar o “espetáculo total”, um espaço bombardeado de imagens e sons. Requer para esse “novo” teatro uma linguagem que vá além da palavra fundante da cena tradicional, linguagem essa marcada ao mesmo tempo pelo excesso e pela precisão. No final desse texto, faz um apelo no sentido de obter recursos materiais e financeiros para a realização desse teatro (da crueldade), e oferece como cláusula ameaçadora justamente a frase citada. Deste modo, vemos que o que ela diz não caracteriza, na perspectiva de Artaud, a crueldade. Referia-se àquele tipo de teatro que dominava a cena burguesa, que carreava todos os recursos para proporcionar divertimento.
Artaud irá, então, reivindicar um teatro “novo” que rejeita a encenação tradicional,
verista ou ilusionista, o que equivale à rejeição da “representação” como mimetismo (era apenas esse teatro que merecia subsídios financeiros? – era esse o subtexto daquela frase). Ao apelar para uma renovação da vida através do teatro, aliava-se à preocupação metafísica, mística até; para ele, o Mal se reduz ao Mal único, ao sofrimento de existir.
Evoca-se, aqui, o Teatro da Crueldade, com o objetivo de circunscrever melhor o sentido de crueldade-violência na cultura midiática contemporânea. Para Artaud, não significa teatro de terror e de sangue, como o senso comum explorado pela mídia
concebe. Não se trata absolutamente de uma crueldade física ou mesmo moral, mas, antes de tudo, de uma crueldade ontológica, ligada ao sofrimento de existir e à miséria do corpo humano. Essa crueldade, entretanto, não exclui sistematicamente a primeira; pode eventualmente recorrer ao horror, ao sangue derramado, etc, mas não se detém nessa etapa provisória e limitada, porque é de essência metafísica. No teatro, segundo Artaud, pode haver sadismo, assassinatos, atrocidades, mas não necessariamente, e caso eles ocorram apenas abrem caminho a um mal muito mais necessário. Essa visão da condição humana em perspectiva de contínuo dilaceramento indica que a matéria e o corpo humano são essencialmente maus.
Nesta ótica, a crueldade significa a procura das contradições destruidoras através de recurso sistemático da dissonância. É, portanto, a expressão do conflito primordial e incessante que dilacera o homem e o mundo. O que a circunscreve na atualidade é o fato de que vivemos todos em contínuo mal-estar e, por conseguinte, precisamos de uma manifestação artística ou cultural que nos auxilie a superar nossa angústia, como as festas teatrais da Antigüidade ajudavam os homens a exorcizar seu medo dos deuses.
Tal procedimento relaciona-se ao paroxismo. Crise, delírio, furor, espasmo, dilaceramento, frénésie, exaltação violenta, transe: tudo isso leva a ver a crueldade como expressão de um paroxismo.
Evidentemente, não é este o sentido com que a crueldade/violência passa a elemento recorrente na cultura midiática contemporânea, embora, para expressar a
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crueldade, lance também mão do paroxismo (via redundância, repetição, via séries, via exagero – traços que se constatam facilmente em produtos televisivos e fílmicos, ou da imprensa escrita), para representar a “realidade” em seu caráter inelutável. A apresentação bruta da realidade brutal faz-se com a mediação de um discurso, sem metafísica, sem transcendência. A crueldade estaria então não só no tema, ou na realidade
a que remete, mas também na enunciação, expressa pelo explícito, não abrindo, quase sempre, espaço a comentários moralizantes, edificantes, ou religiosos.
Esse diapasão que certa cultura midiática explora aproxima-se, portanto, de um padrão que se quer cruel, aquele que pretende colar-se ao que é considerado “real”, atrelando-se a uma possível prova da “verdade”, que ultrapassa a linguagem, a serviço da ilusão extratextual. A linguagem busca reduplicar o observado, ou mesmo o vivido, negando, de certa forma, o caráter ficcional do relato. A ótica adotada parte de um a-priori, a “realidade” observada, que se impõe. A narrativa então é a representação documental desse “real”, em sua materialidade, cuja intenção reside em denunciar a miséria e o horror de um mundo fechado em si mesmo, que é violento e, conseqüentemente,
cruel. Exemplo típico do que falo é o filme Cidade de Deus, adaptação do romance homônimo de Paulo Lins, de 1997. Ambos relatam, com requinte de detalhes, a ação terrível que horroriza o leitor/espectador, mesmo aquele já acostumado
a esse tipo de relato, de longa tradição folhetinesca e melodramática, popularizada pela mídia. Em ambos dá-se a narrativa direta da crueldade, pelo paroxismo das imagens, pelo excesso, procedimento muito comum nos produtos midiáticos, que entendem a crueldade pelo explícito, pela repetição, que abdica, estrategicamente, da síntese. Busca-se um realismo atrelado ao efeito do real (para usar a expressão de Barthes), que privilegia a representação mimética da realidade referencializada e se encaminha para o documental (próximo do naturalismo tradicional), criando a ilusão da realidade. A brutalidade é tema e procedimento discursivo que põe em prática a sobre-exposição representativa, ligada ao paroxismo da realidade.
Algumas anotações tomadas ao filósofo Clément Rosset, lidas em O princípio da crueldade (2002), podem ajudar a complexificar a problemática da representação da crueldade-violência pela mídia. Propõe ele “o princípio da realidade suficiente”, que implica encontrar o segredo da própria realidade nela mesma, e não fora do real, que não é, portanto, insuficiente. A argumentação do filósofo francês considera a experiência imediata, desprezada, segundo ele, pela filosofia, que duvida da plena e inteira realidade do real. O caráter incompreensível do real vem corroborar com o pouco caso que a filosofia lhe dispensa. Se li corretamente, elege como ponto fundamental de seu raciocínio o “real”, enquanto um a-priori, um real que existiria enquanto dado empírico, exterior ao próprio sujeito.
A crueldade estaria relacionada ao registro do implacável e do desespero: “desespero
pelo qual não entendo uma disposição de espírito voltada para a melancolia, mas, longe disso, uma disposição absolutamente refratária a tudo o que se assemelha
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à esperança ou à expectativa” – assevera o filósofo (Rosset, 2002: 9). Deste modo, o caráter incompreensível da realidade reside, antes de tudo e principalmente, em seu caráter doloroso. O mais cruel da realidade não reside em seu caráter intrinsecamente cruel, mas em seu caráter inelutável, isto é, indiscutivelmente cruel (Rosset, 2002: 19). E acrescenta:
Por “crueldade” do real entendo, em primeiro lugar, a natureza intrinsecamente
dolorosa e trágica da realidade; (...) basta-me lembrar o caráter insignificante e efêmero de toda coisa do mundo. Mas entendo também por crueldade do real o caráter único, e conseqüentemente irremediável e inapelável, desta realidade – caráter que impossibilita ao mesmo tempo de conservá-la a distância e atenuar
seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela. Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e ensangüentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos ordinários (...). Assim, a realidade é cruel – e indigesta – a partir do momento em que a despojamos de tudo o que não é ela para considerá-la apenas em si-mesma. (...) o que é cruel no real é de certo modo duplo, por um lado ser cruel, por outro lado ser real. (...) Parece que o mais cruel da realidade não reside em seu caráter intrinsecamente cruel, mas em seu caráter inelutável, isto é, indiscutivelmente cruel (2002: 17-18).
Para o filósofo, o inelutável não designa o que seria necessário por toda a eternidade,
mas isto a que é impossível furtar-se no instante mesmo (a imediaticidade).
Diz o dicionário: Cruor, -oris: sentido próprio: carne crua, ainda em sangue; depois cruor especializou-se no sentido de sangue (derramado ou coagulado), charco de sangue (como em Cícero); sentido figurado: carnificina (como nas Metamorfoses, de Ovídio). Crudelis, -e (adj.): que gosta de fazer correr sangue, e daí: cruel, desumano, insensível. Crudus, -a, -um (adj.): 1. sangrento, ensangüentado, e daí: 2. cru, encruado,
não cozido; 3. que faz sangrar, correr sangue, daí: cruel, violento, desumano; 4. não digerido, que digere mal, que comeu demais.
Nesses sentidos que a lição filológica autoriza (estabelecida a partir da etimologia
evocada por Rosset), pode-se ressaltar a relação da “crueldade” com “sangue” (relembre-se a frase de Artaud, ou ainda a seqüência do cão cheirando o sangue ainda quente dos prisioneiros mortos no massacre do Carandiru, no filme homônimo de Babenco) e com a expressão clicherizada “verdade nua e crua”, aquela intrínseca à realidade nua e crua, em seu caráter inelutável, imediato, que se apresenta sem mediação, que a torne palatável, ou apaziguadora. O “real” apresenta-se de modo totalizante, impositivo, violento, sem consolos humanísticos, ou religiosos, sem transcendência, e que faz sangrar (vale aqui a metáfora).
Se no romance de Paulo Lins se constata a exposição midiática do aconteartigo
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cimento – o que sobredetermina o andamento veloz da ação, agregando-lhe um valor hiper-realista, como quer Wander Melo Miranda (2002: 185), por outro lado o olhar distanciado, mas de dentro do mundo fechado que é mimetizado, em sua imediaticidade, não é capaz de trabalhar a síntese, problemática de que também se ressente a versão cinematográfica de Fernando Meirelles e Kátia Lund. A ânsia de ser porta-voz da verdade que regula aquele mundo à parte faz proliferar, paroxisticamente,
as micro-narrativas que se sucedem quase num moto contínuo, a reproduzir séries de um mesmo modelo. Tanto no filme quanto no romance que lhe serviu de base, a linguagem está a serviço da ilusão extratextual e, em seu caráter tautológico, está presa à materialidade dos fatos. A redundância, presa ao objetivo de mostrar exaustivamente as imagens da violência, como a exigir “um pouco de sangue verdadeiro”, é procedimento discursivo recorrente e visa a denunciar a presença
ubíqua do crime organizado e a exclusão social, só possível de ser superada pela ação individual e exemplar do personagem “bom”, que, como prêmio, pode sair daquele círculo vicioso e determinista. Reafirma-se um sistema maniqueísta que estabelece e hierarquiza o bem e o mal, valores de um sistema centrado. O excesso de casos narrados é diretamente proporcional às manifestações da violência, que é essencializada, a indicar uma “verdade” que só comporta esse aspecto. A representação direta da realidade documentada barra o jogo ficcional. E nisto estaria a crueldade, a crueza dessa realidade, que é mostrada diretamente, brutalmente, com seus horrores e fealdades; por isso, pode ser “cruel”, ou seja, pode apresentar cruamente, com sangue
ainda, o que ele julga ser a verdade nua e crua. (A realidade mimetizada acaba sendo redutora desse mesmo real, como provam as reações em relação ao filme, de grande sucesso de público, que gerou, entretanto, mais preconceito e atitudes de exclusão, julgando que a Cidade de Deus fosse “apenas” o lado violento e bandido que a narrativa cinematográfica “cruelmente” revelou).
Essa superficialidade pitoresca de Cidade de Deus não é a opção de Contra todos, longa-metragem de estréia do cineasta Roberto Moreira, que chegou ao circuito comercial já coberto de prêmios, como o de melhor filme do Festival do Rio de 2004. O filme foi realizado com a associação à produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles. A unir os dois filmes, além da produção, que funcionou como marketing, o tratamento naturalista e a temática da violência da periferia urbana, dramatizada também com paroxismo, mas contraditoriamente com despojamento, opção estética que sublinha, em vez de aliviar, a ação cruel dos personagens. Essa ação articulada em “planos ágeis e cortes secos, tudo como se fosse flagrado por um documentário de observação bruta”, como observou Carlos Alberto Mattos, “se desenvolve numa montanha russa de surpresas, numa violenta espiral de enganos e vinganças” (Jornal do Brasil, 26/11/2004, Caderno B: 6).
O filme procura descrever como a violência se dissemina dentro de uma família
e acaba por levar à sua destruição. A ação se localiza em um bairro periférico
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de São Paulo porque ali há uma situação-limite: a presença do Estado é quase nula e a violência está completamente incorporada ao cotidiano. A narrativa atenua a idéia de pertencimento a uma sociedade; o Estado deixou de dar a esses cidadãos (os personagens) a segurança que, por definição, lhe toca garantir; debilitam-se os motivos de pertencimento que sustentam o contrato social, tendo por conseqüência a desconfiança extrema que origina a violência, provocando a guerra de todos contra todos. A violência urbana indica que o Estado não está em condições de garantir a paz entre os membros da sociedade (Sarlo, 2002: 208).
Neste sentido é que a ação dramática de Contra todos concentra-se praticamente ao microcosmo familiar, mas organicamente ligado à cidade. O filme tem a ambição de representar o processo que nega às personagens a oportunidade de transformação. São as conseqüências da segregação social: viver à margem embrutece e desumaniza. Essa situação de personagens sem saída, à mercê de um destino opaco e cruel, tem se revelado uma das vertentes atuais da ficção brasileira – declara Roberto Moreira numa entrevista. E completa: “Queria entender como as pessoas violentas vivem a violência. A violência individual leva à aniquilação de todos, de uma família inteira. O filme mostra a história de um matador, Teodoro, que destrói todas as suas relações com familiares e amigos por causa de sua ‘profissão’”.
O espaço não constitui um mero cenário, mas incorpora a barbárie desnorteada da periferia e do centro de São Paulo, como um meio orgânico em simbiose com os personagens (Coli, 21/11/2004, Mais!: 2). Ao partir de um foco bem concreto, ou seja, as relações familiares e de amizade tecidas por um grupo de baixíssima classe média numa região insegura da violenta São Paulo, como observa Coli, esse foco nunca sai do campo de visão; seu rigor evita mergulhos tangenciais na favela ou em ambientes de gente rica. Há mesmo um vírus abominável que corrói todas as relações. “Todas as relações estão rotas, podres, e os episódios da história surgem como as circunstâncias dessa decomposição”. A realidade inelutável impõe-se numa tensão permanente, feita de pulsões sem artifício, numa espécie de realismo, que, entretanto, o transcende. O tom realista e quase documental de Contra todos é a forma encontrada por Moreira para neutralizar os extremos emocionais dos personagens, sem que parecesse um “melodrama mexicano”, nas palavras do diretor. Outros pontos que contribuíram para o naturalismo da história são o uso da câmara digital nas filmagens, a ausência de gravações em estúdio e a construção de personagens e roteiro baseada na improvisação.
Daí vem a crueldade, pela representação da brutalidade crua, que é uma constante
sempre pressuposta. Cena exemplar, nesse sentido, é a que um açougueiro descreve como matar uma galinha para preparar um molho pardo. Mostra, em si mesmo, o modo de espichar pescoço e onde talhar para extrair o sangue. A frieza teórica da receita incorpora a violência num procedimento civilizado, mas não a elimina. A ferocidade não some com a civilização; dissimula-se apenas, metaboliartigo
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zada – ressalta Jorge Coli, em sua coluna “Ponto de fuga” (Folha de S. Paulo, Mais!, 21/11/2004: 2).
Na guerra de todos contra todos, nada pode ser injusto; força e fraude são duas virtudes cardeais. O filme abole regras, leis, justiça, para que melhor sobressaiam os desejos e os ímpetos humanos (lembra, com as devidas diferenças de contexto e propósitos, o filme A lei do desejo, chave na obra de Almodóvar: nada impede a lei do desejo, que comanda as ações humanas). As trajetórias de cada um tornam-se erráticas e seus cruzamentos desencadeiam catástrofes (Coli, idem, ibidem).
Ao naturalizar a violência e seu correlato a crueldade, com “um registro cru, direto, limpo, verdadeiro e defendendo um cinema menos teatral” (palavras do diretor no site de divulgação www.contratodos.com.br, acesso em 20/11/2004), Contra todos mostra a capacidade que a sociedade brasileira tem de reciclar a violência e como as imagens (tanto cinematográficas como televisivas, poderíamos acrescentar) contribuem para isto. “Quando a violência é reciclável, a sociedade pode sobreviver a ela, não cedendo sob seu peso acumulado à condição de que os heróis substituem os assassinos e os guerreiros” (Mongin, 1999: 121). Não se sai da violência exibindo as imagens ilusórias e efêmeras do êxito, como acontece em Cidade de Deus, com a imagem do bem encarnada pelo favelado negro e pobre que vira fotógrafo para documentar
aquela realidade terrível e cruel; o filme de Fernando Meirelles não resiste à cilada moralista (que será a tônica da série Cidade dos homens veiculada pela TV Globo e derivada do sucesso do filme, na tentativa de reciclar a violência, minimizada na vida dos adolescentes interpretados pelos mesmos atores de Cidade de Deus). Contra todos abdica dessa cilada, uma vez que o diretor se recusa a julgar moralmente os personagens, que podem ser contraditórios, não contaminados por bons sentimentos – o que reforça a crueldade. Numa narrativa que se funda num mal-estar crônico dos personagens, não há mesmo possibilidade de redenção para eles. A falta de cumplicidade
aliada ao registro cru da realidade implica também a negação ao público da empatia (o terror aqui não se alia à compaixão). Ao sublinhar tal aspecto associado ao sentido da descrença que alcança o sadismo, Marcelo Hessel observa: “Ao optar pela condenação de todos, Moreira nega ao público a empatia” (“Um bom filme enfrenta a realidade”, http://www.omelete.com.br, acesso em 18/11/2004). Esse aspecto anticatártico, estranho para uma história de traição e morte familiar, fratricida, em que a violência em seu paroxismo “não é apenas um dado social, mas um modo de vida” (como declarou o diretor do filme), contribui para a construção da crueldade, que advém da própria realidade inelutável, irremediável, em sua imediaticidade, a coisa mesma privada de seus ornamentos ordinários, como requer Clément Rosset (2002: 17). A opção pela câmera digital sem suporte aproxima o filme da linguagem do documentário, mais direta e menos teatral, e está a serviço da representação de uma realidade que é cruel e indigesta a partir do momento em que é despojada de tudo que não é ela, para considerá-la apenas em si mesma (Rosset, 2002: 18). “Sem
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nada de tese ou de demonstração, o filme não depende nem sequer de seu próprio enredo, concebido como uma espécie de ‘whodunit’ meio inútil”, segundo a assertiva de Jorge Coli (2004: 2).
A dramatização do princípio de crueldade como diretriz da organização formal pode ser entendido como violência sádica, agressividade, que as ações dos personagens
aliadas à contundência das imagens cruas, revelam, e, por outro lado, reside no caráter irremediável e inapelável da realidade que se procura representar, mas acaba pondo em questão os próprios limites da representação, ao mesmo tempo em que torna a realidade inelutável e impossível de ser atenuada ou afastada (Dias, 2004: 18). Essa realidade, em que se cruzam o espaço público e o espaço privado, apresenta-se como crua, indigesta, de que o filme de Roberto Moreira não pretende fugir. Se a violência pode ser assimilada como experiência, nada se assemelha à esperança e à expectativa de uma saída compensatória. As imagens não tornam a crua realidade palatável, apaziguadora (daí ser anticatártica).
O filme torna-se exemplar da crescente espetacularização midiática da crueldade,
ao explorar a violência e o excesso, que integram os processos de comunicação nos centros urbanos, marcados pela heterogeneidade que altera os modos de simbolização e ritualização dos laços sociais, cada vez mais afetados pelas redes comunicacionais e pelos fluxos informacionais e estreitamente ligados aos processos que corroem as identidades individuais e coletivas (Martín-Barbero, 2004: 258). Ao dramatizar a violência-crueldade na espessura do espaço, que é a cidade, produtos da cultura midiática contemporânea revelam o desordenamento da vida urbana, o desajuste entre comportamento e crenças, as novas formas de sentir, para além dos modelos racionais dos planejadores e dos poderes constituídos e seus controles sobre a vida nas cidades, que acabam possibilitando a existência de fissuras por onde eclode a desordem das experiências, impossíveis de administrar (Gomes, 1999: 210). Se a cidade foi, paradoxalmente, enquanto utopia e pesadelo, uma questão central da modernidade, continua a ser hoje o lugar das mutações para compreender a sociedade e o próprio homem. Como formula Martín-Barbero (2004: 278), nossas cidades são hoje o ambíguo, enigmático cenário de algo não representável nem a partir da diferença excludente e excluída do autóctone, nem da exclusão uniformizadora e dissolvente do moderno.
Renato Cordeiro Gomes
Professor da PUC-Rio
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Filmografia
Carandiru, de Hector Babenco. 2003.
Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund. 2001.
Contra todos, de Roberto Moreira. 2004
Resumo
Toma-se como ponto de partida a naturalização da violência identificada à crueldade e alentada por sua desmesura nas mídias, afetando a ordem da representação, para indagar-se se não se está condenado a reciclar a violência quando não se logra sair dela. Busca-se apreender relações entre crueldade-violência e cultura midiática, sobretudo em produtos que dramatizam a espessura do espaço urbano, por sua vez afetado pelas redes comunicacionais e fluxos informacionais, como estuda Martín-Barbero. Considerando os sentidos de crueldade, do senso comum fixado pelas mídias, ao formulado por Clément Rosset, privilegia-se o filme Contra todos, de Roberto Moreira, e sua recepção mediada pela impressa escrita e pela internet. No limite, estão em pauta as relações entre mídia, crueldade-violência, cidade contemporânea e suas representações.
Palavras-chave
Crueldade; Violência urbana; Espetacularização midiática; Excesso; o filme Contra todos, de Roberto Moreira.
Abstract
Media hype and the order of representation: the film Contra todos
Taking as a starting point the banalization of violence vis-à-vis cruelty, fuelled by excessive media hype - which consequently affects the order of representation, this paper ask if we are not in danger of recycling violence, when we should be moving away from it altogether. It is worth capturing the relationship between cruelty-violence and mass media, particularly in products that aim to dramatize the urban space, which in turn is affected by communications networks and the flow of information, as studied by Martín-Barbero. Considering the meanings of cruelty, from those commonly understood and established by the media, against those defined by Clément Rosset, one should highlight the film “Contra Todos” directed by Roberto Moreira, and its reception by the written press and the Internet. Thus the main approach is focused on the relationship between cruelty-violence, contemporary city and its representations.
Key-words
Cruelty; Urban violence; Media hype; Excess; the film Contra Todos by Roberto Moreira.
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Um comentário:

Larissa Fernandes disse...

Concordo com o autor quando defende a idéia de que a mídia, em especial a televisão, tem dado relevância e até ênfase à violência. De fato, quando ligamos a TV nos deparamos durante todo o nosso dia com cenas de violência, nos jornais: Morte, sangue, assaltos, estupros, seqüestros, acidentes, corpos mutilados, cenas de guerra; nas novelas personagens maquiavélicos, frios, que montam estratégias para roubar, matar, etc. É a dramaturgia imitando a vida real, ou seria a vida real representando cenas das novelas?
O indivíduo social tem sido formado em meio a violência. Torna-se para ele comum vê o sofrimento alheio, passam a enxergar isto como normal, cenas do cotidiano, seria essa uma das conseqüências da banalização dessa violência na mídia?
As tragédias são noticiadas pela mídia como rialite shows, a exemplo dos casos Isabela e Eloá, tira o foco das pessoas da grande problemática que envolve o fato que é a violência, e passa a fazer uma “novelinha” sobre a vida dos personagens envolvidos, esquecendo os milhares de casos como estes que há o Brasil e que se quer são percebidos.
Como diz o autor do texto acima: “Evoca-se aqui o teatro da crueldade, com o objetivo de circunscrever melhor o sentido da crueldade-violência na cultura midiática contemporânea”.

Cristiane Larissa